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Democracia

Clima belicoso

O projeto de criar um ambiente que possa levar a uma revolta popular semelhante à que aconteceu nos Estados Unidos depois da derrota de Trump na eleição de 2020 está sendo cuidadosamente tecido pelo presidente Bolsonaro e por seus apoiadores mais radicais. Inclui até mesmo altas patentes das Forças Armadas, especialmente do Exército. Além das redes sociais bolsonaristas.

O presidente Bolsonaro, dia sim, outro também, se refere publicamente às eleições de outubro como se estivessem sob risco, insistindo na desconfiança das urnas eletrônicas, mesmo depois de o voto impresso ter sido derrotado no Congresso, e com todas as garantias de segurança renovadas e aumentadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Ao mesmo tempo, intensifica-se a campanha a favor das armas de fogo, e diversos órgãos do governo trabalham pela ampliação de seu porte e seu uso por cidadãos comuns. Ainda como secretário de Fomento à Cultura do governo, André Porciuncula, um ex-PM, anunciou numa reunião de um grupo armamentista que poderia liberar uma verba para que filmes, podcasts, áudios fossem usados para defender a política do governo. “Pela primeira vez vamos colocar um projeto da Rouanet num evento de arma de fogo”, disse, rindo. “Vai ser bacana.”

Porciuncula, numa conclamação implícita à população, diz que “arma de fogo não é só para você combater a criminalidade comum, é mais que isso, é criminalidade de Estado”. Quando fala em “criminalidade de Estado”, Porciuncula, claro, não está acusando o governo de que faz parte de crimes contra os cidadãos. Ele quer dizer é que o povo tem de se armar para se defender de um eventual governo de esquerda, que cometerá “crimes de Estado”.

Na invasão do Capitólio em Washington, depois da eleição vencida pelo democrata Joe Biden, vários dos invasores portavam armas, e um guarda foi morto. A tentativa de ampliar o acesso às armas por meio de propaganda financiada pela Lei Rouanet é de uma perversidade única. Desviar o dinheiro de incentivo às artes é, para a a socióloga Bárbara Freitag, mulher do diplomata e filósofo Sergio Paulo Rouanet, criador da lei de incentivo à cultura quando era ministro, “a maior ofensa que já vi fazer contra a cultura brasileira. Não quero ver nosso nome envolvido nisso”.

No mesmo diapasão, o presidente do Superior Tribunal Militar (STM), general de Exército Luis Carlos Gomes Mattos, reagiu de maneira irônica à revelação dos áudios que demonstram que a questão da tortura a presos políticos foi tema de reuniões, abertas e secretas do STM, com vários ministros militares demonstrando preocupação, alguns repúdio, com os relatos de torturas: “Não estragou a Páscoa de ninguém. Estamos acostumados com isso, deixa pra lá”.

O preocupante na fala do presidente do STM é que ele atribui o noticiário a um complô contra as Forças Armadas, ao dizer que “sabe por que está acontecendo, sabe de onde vem”. É claro que está insinuando que a divulgação dos áudios é uma manobra da esquerda para fortalecer a candidatura de Lula.

Os áudios revelam companheiros dele, antecessores no STM, ministros tão respeitáveis quanto ele, assustados com o que constatavam, com as torturas relatadas. Não há facciosismo na divulgação. Embora defendessem o que chamavam de Revolução, estavam preocupados com que esses fatos pudessem afetar as Forças Armadas e o processo revolucionário que apoiavam. Não queriam admitir que essa era uma política de Estado àquela altura.

Denunciar esses fatos não vai contra as instituições militares, mas contra quem as usou, especialmente o Exército, para fazer uma política de Estado brutal, o Estado se impondo diante de presos que deveria proteger, porque estavam sob sua guarda — o que é uma mancha nas Forças Armadas brasileiras. Vários governos na democracia já tomaram atitudes, demonstrando que o Estado brasileiro era responsável pela segurança desses presos. Tanto que milhares de pessoas foram indenizadas, numa admissão de que não haviam sido devidamente protegidas.

Claro que, num momento em que o próprio presidente da República diz que o coronel Brilhante Ustra, identificado como torturador pela Comissão da Verdade, é seu herói, se cria um ambiente para que várias pessoas que pensam como ele se pronunciem.

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