Por Patrícia Figueiredo e Victor Farias, g1 — São Paulo


Mulheres relatam dificuldades para fazer aborto legal: ‘Me senti desprezada’

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Aos 26 anos, Paula*, natural do interior da Bahia, realizou um procedimento de aborto legal em Uberlândia, Minas Gerais. Apesar de estar amparada pela legislação brasileira, já que sua gravidez foi resultado de uma violência sexual, e de ter sido avaliada por uma equipe com médicos, assistente social e psicólogo, ela ainda assim sofreu preconceito por parte de um grupo de enfermeiras quando estava internada para fazer a operação.

“Eu ouvia algumas enfermeiras conversando que eu não tinha direito. Duvidando mesmo da minha história, que fosse um abuso. Quando era para elas entregarem medicação, se a doutora ainda não tava lá, elas não entregavam”, contou Paula*, em entrevista ao g1.

Para médicos ouvidos pelo g1, a falta de preparo das equipes para a realização do aborto legal também é fruto da completa ausência de políticas públicas para a saúde da mulher — apesar da legislação que prevê amparo para os casos de aborto permitidos por lei há mais de 80 anos.

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É o que explica o obstetra Jefferson Drezett, que implementou e chefiou por mais de 25 anos o principal serviço de aborto legal do Brasil, no Hospital Pérola Byington, em São Paulo.

Para ele, é preciso investir em treinamento para evitar que mulheres vítimas de violência sexual tenham que passar por situações como a que viveu Paula*.

“Toda a equipe que atende essas mulheres deve ser uma equipe que fala a mesma linguagem. Por isso que a seleção e o processo de capacitar essas pessoas são importantes, para que todo mundo fique distante de preconceitos. Não adianta você ter um médico extremamente empático, uma psicóloga muito solidária, mas ter uma recepção péssima, um serviço de enfermagem péssimo, um serviço de ultrassom péssimo, por exemplo”, disse.

Apesar de autorizado por lei em três casos, o aborto é um procedimento de difícil acesso para mulheres brasileiras, na prática. Nesta semana, o Ministério da Saúde publicou uma cartilha controversa na qual afirma que “não existe aborto ‘legal’” e defende que os casos permitidos sejam submetidos a “investigação policial”.

Hospital Pérola Byington é referência no atendimento a mulheres para fazer aborto nos três casos previstos em lei no Brasil — Foto: Bárbara Muniz Vieira/g1

Coordenadora do Programa Superando Barreiras, da Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac) de Fortaleza, a ginecologista Débora Britto destacou que muitos profissionais de saúde saem da faculdade sem passar por um processo de sensibilização em relação aos direitos das mulheres.

Para ela, as desigualdades de gênero estão na origem de importantes temas de saúde pública, como a violência contra as mulheres.

“Uma vez que eu estou trabalhando dentro de um equipamento de saúde isso pode ser modificado, mas eu vou precisar que a gestão deste equipamento tome essa decisão, que ela acolha um projeto que vai acolher essa demanda de cuidado — que no caso que a gente está falando é interrupção de gestação prevista em lei — e trabalhe realmente para sensibilizar e capacitar suas equipes", explicou.

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Segundo Drezett, que já realizou mais de 600 abortos legais em toda a carreira, as secretarias municipais e estaduais, bem como o Ministério da Saúde, não cumprem seus papéis na hora de organizar serviços de aborto legal bem estruturados, com médicos ginecologistas ou obstetras, psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros.

Por conta disso, faltam hospitais que realizem o procedimento no país — um levantamento do g1 mostrou que só 175 municípios brasileiros registraram ao menos um aborto legal no último ano.

Concentração dos abortos legais nos municípios brasileiros — Foto: g1/arte e dados

“Apesar da grande responsabilidade que os médicos e outros profissionais de saúde têm nessa situação, não é deles a responsabilidade de organizar serviços, de fazer o recrutamento de pessoal especializado, de garantir um espaço físico adequado, de garantir as medidas de rotina dentro de uma instituição”, disse Drezett.

“Não é um médico que decide isso, não é uma assistente social que pode tomar essa decisão: essa decisão cabe aos gestores locais. E os gestores das unidades hospitalares, e da área da saúde no geral, deveriam estar com essa responsabilidade há 82 anos respondida”, completou.

Para a médica sanitarista Tânia di Giacomo do Lago, os lugares que fazem aborto legal atualmente são fruto do esforço de uma pequena parcela de gestores para garantir o direito ao aborto legal.

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“São lugares onde o poder público municipal garantiu a existência do serviço, e onde conseguiram manter uma equipe profissional que enfrenta as dificuldades. É uma conjunção de fatores que infelizmente a gente não encontra na maioria das cidades brasileiras”, explicou Lago.

“Não adianta só você ter o poder público apoiando e vencendo a resistência conservadora, reconhecendo que essas mulheres devem ser assistidas. São raras as autoridades que pensam assim. Mas, mesmo quando o gestor municipal ou estadual quer, ele precisa encontrar equipes e hospitais que também queiram. E isso não é fácil”, completou a especialista.

Preconceito no hospital

Paula* foi estuprada pelo ex-namorado no interior da Bahia e, quando procurou um hospital e soube que poderia interromper a gestação legalmente, a gravidez já tinha cerca de 20 semanas.

No Hospital de Clínicas de Uberlândia (HC/UFU), onde ela foi atendida, há um Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas). Apesar disso, segundo relatou ao g1, nem todos os profissionais de saúde envolvidos no seu atendimento estavam preparados para lidar com um caso de aborto legal.

O g1 entrou em contato com o HC/UFU, que disse que "não compactua com o comportamento relatado e ressalta que frequentemente realiza treinamentos com as equipes assistenciais sobre acolhimento, técnicas e humanização" (leia a nota completa abaixo).

“O preconceito ainda era ainda bem grande, demais. Eu ficava chamando as enfermeiras e tinha que ligar pra doutora e pedir pra doutora ligar pro hospital pra elas entregarem a medicação. Aí eu pedi uma medicação e nada de me entregar, e eu falo que já tinha passado do horário. E aí a doutora chegou lá se reclamando mesmo, sabe? Dando um esporro nelas”, contou Paula*.

Um dos momentos que a marcou foi quando, após a conclusão do procedimento de aborto legal, quando toda a equipe médica estava no quarto, uma das funcionárias do hospital falou que não era justo que ela recebesse aquele atendimento.

“A enfermeira tava falando que não era justo, que eu não tinha direito, falando uma pá de coisas comigo, super grossa, só que eu não tava nem prestando atenção muito nela porque eu tava sentindo muita dor”, disse

Para o médico Jefferson Drezett, que comandou o maior serviço de aborto legal no Brasil, atitudes como a desta equipe de enfermagem devem ser corrigidas por meio de investigações internas e processos de capacitação.

“O serviço não tem como evitar que uma enfermeira faça uma comentário impróprio. Isso pode acontecer. Mas a responsabilidade do serviço é identificar essas situações e ter esses comportamentos corrigidos”, declarou.

Entre as medidas que podem ser adotadas está a adoção de uma pesquisa com as pacientes no momento da alta médica.

“A gente oferecia para essa mulher a oportunidade de ela fazer uma queixa escrita e, assim, a gente conseguia localizar o profissional, dar uma resposta àquela colocação. É um cuidado cotidiano, não tem jeito”, explicou Drezett.

A obstetra Débora Britto lembrou que o profissional de saúde não sabe as dificuldades que aquela mulher passou para chegar até ali. Para ela, é fundamental que o hospital a acolha sem julgamento.

“Muitas pessoas colocam questões religiosas e valores morais quando vão defender que são contra esses procedimentos de interrupção, mas muitas vezes a gente negligencia que aquela mulher que traz esse pedido de interrupção, ela é atravessada pelos mesmos valores, as mesmas crenças, a mesma religiosidade — às vezes, até uma religiosidade muito mais vivida na prática do que a pessoa que tá atendendo ela. Então ,ela precisou lidar com todos esses atravessamentos para estar ali”, explicou.

Veja a nota do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia:

O Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-UFU), sob gestão da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), informa que não compactua com o comportamento relatado e ressalta que frequentemente realiza treinamentos com as equipes assistenciais sobre acolhimento, técnicas e humanização.

No início da pandemia, pacientes de algumas especialidades foram assistidos em local diverso ao habitual, devido à necessidade de readequação do espaço físico e equipes para o atendimento à grande demanda de pacientes com covid-19, o que pode ter interferido na rotina assistencial usual.

O HC-UFU/Ebserh mantém abertos canais de comunicação com toda a comunidade por meio da Ouvidoria, que acolhe e dá as tratativas adequadas a todas as manifestações recebidas.

Veja a nota do Ministério da Saúde sobre o tema:

"O Ministério da Saúde informa que, em 2020, foram realizados 2.071 procedimentos com excludente de ilicitude. Em 2021, foram registrados 1.997 procedimentos. Em 2022, até o mês de fevereiro, foram registrados 385 (dados preliminares, sujeitos à alteração). Atualmente, o Brasil conta com 111 estabelecimentos de saúde habilitados para realizar procedimento de interrupção da gestação nos casos excludentes de ilicitude. Considerando a complexidade e necessidade de cada caso, ou quando os serviços de saúde locais não dispõem de equipe qualificada para realização dos procedimentos, as mulheres são encaminhadas para outras unidades, com o objetivo de garantir o acesso, a integralidade e a segurança do cuidado previsto em lei."

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