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Política

Após mortes em baile funk de São Paulo, 'lei do silêncio' impera em Paraisópolis

Operação da polícia em festa deixou nove vítimas fatais
Policiais lançaram bombas e balas de borracha durante operação contra baile funk, em São Paulo Foto: Reprodução
Policiais lançaram bombas e balas de borracha durante operação contra baile funk, em São Paulo Foto: Reprodução

SÃO PAULO — Nas vielas apertadas de Paraisópolis , eram poucos os moradores que neste domingo se arriscavam a falar sobre a tragédia que se abateu ali horas antes, quando nove pessoas morreram pisoteadas durante ação da polícia em um baile funk. Informalmente, imperava uma lei do silêncio. Quem a quebrava, exigia o anonimato.

Numa das ruas onde ficava a concentração da festa, a Herbert Spencer, havia apenas duas palavras escritas no chão e que resumiam o sentimento da comunidade em relação aos últimos acontecimentos: "Paz e justiça".

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Essa foi a principal reivindicação dos jovens que estavam na festa ouvidos pela reportagem, sob o compromisso de não terem seus nomes revelados. Em comum, todos temem uma eventual retaliação da polícia.

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Eles dizem que a Polícia Militar intensificou as operações na comunidade desde que houve o assassinato de um sargento da PM na comunidade no dia 2 de novembro. Ronaldo Ruas, de 52, fazia parte de uma equipe responsável pelo patrulhamento na favela. Ruas morreu após uma troca de tiros durante uma abordagem a três suspeitos na comunidade. Depois disso, os moradores afirmam que a polícia passou a agir de forma truculenta e sustentam que houve casos de ameaças e abusos. A Secretaria de Segurança Pública não comentou se esse episódio poderia estar relacionado com a ação da polícia em Paraisópolis neste domingo.

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Nascida e criada em Paraisópolis, a estudante X, de 16 anos, disse que frequenta o baile há alguns anos e estava na festa de domingo. Ela contou que por volta de 4 da manhã ouviu barulho de bombas de gás e sentiu seus olhos arderem. Ela disse que houve correria e que no meio da confusão conseguiu se esconder num bar de um comerciante amigo. Ainda segundo o relato da adolescente e de outras testemunhas, a polícia teria bloqueado a saída das ruas principais com viaturas, o que levou o público a fugir pelos becos — alguns têm apenas um metro e meio de largura —, onde acabaram caindo e sendo pisoteados.

— Por conhecer bem a região eu soube onde buscar abrigo rápido no meio da confusão. Mas muitos que não eram moradores não tiveram a mesma sorte porque estavam em pânico. Corriam porque a polícia tava batendo em todo mundo. E não era só bala de borracha. Eles estavam atirando também. As pessoas correram para os becos, alguns ficaram sem saída e acabaram pisoteados —afirmou a estudante.

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Outro menor de idade que também estava no baile e que não quis ter nome divulgado, também atribuiu o caso à violência policial.

— A polícia estava descendo o cacete. Muita covardia. Eles sabem que podem bater em pobre. Porque para pobre não existe Justiça — afirmou o jovem.

A versão oficial da polícia para o episódio é diferente daquela apresentada por moradores e vítimas.

Segundo as autoridades, seis policiais da Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas (Rocam) participavam de uma operação de contenção nos arredores do baile funk, batizada de Pancadão, quando dois suspeitos passaram numa moto e foram abordados. Os suspeitos não pararam, atiraram contra os policiais e fugiram em direção ao baile funk. Durante a perseguição, policiais e suspeitos entraram na festa com cerca de 5 mil pessoas. Ao perceber a presença dos agentes, o público do baile reagiu e atirou pedras.  Foi quando a Força Tática chegou para dar reforço e lançou bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha para dispersão. Com a correria, as pessoas foram pisoteadas. O tenente-coronel Emerson Massera, da PM, sustenta ainda que os suspeitos entraram no meio do baile disparando e usaram os frequentadores como “escudos humanos”.

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Segundo maior comunidade de São Paulo, Paraisópolis tem mais de 100 mil habitantes e sua cena cultural atrai moradores de outras comunidades.

O "Baile da 17" recebe público de outras regiões. No evento de domingo, parte dos frequentadores, cuja idade varia de 14 a 25 anos, chegaram em ônibus de excursão de Pirituba, Guarulhos, e de bairros da Zona Norte da capital como Limão, Jaraguá e Campo Limpo, entre outros.

Segundo a associação de moradores de Paraisópolis, o baile já existe há pelo menos 7 anos e cresceu de forma espontânea com sua divulgação nas redes sociais. O nome do baile se refere a um bar que era conhecido na favela como "Batida 17", onde as pessoas costumavam fazer a concentração da dança. O estabelecimento acabou fechando com o tempo, mas o baile ganhou fama e perdurou no tempo.

Gilson Rodrigues, que é presidente da associação, classificou a ação da polícia como "irresponsável".

— Não foi um acidente. Eles (a polícia) estão contando essa história de que houve uma perseguição a uma moto. Mas fazer uma abordagem num espaço de mais de 5 mil pessoas da forma como foi, ainda que a comunidade tenha revidado, mostra no mínimo despreparo. A dispersão do público do jeito que foi feita gerou mais violência e causou mortes — afirma Gilson Rodrigues, que é presidente da Associação de Moradores.

Vídeos que circulam na internet corroboram a versão da associação de moradores. As imagens mostram que a PM encurralou grandes grupos de pessoas nos becos e ruas estreitas da favela, onde pode ter ocorrido pisoteamento.

Na delegacia onde as mortes foram registradas, o 89º Distrito Policial (DP), no bairro do Morumbi, o delegado Emiliano da Silva Neto, afirmou que não é possível ter certeza sobre a autenticidade dos vídeos. Segundo o delegado, não foi possível constatar irregularidades na ação da PM e a linha de investigação inicial dos casos será de "morte suspeita".

Enquanto acompanha o andamento do caso na polícia, o presidente da Associação de Moradores defende que o estado ajude a organizar e a formalizar eventos de funk para evitar novos incidentes.

— Os bailes têm crescido cada vez mais por ausência de espaços de lazer. Não adianta fazer uma desmobilização num canto que o baile vai para outro local perto. É melhor que o estado seja parceiro e que não seja opressor dessa comunidade - afirma Gilson Rodrigues.