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Brasil Segurança Pública

Armados pelo governo Bolsonaro, CACs usam acesso a material bélico para fortalecer milícia e tráfico

Há processos em que 25 Caçadores, Atiradores e Colecionadores foram acusados ou condenados por fazerem parte de organizações criminosas que agem em nove estado, aponta levantamento de O GLOBO
Criminosos apresentam certificado de registro de atiradores desportivos para escapar da prisão Foto: Bruno Kaiuca / Agência O Globo
Criminosos apresentam certificado de registro de atiradores desportivos para escapar da prisão Foto: Bruno Kaiuca / Agência O Globo

RIO - No início de 2021, a milícia invadiu a favela do Quitungo, na Zona Norte do Rio. Nos meses seguintes, comerciantes da região, inconformados com as taxas que passaram a ser cobradas, denunciaram os paramilitares, e a Polícia Civil, munida dos horários e locais das cobranças, montou uma operação. Em 15 de abril, seis homens foram presos quando recolhiam os valores. Dois deles estavam com pistolas na cintura: Marcelo Orlandini, apontado pela polícia como chefe do grupo, e Wallace César Teixeira. Na abordagem, uma surpresa: Orlandini e Teixeira afirmaram que adquiriram suas armas legalmente. Eles tinham o certificado de registro de atiradores desportivos, emitido pelo Exército, e integravam a categoria de Caçadores, Atiradores e Colecionadores, os CACs.

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Um levantamento feito pelo GLOBO em Tribunais de Justiça de todo o país identificou CACs que integram milícias e grupos de extermínio, são armeiros de facções do tráfico e atuam como fornecedores de armas e munição para assaltos a bancos e sequestros. Há processos em que 25 CACs foram acusados ou condenados por fazerem parte de organizações criminosas que agem em nove estados — 60% deles foram presos ou denunciados à Justiça depois do início do governo Bolsonaro, que facilitou a obtenção de registros e possibilitou o acesso a maiores quantidades de armas e munição pela categoria.

No caso do Quitungo, os dois presos tentaram se livrar da acusação argumentando que estavam indo para um clube de tiro e, por serem atiradores, poderiam portar armas. Um decreto de Bolsonaro de fevereiro de 2021 liberou aos CACs o porte de uma arma municiada em “qualquer itinerário” para o local da prática do tiro. Mas a explicação não convenceu: em janeiro, os dois foram condenados a sete anos de prisão por porte ilegal de arma e constituição de milícia privada.

O caso mais recente de prisão de um CAC por ligação com o crime aconteceu há três semanas. O colecionador Vitor Furtado Rebollal Lopez, o Bala 40, foi preso em Goiânia transportando 11 mil balas de fuzil. Em sua casa, na Zona Norte do Rio, policiais apreenderam 54 armas, sendo 26 fuzis. Ligações interceptadas pela polícia revelaram que Furtado usava seu certificado para comprar material bélico de forma lícita, em lojas legalizadas, e depois revender para a maior facção do tráfico do Rio.

— Ele usava a prerrogativa de ser CAC para comprar uma quantidade muito grande de armas e munição, o que é permitido atualmente, para vender para traficantes — afirma o promotor Romulo Santos Silva, responsável pela investigação.

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CACs e o crime

Em 2019, outro arsenal já havia sido apreendido na casa de um atirador certificado, Osmar da Silva Gomes, o Tirso — condenado a 37 anos de prisão por ser o principal matador da milícia de Itaboraí, no Rio. Num imóvel de Tirso — responsável por capturar e matar traficantes rivais da quadrilha e ocultar cadáveres em cemitérios clandestinos — a polícia achou dois fuzis enterrados no jardim, duas pistolas, um revólver e uma granada.

Até um chefão da maior facção do tráfico de São Paulo conseguiu virar CAC. Levi Adriano Felício, preso em 2019 no Paraguai, era apontado pelo Ministério Público como um “executivo” da quadrilha no país vizinho, responsável por adquirir drogas e enviar remessas para o Brasil. Quando Felício foi capturado, as autoridades descobriram que ele tinha um registro de colecionador e atirador válido até 2016 — mesmo integrando a facção desde a década de 1990 e tendo uma condenação nas costas por tráfico desde 2008.

O levantamento identificou outros dois CACs acusados de chefiar quadrilhas de traficantes: Luciano de Souza Barbosa, apontado como fornecedor de cocaína para bairros de Campo Grande, MS, e Reinaldo Rosa de Jesus, chefe do tráfico de Mirassol, em Brasília. Outro atirador desportivo certificado pelo Exército ligado a traficantes é o agente penitenciário Hélder Benites, condenado por facilitar a entrada de armas e celulares num presídio de São Paulo onde cumpriam pena integrantes da maior facção do estado.

Mudanças na regulamentação

Os processos também mostram que CACs fornecem armas de grosso calibre usadas em ações cinematográficas de assaltos a bancos. Em Natal, RN, o atirador Makson Felipe de Menezes Pereira, o “Playboy das Armas”, é réu por fornecer fuzis, que ele comprava legalmente, para quadrilhas que realizam ataques a carros forte no estado. Já em Pernambuco, o colecionador André Filipe Santiago responde pela negociação de uma bazuca com uma quadrilha que usaria o armamento para explodir um banco.

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Os CACs tiveram seus direitos ampliados desde o início do governo Bolsonaro. Por decreto, o presidente aumentou o limite de armas e munição a integrantes da categoria: atualmente, atiradores podem ter até 60 armas; antes o limite máximo era de 16. O PL 3.723/2019, proposto pelo Executivo para alterar o Estatuto do Desarmamento, pode flexibilizar ainda mais as normas para CACs. Ele propõe, entre outros pontos, a autorização do transporte de uma arma municiada para atiradores e caçadores, sem restrição de horário, e dificulta a fiscalização da categoria, ao determinar que investigadores que desejem ter acesso a bancos de dados sobre CACs justifiquem o motivo da pesquisa. Para Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz e especialista em controle de armas, as medidas favorecem o crime:

— Antes, as quadrilhas tinham dois principais canais de fornecimento de fuzis: tráfico de armas internacional e desvios de forças de segurança, ambos arriscados. Com as mudanças, criou-se uma brecha para acessar armas de guerra, pois um único cidadão pode comprar até 30 fuzis. O custo é em moeda nacional, com transporte documentado pelo Exército e possibilidade de receber em casa, sem riscos.

Questionado se o certificado das pessoas identificadas pelo levantamento havia sido suspenso, o Exército disse que a informação só pode ser passada a “órgãos competentes, quando necessário, por se tratar de dados sigilosos”.