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Por Rafael Vazquez — De São Paulo


Tânia Ferraz Alves: “Uma pessoa que passa por uma experiência traumática modifica o jeito que percebe o mundo” — Foto: Divulgação
Tânia Ferraz Alves: “Uma pessoa que passa por uma experiência traumática modifica o jeito que percebe o mundo” — Foto: Divulgação

Após dois anos de pandemia de covid-19 e mudanças bruscas nas rotinas de todos, o momento atual desperta a esperança de que o pior pode ter definitivamente ficado para trás. Isso pode levar à expectativa de que o ânimo das pessoas está revigorado, mas a diretora das unidades de internação do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas, Tânia Ferraz Alves, conta que a virada não será tão simples.

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A psiquiatra conta que os casos de ansiedade e depressão seguem em alta e a expectativa dos médicos é que também comecem a crescer casos de fobias e estresse pós-traumático. Mesmo que a pandemia se mantenha controlada e o retorno à normalidade siga o ritmo, ela diz que deve levar aproximadamente mais dois anos para que a saúde mental de uma parcela da população se estabilize.

Leia os principais trechos da entrevista:

Valor: Qual a herança esses dois anos de pandemia deixa a partir de agora?

Tânia Ferraz Alves: Se a gente pensar que depressão e ansiedade, por exemplo, são a associação de uma vulnerabilidade pessoal com o nível de estresse, dá para imaginar que, após dois anos, a curva da covid pode estar caindo, mas a de problemas de saúde mental está subindo exponencialmente. Um artigo recente da revista científica “The Lancet” mostrou que triplicaram as taxas de depressão e ansiedade em comparação entre 2019 e 2021. E a tendência desse aumento é no mundo todo, em diferentes proporções, mas no mundo inteiro, mostrando que há um fator em comum: a pandemia.

Valor: Qual o efeito da pandemia que tem provocado mal-estar nas sociedades?

Tânia: As pessoas se aproximaram da morte. Se no começo de 2020 tudo era meio longe, durante a pandemia ela ficou mais perto de alguma forma. Além disso, todo mundo nesses últimos dois anos passou por isolamento social e a gente já sabe que isolamento aumenta o estresse. Quando estamos no escritório, tem dia que você não está muito bem e alguém chega, fala com você, vai tomar um café, comenta que não está se sentindo muito legal, e começam a falar sobre isso. Curiosamente, a gente se sente melhor nessa hora. Quando percebe que outra pessoa do lado também está passando por dificuldade, é muito mais fácil enfrentar juntos. Esses dois anos que ficamos mais em casa, as pessoas não se viam. Perdemos aquelas conversas de corredor entre reuniões. As pessoas começaram a trabalhar sem separar a casa e o escritório. Tanto que no trabalho híbrido, hoje, é preciso tomar muito cuidado para não virar o pior dos dois mundos.

Valor: Qual o maior efeito desse aumento de estresse no dia a dia?

Tânia: Ele se dá com brigas, por exemplo, no WhatsApp, Facebook, Instagram. As pessoas perderam a vontade de escutar. Estamos saindo dessa pandemia sem conseguir escutar o outro.

Valor: Mas isso já não é um fenômeno anterior à pandemia?

Tânia: É verdade. Já havia um processo de polarização e falta de diálogo, mas as pessoas tinham maior capacidade de escuta. A perda de convívio fez com que muitas pessoas se retraíssem. Estamos com um problema real, o estresse pós-traumático. Dados na literatura científica apontam que, após a pandemia, podemos ver países em que o nível de estresse pós-traumático chegue a 40% da população, e o normal seria por volta de 5%.

Colaboradores em home office estavam com mais sofrimento emocional do que os que atuaram na linha de frente”

Valor: O que é estresse pós-traumático no contexto da pandemia?

Tânia: É quando algo está resolvido ou no caminho de se resolver, mas a pessoa continua agindo como se ainda estivesse na pior fase da pandemia, por exemplo. Várias máscaras ao mesmo tempo, medo de sair de casa, álcool na mão a todo momento. Observei pessoas desenvolvendo quadros obsessivos.

Valor: Especificamente sobre saúde mental, quais doenças estão aumentando mais neste momento?

Tânia: Depressão, burnout, ansiedade e, com a abertura da pandemia, os quadros de fobia estão aparecendo mais. As pessoas estão tendo que sair para o trabalho e começam a surgir vários medos.

Valor: Mesmo neste momento em que aparentemente a pandemia está controlada, os casos de depressão estão em alta?

Tânia: Sim. Veja bem, o efeito do estresse é acumulativo. A gente vem enfrentando dois anos de medo, aquela curva de sobe e desce de infecções e mortes. Aí, quando começa a melhorar, vem a variante delta, agora a ômicron. Houve uma mudança de realidade. Uma pessoa que passa por uma experiência traumática modifica o jeito que percebe o mundo.

Valor: A esperança de que o pior já passou não ajuda reverter os quadros de depressão e ansiedade?

Tânia: Não necessariamente. É que tem o medo das pessoas do que vai acontecer daqui pra frente. Esse aumento de estresse gera sobrecarga. A nossa memória não é uma memória de fato. É uma memória do que você sentiu. Se eu falar do 11 de Setembro para uma pessoa que estava em Nova York naquele dia ou do 7 a 1 da Alemanha para um fã de futebol, a pessoa volta a sentir as sensações daquele momento. Em relação à pandemia, os dados melhoraram, mas as sensações continuam. Se alguém tossir ao lado sem máscara, a reação pode ser a mesma do pior momento da pandemia. A maioria tende a superar isso, mas uma boa parte terá mais dificuldade.

Valor: Após dois anos, é possível avaliar se o home office é bom ou ruim para a saúde mental?

Tânia: Olha, na Gattaz Health and Results, empresa que eu trabalho, além do IPq, detectamos num grande hospital com 3.500 colaboradores um aumento de depressão grave de 10% para 20% nos colaboradores, além de uma percepção de redução do apoio social significativa. Apoio social é essa troca entre as pessoas. É interessante notar que os colaboradores em home office estavam com maior sofrimento emocional do que os que atuaram na linha de frente. Entre os que estavam em home office, encontramos 22% com depressão grave, enquanto nos que estavam trabalhando no hospital presencial, 17%. A prevalência na comunidade de quadros depressivos antes da pandemia variava de 10% a 13% em São Paulo. Interessante que o burnout grave também foi mais prevalente nos que estavam em home office, 20%, quando comparados aos que estavam presencialmente no hospital: 17%.

Valor: Quem pode trabalhar em casa acumulou mais estresse do que quem estava lidando de perto com casos graves da covid?

Tânia: Sim. As pessoas em home office estavam mentalmente mais doentes do que as da linha de frente. Vimos um número de afastamentos curiosamente grande entre funcionários que estavam em home office. Mais depressão, mais ansiedade e inclusive mais burnout. As pessoas na linha de frente estavam cansadas, mas estar junto com outros colegas na mesma situação as ajudava. Aquela sensação de estar no mesmo barco e que as pessoas em home office passaram a sentir menos. No isolamento, não se compartilha o que as pessoas estão sentindo. Abriu o quadro de depressão para muita gente que não tinha.

A guerra traz mais insegurança para o mundo. A gente sai de uma pandemia, começa a melhorar e...”

Valor: Curioso...

Tânia: Antes da pandemia, imagine duas pessoas com o mesmo nível de estresse, colegas de trabalho que desempenhavam a mesma função. Por questões pessoais de vulnerabilidade, uma pode ficar deprimida, e a outra, não. Se você tem uma genética muito predisposta, não precisa de muito estresse para deprimir. Como aumentou muito o nível de estresse com a pandemia, o isolamento, diminuíram as atividades de lazer, a socialização. E aí a vulnerabilidade ficou maior. E com a vulnerabilidade maior e o estresse aumentando, aquela pessoa que antes não deprimia ultrapassou uma linha.

Valor: Em que momento estamos agora e o que podemos esperar no bem-estar mental da sociedade?

Tânia: Estamos em fase de transformação. O próprio trabalho híbrido é um exemplo. Quando estamos em transformação, é normal sentir insegurança. Por isso, a tendência é que ainda se mantenham elevados os números de depressão e ansiedade. O que precisaremos identificar são as pessoas que não modificam o comportamento e perpetuam esses quadros.

Valor: Algum grupo foi mais impactado que outro no aspecto de saúde mental por esse processo gerado pela pandemia?

Tânia: A pandemia pegou todo mundo, mas de maneiras diferentes. Por exemplo, crianças e adolescentes estão saindo com um prejuízo de educação imenso. Dois anos de aulas em casa pela internet. Imagina quem estava se alfabetizando ou quem estava no ensino médio prestes a entrar na faculdade. Idosos também tiveram que mudar suas rotinas e eliminar suas distrações para ficar em casa. Perderam força muscular e aumentou até o número de quedas entre idosos. Identificamos prejuízos de memória e de atenção também.

Valor: E entre classes sociais? Existe o mito, às vezes até ecoado pelos mais pobres mesmo, de que depressão e burnout são doenças de rico.

Tânia: A questão é que os casos são subnotificados. O que acontece é que quadros muito graves ninguém tem dúvida, mas em quadros leves em que a pessoa perde o rendimento no trabalho, por exemplo, ela falta e eventualmente até acaba sendo demitida sem ninguém diagnosticar. Isso piora o quadro. Aumenta risco de suicídio, inclusive. A depressão pode pegar qualquer um, independentemente da classe social.

Valor: Como gestores e colegas de trabalho podem ajudar a identificar uma pessoa que desenvolveu algum quadro de risco para a saúde mental durante o isolamento?

Tânia: Prestar atenção nas pessoas. Dar tempo, conversar. Pensando num gestor, ir além da conveniência de perguntar se está tudo bem. Dificilmente alguma pessoa responderá essa pergunta dizendo que não está. Vale buscar uma aproximação maior e abrir espaço para diálogo.

Valor: A senhora identificou pessoas que desenvolveram ou pioraram os seus quadros mentais depois da guerra entre Rússia e Ucrânia?

Tânia: Sim. As pessoas ficam mais tensas. A guerra traz mais insegurança para o mundo. A gente sai de uma pandemia, começa a melhorar e... É como começar a ver uma luz no fundo do túnel e, de repente, apagam. Hoje a notícia é muito rápida, sem falar que recebemos a mesma notícia várias vezes. Aumenta o nível de estresse.

Valor: Vivemos em uma era de informação em excesso e, ao mesmo tempo, um alto nível de desinformação. Isso contribui para agravar quadros de ansiedade?

Tânia: Contribui muito. É muita informação e, para piorar, tem muita fake news sendo produzida. E quanto mais violenta, mais atrai. E os algoritmos dos sistemas de busca ainda te dão mais do que você já viu. Uma pessoa que começou a ler sobre a guerra ou sobre a pandemia para se informar, de repente, começou a receber informação somente disso. E quando a gente não é especialista em um assunto, a capacidade de interpretar a gravidade real é menor. Para quem não é médico, pesquisa na internet e acha que dor de cabeça é câncer.

Valor: Além do acúmulo de estresse coletivo na pandemia e agora a guerra que causa efeitos como aumento da inflação por aqui, esse ano teremos eleições que tendem a ser tão polarizadas ou mais do que em 2018. É mais um elemento para afetar a saúde mental do brasileiro?

Tânia: É mais um fator de estresse, sim. O que a gente precisa tentar fazer é equilibrar a balança com boa alimentação, fazendo atividade física, abrindo espaço para lazer, refletindo sobre os nossos pensamentos e as nossas certezas. Buscar perceber quando estamos distorcendo a nossa visão para interpretar a realidade. Resguardar-se quando perceber que está irritado. Tem uma frase do filósofo Epicteto que diz: “Para ser feliz o homem deve procurar mudar apenas o que pode ser mudado. As coisas que não podem ser mudadas devem ser aceitas como elas são”.

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