• Camila Mazzotto*
Atualizado em
 (Foto: Foto: Pixabay)

(Ao danificar vasos sanguíneos, cloroquina pode afetar a circulação de órgãos como coração, rins e pulmões, alguns dos mais atingidos pela Covid-19 (Foto: Pixabay)

Desde o início da pandemia de Covid-19, diversos cientistas decidiram mudar temporariamente a rota principal de seus estudos para concentrar esforços no combate à crise de saúde mundial. É o caso de um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR) que, em 2016, deu início a uma investigação sobre o comportamento das células endoteliais de pessoas acometidas pela Doença de Fabry, um distúrbio genético raro que acomete um a cada 117 mil homens no mundo.

Em setembro de 2020, no entanto, o grupo percebeu que os resultados que estavam sendo observados poderiam contribuir para a discussão em torno do tratamento de outro tipo de paciente: os infectados pelo Sars-CoV-2. É resultado dessa percepção o artigo veiculado na revista científica Toxicology and Applied Pharmacology no último dia 4 de fevereiro, que alerta para os efeitos tóxicos causados pela cloroquina no endotélio humano, membrana que reveste nossos vasos sanguíneos.

O que levou um estudo inicialmente dedicado à Doença de Fabry a levantar hipóteses sobre a Covid-19 foi justamente o medicamento que, apesar de ter sua ineficácia clínica comprovada no combate ao Sars-CoV-2 em diversas pesquisas, continua sendo usado no tratamento da infecção pelo vírus no Brasil.

Mas o objetivo primário do grupo nada tinha a ver com a relação entre o remédio e o novo coronavírus. "Estávamos usando a cloroquina para provocar nas células um quadro clínico observado em pessoas com Doença de Fabry”, explica Andréa Emília Marques Stinghen, professora do Departamento de Patologia Básica da UFPR e orientadora do estudo, em entrevista a GALILEU.

Nesse distúrbio raro, dores intensas atingem as extremidades do corpo devido à atividade deficiente da alfa-galactosidase A, enzima que degrada gorduras dentro dos lisossomos – organelas que realizam a digestão intracelular. De forma semelhante, esse fenômeno também pode ser induzido pela cloroquina – fato já comprovado pela literatura científica. Foi por esse motivo que os cientistas trataram linhagens de células endoteliais humanas com uma quantidade clinicamente relevante do remédio. A ideia era mimetizar, in vitro, as células de uma pessoa com a Doença de Fabry, a fim de observar características como morfologia e reações em cadeia.

Um dos primeiros a explorarem o efeito da ausência dessa enzima especificamente em células endoteliais, o trabalho acabou indo além: trouxe novas hipóteses sobre os potenciais riscos da cloroquina no tratamento de pessoas com Covid-19. 

A reviravolta – e o que ela traz de novidade

Após 72 horas mergulhadas em quantidades de cloroquina semelhantes às absorvidas pelo corpo humano, as células apresentaram resultados que chamaram a atenção dos pesquisadores: acúmulo de organelas ácidas, aumento dos níveis de radicais livres e queda na produção de óxido nítrico. O desfecho foi um quadro conhecido como “estresse oxidativo” ou, como resume Stinghen, um cenário em que as células param de produzir as substâncias que as protegem e passam a fabricar toxinas em excesso.

Ilustração mostra os efeitos de diferentes concentrações de cloroquina nas células endoteliais, responsáveis pelo revestimento dos vasos sanguíneos (Foto: Universidade Federal do Paraná (UFPR))

Ilustração mostra os efeitos de diferentes concentrações de cloroquina nas células endoteliais, responsáveis pelo revestimento dos vasos sanguíneos (Foto: Universidade Federal do Paraná (UFPR))

Foi aí que, em meio à pandemia de Covid-19 e às discussões em torno do uso da cloroquina para tratar a enfermidade, uma nova questão surgiu entre o grupo: se o estudo mostrava que o medicamento danifica as células que revestem os vasos sanguíneos e a Covid-19 também é apontada como uma doença vascular, quais seriam os riscos de seu uso no tratamento de pessoas infectadas pelo Sars-CoV-2?

“Ao atacar as células endoteliais, presentes em todos os vasos sanguíneos do corpo humano, a cloroquina pode afetar a circulação de órgãos como coração, rins e pulmões, alguns dos mais atingidos pela Covid-19”, responde Paulo Cézar Gregório, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Microbiologia, Parasitologia e Patologia da UFPR. “Por isso, a nossa hipótese é a de que o uso do medicamento pode agravar o quadro de pessoas com a doença”, diz o autor da pesquisa.

Já se saber que a Covid-19 é uma doença sistêmica – que afeta uma série de órgãos – e, por isso, também é capaz de atingir os vasos sanguíneos que permeiam o corpo humano. Em casos graves, um dos eventos associados à enfermidade é a trombose, caracterizada pela formação de coágulos que provocam inflamação ou obstrução de sangue na região da veia atingida. Em contato com a cloroquina, esse quadro, segundo a pesquisa, poderia ser consideravelmente potencializado.

“A cloroquina foi uma promessa de curta duração, já que é um medicamento usado há mais de 70 anos para combater outras doenças, tem baixo custo e apresentou um efeito inibitório in vitro do Sars-CoV-2, porém essa eficácia nos ensaios clínicos não existe”, reitera Paulo. O autor do estudo explica que, no caso da Covid-19, os riscos atrelados ao uso do medicamento não superam o benefício da inibição da replicação viral, o que é diferente do observado em doenças como malária e lúpus. Nesses casos, as vantagens associadas ao remédio são maiores do que os efeitos colaterais, o que justifica sua prescrição.

Para Fellype Carvalho Barreto, professor do Departamento de Medicina Interna da UFPR e um dos orientadores da pesquisa, a descoberta se soma a outros achados que também discutem os riscos ligados ao uso da cloroquina no tratamento de pacientes com o novo coronavírus, como arritmia e problemas hepáticos. “É um tema já superado em outros países [o uso da cloroquina para tratar Covid-19], mas que ainda é forte no Brasil”, observa o médico. “Então, a pesquisa ajuda a refletir sobre o potencial de toxicidade desse remédio e alerta para um novo risco de sua prescrição ou incentivo nesses casos”.

Respeito à ciência

No Brasil, autoridades como o presidente Jair Bolsonaro e o atual ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, já afirmaram que a cloroquina poderia ser usada como “tratamento precoce” contra a Covid-19. Essa politização do medicamento, para a professora Andrea, além de ter levado ao uso errôneo do fármaco, provocou nas pessoas uma falsa sensação de proteção.

"Isso teve um impacto social amplo, porque muitos pensaram ‘vou tomar a cloroquina e assim não preciso mais usar máscara’, gerando uma reação em cadeia que contribuiu para o que estamos vivendo hoje no país”, considera a orientadora do estudo.

Para ela, a pesquisa também reitera um ponto sem o qual o combate ao coronavírus não funciona: o respeito às evidências científicas. “A pandemia jogou luz sobre o papel da ciência na sociedade, especialmente a ciência produzida no seio das universidades e institutos públicos, de onde estão saindo as vacinas do país contra o novo coronavírus”, destaca.

*Com supervisão de Luiza Monteiro