Dorrit Harazim
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Dorrit Harazim

Jornalista e documentarista

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Dorrit Harazim

Jornalista e documentarista

Capital mundial do soul, Memphis, no Tennessee, há dias chora, canta e ora pela alma de Tyre Nichols. Na sexta-feira, quando as autoridades policiais divulgaram o vídeo do bestial ataque sofrido pelo jovem de 29 anos, o lamento comunal tomou outro rumo. Uma vez mais, os Estados Unidos se viam cara a cara com o racismo estrutural do país. Pior: desta vez, o racismo se mostrou duplamente perverso. Todos os cinco policiais que massacraram a vítima a troco de nada eram, também eles, negros. Com o nome da mãe tatuado no braço direito, Nichols jantara em casa no sábado 7 de janeiro e saíra de carro para o trabalho na empresa FedEx. Por volta das 20h30, foi parado pela polícia por alegada imprudência ao volante e arrancado do veículo. Segundo a versão inicial, teria havido “um enfrentamento”, e Nichols saiu correndo. Pelo registro das próprias câmeras usadas pelos policiais, suas últimas palavras foram grito inútil:

— Mãe! Mãe! Mãe!

A 100 metros dali, RowVaughn Wells não pôde acudir o filho, pois nada ouvira. Acordada de madrugada por um telefonema impreciso do hospital local, acorreu. O humano ali internado já não era mais recuperável para a vida.

— Ty pesava 68 quilos, e esses cinco homens, somados, pesavam mais de 450 quilos. 450 quilos o socaram, socaram, socaram até a morte... Converteram-no em geleia — constatou a senhora Wells.

A partir daí, o caso adquiriu contornos e velocidade inéditos. Por ordem da chefe de polícia, Cerelyn Davis, negra como 64,87% da população, em menos de duas semanas os cinco policiais foram primeiro afastados, depois expulsos da corporação. Dois paramédicos também foram demitidos por terem desperdiçado minutos valiosos antes de entrar em ação. Em entrevista à CNN americana depois de assistir às imagens gravadas pelas câmeras corporais, Davis se declarou atônita com a “mentalidade grupal” da agressão.

— Jamais presenciei nada parecido em minha carreira — disse. — Era não só incompreensível, como inconcebível. Senti que necessitava agir rápido.

Ela sabia por quê.

Três décadas atrás, o grandalhão Rodney King também fora surrado com brutalidade ímpar por quatro policiais de Los Angeles, em cena filmada por um cidadão comum de sua varanda. King saiu todo estropiado do episódio, mas sobreviveu. A acusação fora leve — “uso excessivo de força”—, e o julgamento arrastado ao longo de 18 meses. Quando saiu o veredito da absolvição dos quatro (três deles brancos), Los Angeles ardeu. Foram seis dias e seis noites de ira, com saldo de 63 mortos e mais de 2 mil feridos. Foi preciso a intervenção da Guarda Nacional estadual, além do Exército e dos Fuzileiros Navais, para acabar com a revolta. Sem falar em outros casos mais recentes, como o assassinato de George Floyd, em Minneapolis, três anos atrás.

Desta vez, em Memphis, a acusação da promotoria distrital ficou pronta já no 19º dia depois da ocorrência. Ela é severa, atinge todos por igual, independentemente da força letal empregada por cada agente: homicídio culposo, agressão agravada, sequestro agravado, má conduta oficial e opressão oficial. Foi comunicada na quinta-feira. E, em nome da pressão por transparência, a divulgação pública do vídeo com o registro do crime ficou marcada para a sexta-feira. A senhora Wells, informada do conteúdo que decidiu jamais querer ver , recomendou a todos os pais do país que não deixassem suas crianças expostas a tamanha brutalidade. Sobre os cinco policiais que amassaram da vida seu filho, disse o essencial:

— Eles envergonharam suas próprias famílias, envergonharam a comunidade negra. Eu realmente sinto pena por vocês. Sinto pena, não precisavam fazer o que fizeram.

Os cinco formavam uma das unidades de elite denominada Scorpion, acrônimo em inglês para “operação policial de rua para restaurar a paz em nossa comunidade”. Composta de 40 agentes no total, o grupo operava em veículos descaracterizados à caça do crime urbano. Criada para intimidar, desfrutava velada impunidade para executar sua missão e acabou corrompida por essa impunidade.

— Ela foi pensada para aterrorizar a vítima, como matilha de lobos independente da cor — explicou um dos advogados da família de Nichols.

A primeira providência, imediata, será eliminar a existência do grupo.

A segunda, mais duradoura e de impacto nacional, está em transformar o caso de Memphis em precedente jurídico — tanto na rapidez da elaboração das acusações quanto na agilidade das providências contra os acusados. Da próxima vez que ocorrer brutalidade policial semelhante nos EUA — e ela ocorrerá —, a cobrança por punição exemplar e rápida terá onde se apoiar.

— Ninguém mais poderá nos dizer que precisamos deixar a Justiça seguir seu lento curso. Temos um precedente — acredita um dos advogados da família da vítima.

Até a noite de sexta-feira, porém, nenhuma associação, nenhum sindicato de policiais do país havia emitido nota de condenação aos colegas de Memphis. Soa familiar?

Vale lembrar que no Brasil não haveria sequer a gravação de câmeras nos uniformes.

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