Educação infantil começa a ganhar mais professores homens, que ainda enfrentam resistência

Dos 595 mil docentes na educação infantil (até os 5 anos), apenas 3,7% são do sexo masculino, segundo o Censo da Educação Básica 2021

Por Carol Zappa


Philippe Bennesby, no Espaço Cria, no Cosme Velho: entre os pequenos Guito Moreto

Contar histórias, trocar fraldas, brincar e explorar o mundo com 20 crianças: esse é o dia a dia de Philippe Bennesby, de 26 anos, e Rafael Martins, de 28 anos, em uma escola no Cosme Velho. Eles fazem parte de um ínfimo grupo no país: o de homens que atuam como professores nos anos pré-escolares. Biólogo, Rafael começou dando aulas de ciências em escolas e há quatro anos convive com uma turma de bebês de 10 meses a 2 anos. Seu colega no Espaço Cria, Philippe entrou nesse universo quase por acaso. Formado em Administração, ele já trabalhava com sustentabilidade e permacultura e, durante o processo seletivo para uma vaga no departamento financeiro, acabou descobrindo outra vocação: há dois anos, é um dos 14 educadores homens da escola (entre 46 mulheres). Um número alto em comparação à realidade brasileira: dos 595 mil docentes na educação infantil (até os 5 anos), apenas 3,7% são do sexo masculino, segundo o Censo da Educação Básica 2021. Ou seja: para cada homem, há 27 mulheres. Nas etapas seguintes, dos anos finais do fundamental ao ensino médio, o índice cresce, até tornarem-se maioria no ensino superior. “É interessante estar num ambiente em que sou minoria, o que infelizmente ainda é incomum em nossa cultura”, diz Philippe.

Essa ausência se deve muito ao fato de que, historicamente, os cuidados com os pequenos foram amplamente atribuídos às mulheres. A creche e a pré-escola são os primeiros contatos da criança fora da realidade de casa e são frequentemente vistas como um prolongamento dessa vivência, que inclui higiene, alimentação e acolhimento. “Na visão tradicional da nossa sociedade, o papel da mulher ainda é muito associado ao de mãe, cuidadora, responsável pelo afeto e pela própria "educação das crianças, enquanto o homem sai em busca do sustento”, explica Andrea Ramal, Doutora em Educação pela PUC-Rio. Não à toa, a primeira fase da educação infantil, até os 2 anos, é chamada também de maternal.

Para Andrea, o convívio com a heterogeneidade nesses primeiros anos — seja com professores homens e mulheres, mais velhos e mais jovens, mais disciplinados ou descontraídos — ajuda a desenvolver competências de aprendizado e habilidades socioemocionais. “O bom profissional tem um desafio enorme porque é uma fase importantíssima do desenvolvimento cognitivo da criança, mas isso não tem a ver com gênero, e sim com perfil, formação e aptidão”, decreta.

Aos poucos, essa estrutura vem mudando. Mesmo que ainda em uma pequena bolha, cada vez mais homens começam a se envolver na rotina diária da família, dividindo funções antes vistas exclusivamente como femininas. E isso reflete, ainda que gradualmente, em um aumento da presença masculina nas instituições de ensino infantil — principalmente naquelas com propostas pedagógicas mais construtivistas. “Nossa geração passou pela escola sem referências masculinas, contexto que vai se reproduzindo por essa visão de que o cuidar é uma função materna. Isso acaba sendo não só um peso para a mãe, como uma perda para a criança e para os próprios homens”, observa André Azedo, 36 anos, mediador e educador da Jangada, também no Cosme Velho, que tem hoje cinco professores no segmento infantil, incluindo um homem trans. Miguel Mendes, fundador e diretor "da escola e pai de dois meninos, é rara exceção: filho de uma psicopedagoga, ele teve alguns professores em escolas “alternativas” em São Paulo. “Quando temos homens nesse papel, estamos reconstruindo a história do país "e devolvendo os direitos de meninos e meninas”, afirma. De uma família tradicional do interior de Minas, Rafael Martins diz que a experiência tem sido revolucionária. “Cresci ouvindo que homem não chora, não pode brincar com boneca ou demonstrar carinho. Quando estou com os pequenos, vejo como um resgaste da minha própria história, é uma relação libertadora.”

hilippe Bennesby (na janela) e Rafael Martins que trabalham no Espaço Cria, no Cosme Velho, com as diretoras da escola Livia Diniz (vestido estampado) e Mariana Carvalho — Foto: Guito Moreto

Mas os homens que se arriscam adentrar nesse campo ainda enfrentam resistência, das famílias e, muitas vezes, dos próprios pares. Professor por 11 anos do ensino fundamental no interior de Pernambuco e desde o ano passado no infantil da Jangada, Paulo André da Silva, de 35 anos, era o único homem da turma na faculdade de Pedagogia e, nos anos seguintes, lecionando. “Senti, no início, uma preocupação da coordenação das escolas e, principalmente, dos pais”, diz ele. Além de um questionamento de sua capacidade para a função, há ainda o fantasma (legítimo) do abuso. Roberto Cossef e Larisse Lucena se depararam com essa situação quando a filha entrou no Espaço Cria, aos 2 anos, e pediram que a troca de fraldas não fosse feita pelo educador principal. “No início ficamos inseguros, por todos os casos que vemos”, lembram. Depois de conversas com a direção e ao notar "o desenvolvimento da menina, que adorava o professor, passaram "a confiar na dinâmica. “A educação infantil é esse território de construção de vínculo. Trocamos com as famílias e mostramos que há um acompanhamento da equipe, e elas passam a valorizar que as crianças cresçam com essa referência”, afirma Mariana Carvalho, uma das sócias e diretoras da escola.

Único homem nas cinco turmas de educação infantil da Casa da Mangueira, em Botafogo, Glênio Nascimento, de 24 anos, sente-se “desbravando uma mata fechada”. “Estou contribuindo para uma outra construção do homem negro, quebrando um estereótipo que o mundo espera de nós e mostrando que podemos ser uma representação da sensibilidade”, defende. Para Julia Pires, sócia e coordenadora da instituição, é importante desconstruir a ideia de que quem cuida é a mulher. “As crianças se beneficiam do convívio com essa diversidade, não só de gênero, mas racial e cultural”, defende. No entanto, os currículos de candidatos ainda são escassos. A desvalorização da profissão e os baixos salários também acabam afastando o sexo masculino. “Há um senso comum de que a mulher pode ganhar menos”, diz Julia, para quem há uma nova geração de homens interessada nesse caminho, com um olhar mais aberto "e despido de preconceitos. Sejam bem-vindos.

Philippe Bennesby, que trabalha no Espaço Cria, no Cosme Velho — Foto: Guito Moreto
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