A trajetória e lutas de Erika Hilton, estrela da capa digital da Vogue em dezembro
Primeira mulher negra e trans eleita vereadora em São Paulo e a mais votada do Brasil, Erika Hilton quer dar protagonismo aos mais vulneráveis e lutar por uma cidade menos violenta e desigual
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Claudia Lima
Atualizado em
A primeira vez que vi Erika Hilton foi em setembro de 2019, em um painel do Festival Agora É Que São Elas, plataforma que discute o papel das mulheres na política, nas artes e na cultura. Ao lado de lideranças como a ex-prefeita de São Paulo Luiza Erundina, a ex-ministra do meio ambiente Marina Silva e a ativista indígena e Sonia Guajajara, lá estava Erika, expondo suas ideias sobre mulheres e poder. De cara, me chamaram a atenção as colocações assertivas e sem rodeios daquela mulher esguia e de personalidade fortíssima, àquela altura ainda não muito conhecida do grande público.
Corta para 2020. Um ano depois, aos 28 anos, Erika Hilton foi a primeira mulher transgênero eleita vereadora em São Paulo e a mulher mais votada do Brasil, com 50.508 votos. Um feito e tanto – ainda mais em se tratando do País que mais mata LGBTQ+s no mundo – numa disputa que elegeu o maior número de mulheres negras e trans da história. Antes, em 2018, ela já havia sido eleita como codeputada junto com a Bancada Ativista, primeira candidatura coletiva do Estado de São Paulo.
Criada em uma família matriarcal – mãe, tias e avó – Erika Hilton nasceu em Franco da Rocha, na região metropolitana de São Paulo. “Minha mãe trabalhou muito para que eu não passasse necessidades como ela passou e como eu passei quando muito bebê”, conta. “Apesar disso, fui muito privilegiada no sentido de ter tudo do bom e do melhor e de, desde cedo, poder exercer minha feminilidade sem sofrer nenhum tipo de repressão”, conta Erika, que adorava imitar Paola Bracho, a heroína da novela mexicana A Usurpadora. O cenário mudou quando a família se converteu ao cristianismo. “Elas foram convencidas de que minha identidade era uma coisa demoníaca”, lembra. Expulsa de casa, foi mandada para a casa dos tios super-rígidos em Itu, com a esperança de que ela seria “curada”. Erika chegou a se batizar, mas acabou deixando a congregação e, adolescente, caiu na prostituição. “Fui uma criança muito amada na infância. Perder tudo me colocou em um lugar de desumanização”, conta. Depois de seis anos, foi resgatada pela mãe. “Foi um processo muito doloroso tanto para mim quanto para ela, que acabou sendo acusada de não ter me dado limites. Hoje temos uma ótima relação, mas ambas fomos vítimas da transfobia”, afirma.
Foi a partir daí que Erika começou a moldar sua personalidade: com o apoio da mãe, voltou à escola, concluiu o ensino médio e ingressou na universidade, onde estudou pedaogia e começou a militar no movimento estudantil. A entrada na política, de fato, se deu ao brigar pelo reconhecimento do uso do nome social na carteirinha de transporte escolar. Com a repercussão do caso na mídia, acabou chamando a atenção do PSOL, que a convidou para fazer parte da Bancada Ativista, onde foi eleita pela primeira vez como codeputada. Erika teve um mandato tenso e chegou a sofrer ameaça de morte. “Naquele momento, o medo me paralisou. Mesmo já tendo vivido nas ruas e correndo risco, nunca havia sido abertamente ameaçada”, revela. Desde então, ela vem fazendo um trabalho psicológico e físico para se proteger: não lê comentários de matérias, não abre a caixa de e-mails e, em seu Instagram, responde apenas mensagens positivas. “Também me protejo com uma escolta e muita coragem. Sei que estou na mira, mas não há muito o que fazer.”
Nós nos encontramos para esta reportagem em 8 de dezembro passado, um dia antes de a vereadora eleita completar 28 anos. Erika adentrou o estúdio lembrando os mil dias da morte de Marielle Franco, um assassinato que até hoje segue sem respostas. “É um dia triste e revoltante para nós que somos mulheres, negras, LGBTQIA+, mas é também dia de pedir justiça e garantir que nenhuma outra parlamentar seja executada ou ameaçada”, reflete.
Para ela, o resultado das urnas mostra o início de uma organização maior em prol dos direitos humanos. “Acho que o fascismo tem crescido e ganhado força, mas ainda não tomou conta do Brasil. Ainda somos um País de mulheres, indígenas, negros e negras, pessoas que lutam pelos seus direitos, mas que foram seduzidas pela ideia de que somos minoria, quando na verdade é o oposto”, pondera. “Este paradoxo mostra que estamos nos organizando. Quando eu, uma mulher negra e trans sou a mais votada do País, ninguém – nenhum homem ou mulher branco e cisgênero – perde o seu lugar. Ao contrário, só há ganhos, e todo mundo avança.”
Em seu mandato, Erika quer dar protagonismo a grupos mais vulneráveis e discutir maneiras de fazer da cidade um lugar menos violento e desigual. “Fui eleita como uma trabalhadora do povo e tenho uma entrega a fazer. Quero que as pessoas olhem para a Câmara Municipal e pensem: ‘Eu me vejo no corpo dessa mulher que é negra e travesti, mas que fala de orçamento, cultura, esporte e educação e que tem um projeto para a cidade.”
Com essa curta, porém promissora trajetória, Erika diz que a mãe a enxerga com orgulho. “Graças ao amparo e ao amor que eu tive na infância e à sua tomada de consciência, me tornei a mulher que sou hoje.”
Ela, por sua vez, se vê como um reflexo de sua ancestralidade. “Me sinto vingada, honrada e grata, pois entro no parlamento pela porta da frente. Mas sei que muita gente veio antes abrindo caminho para que eu pudesse chegar até aqui. Gente como Zumbi dos Palmares, Dandara, Luiza Mahin, a própria Marielle, que lutaram para romper os estigmas do preconceito e ocupar lugares que nos foram negados. Agora, quero abrir espaço para que outras venham depois de mim. Me sinto pronta.”
Foto: Cai Ramalho Direção de arte: Felipa Damasco Direção de conteúdo: Paula Merlo Direção de moda: Pedro Sales ireção criativa: Júlia Filgueiras Coordenação: Renata Garcia e Lais Franklin Reportagem: Claudia Lima Produção executiva: Monica Borges e Chris Malaquias Edição de moda: Neco Blangata Equipe de moda: Juliana Yoshie Beleza: Angel Moraes com produtos Fenty Beauty e L’Oréal Equipe de arte: Cássio Vicente Assistentes de foto: Karla Brights e Ressumbrar Pintura: "pele branca,mãos vermelhas", de Pegge Tratamento: Vall Lloveras Agradecimento: Afetive Food