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Por Luiz Ernesto Magalhães — Rio de Janeiro

Em lugar de água mineral captada direto da fonte, pura e sem adição de produtos químicos, o carioca que tenta matar a sede recorrendo aos ambulantes que vendem garrafinhas de plástico em sinais e esquinas do Rio está comprando água de origem desconhecida, muitas vezes contaminada por bactérias prejudiciais à saúde. O comércio de água adulterada, crime contra a saúde pública (de dez a 15 anos de prisão) previsto no Código Penal, foi confirmado pelo GLOBO.

Foi o que revelaram análises em laboratório da água em garrafas recolhidas por toda a cidade identificada nos rótulos como mineral ou processada com sais. Das 30 amostras testadas, 28 estavam adulteradas. Dessas, a metade tinha contaminação, sendo que duas com coliformes fecais, que podem provocar diarreia e outras doenças. O resultado mostrou que as garrafas foram manipuladas sem higiene.

Laboratório faz análise das águas minerais vendidas nas esquinas e ruas do Rio

Laboratório faz análise das águas minerais vendidas nas esquinas e ruas do Rio

A fraude a conta-gotas, de garrafinha em garrafinha, movimenta em todo o país R$ 46 milhões por ano, o equivalente a 1% do faturamento anual líquido do setor (R$ 4,6 bilhões em 2021), segundo estimativas da Associação Brasileira da Indústria das Águas Minerais (Abinam). Como o Estado do Rio representa 16,72% do mercado nacional de consumo de água mineral, as adulterações podem chegar por aqui a R$ 7,7 milhões por ano. No mercado ilegal, já existe a suspeita, pela polícia, de que as fraudes engordem os lucros da milícia e do tráfico.

— O que vocês examinaram não foi água mineral. Houve adulteração. A legislação não tolera qualquer nível de coliformes. E as garrafas são fabricadas na hora, no momento do engarrafamento. São esterilizadas — explica o presidente da Abinam, Carlos Alberto Lancia, em nome dos fabricantes.

‘Digitais’ de cada uma

Os testes foram realizados pelo laboratório Tecma, certificado pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) e dirigido pelo engenheiro químico e professor do Departamento de Engenharia Sanitária e Meio Ambiente da Faculdade de Engenharia da Uerj Ghandi Giordano. Além de analisar se os produtos estavam contaminados por bactérias, o especialista mediu dois indicadores (pH e condutividade) e os comparou com os registrados nas embalagens.

Os marcadores servem como “digitais” da origem dos produtos, porque não mudam. O pH avalia o nível de acidez da água, enquanto a condutividade é medida para determinar a facilidade com que a eletricidade circula pelo líquido.

Infografia GLOBO — Foto: Infografia GLOBO
Infografia GLOBO — Foto: Infografia GLOBO

— Como os índices são diferentes, é possível garantir que as adulterações ocorreram depois que saíram da fábrica. Esperava encontrar problemas, mas me surpreendi com o tamanho da fraude — explicou o engenheiro químico.

Gandhi disse que outros indícios comprovam que o produto não é autêntico. Quatro amostras de uma mesma marca compradas em Campo Grande, Gericinó, Bangu e Del Castilho tinham níveis diferentes de pH e condutividade.

— Se o problema fosse na fonte, todas as amostras teriam a mesma composição — afirmou Gandhi.

Em outra amostra, recolhida no Méier, a água estava clorada. Fontes naturais não contam com produtos químicos. Mas havia outra surpresa.

— Pelas características químicas, essa água não foi processada na Estação de Tratamento do Guandu. A água na garrafa é de fora da capital — acrescentou.

O presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes-RJ), Miguel Fernandéz y Fernandéz, destaca que a venda de água contaminada por bactérias pode levar até mesmo à morte:

— O perigo é invisível. Não dá para acreditar apenas no visual, já que nessas amostras a água sequer estava turva.

Os especialistas apontam fatores que facilitam a fraude. Na maioria das amostras, as garrafas foram entregues lacradas pelos ambulantes. Um dos locais em que isso ocorreu, por exemplo, foi na Linha Vermelha — onde a amostra estava adulterada. Ocorre que não é apenas fácil, mas também barato, adquirir tampas com lacres intactos, para iludir quem compra água. Em sites, pacotes de 200 unidades sem identificação de marca são vendidos, em média, por R$ 40 (R$ 0,20 a unidade).

— Muitas fábricas sequer identificam o nome no rótulo, o que dificulta ainda mais saber se a garrafa é de água mineral original ou adulterada. A contaminação das amostras revela que as garrafas estão sendo reaproveitadas, após serem recuperadas provavelmente por catadores. Uma das alternativas para o consumidor ao menos se prevenir seria amassar a embalagem antes de jogar fora. Mas há a questão da logística reversa pela indústria, que deveria ser mais atuante — diz Fernández y Fernández.

Sobre a logística reversa, Lancia explica que, há cerca de dois anos, empresas de embalagens plásticas se uniram em uma estratégia conjunta. Segundo ele, hoje 22% das embalagens são reprocessadas, com regras regulamentadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O material dá origem a uma matéria-prima conhecida como PCR (materiais reciclados pós-consumo):

— Trata-se de um processo. A meta é conseguirmos reciclar 99% das garrafas até 2050 — explicou.

Até R$ 5 por garrafa

Os ambulantes compram as garrafas em fardos com 12 unidades por preços no atacado que variam entre R$ 9 e R$ 11, valores praticados também pelo mercado formal. Na rua, as garrafas são revendidas por R$ 3, em média. Mas O GLOBO chegou a pagar R$ 5 em um camelô que trabalha em frente à estação do bondinho do Pão de Açúcar, na Praia Vermelha.

Saiba como foi feita a coleta

A metodologia da amostragem foi definida pelo professor Ghandi Giordano. Em cada ponto da cidade, foram compradas três garrafas, sendo que uma para ficar como contraprova. Um técnico do laboratório acompanhou a coleta das amostras, que foram colocadas em embalagens térmicas. As proprietárias das marcas testadas enviaram ao GLOBO laudos do controle de qualidade dos lotes comprados, para mostrar que não saíram contaminados da indústria. Como não há indícios de que as fábricas foram responsáveis pela fraudes, as empresas não foram identificadas. O mesmo foi feito com os ambulantes.

Uma fonte criminosa: milícia e tráfico são investigados

As delegacias de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) e do Consumidor (Decon) iniciaram na semana passada uma investigação conjunta para apurar se traficantes e milicianos montaram esquemas de venda de água mineral adulterada para aumentar seus rendimentos. O ponto de partida foi uma operação realizada terça-feira passada na Gardênia Azul, na Zona Oeste do Rio, na qual foram encontrados em três depósitos água em galões de 20 litros e garrafinhas de plástico.

Infografia GLOBO — Foto: Infografia GLOBO
Infografia GLOBO — Foto: Infografia GLOBO

Pelas más condições de armazenamento, o produto foi apreendido e declarado impróprio para consumo, mas amostras foram enviadas para a perícia. Os laudos ainda não estão prontos.

— Nessas áreas, o crime organizado lucra explorando sinais clandestinos de TV, por exemplo, e estabelece exigências para a prestação de serviços, como as vendas de água e de gás. Fraude na água pode ser um outro filão. Não ficaria surpreso se isso estivesse acontecendo — disse o delegado titular da Draco, André Neves.

A operação na Gardênia Azul ocorreu uma semana após um comerciante ser assassinado na comunidade. A suspeita é que o crime tenha sido cometido em represália ao fato de a vítima ter se recusado a vender apenas galões de fornecedores indicados por facções criminosas. As embalagens têm rótulos de marcas totalmente desconhecidas, de acordo com a polícia.

Durante essa reportagem, O GLOBO conversou não apenas com os camelôs que venderam as garrafas levadas para análise como com outros ambulantes que oferecem água nas ruas. Eles contam que compram o produto em depósitos na Central do Brasil (próximo ao Morro da Providência), em Curicica, na Gardênia Azul, no Cesarão (Santa Cruz) e no Complexo da Maré, áreas controladas pelo tráfico ou por milícias. Alguns citaram pequenas revendedoras perto de onde trabalham.

É o caso de um “puxadinho” em Madureira, à beira da linha da SuperVia, na Rua Ângelo Dantas, próximo ao terminal do BRT. A reportagem identificou o local por meio de informações passadas pelos próprios camelôs que se abasteciam no entreposto, mas que estavam insatisfeitos com a qualidade da mercadoria. A amostra recolhida no bairro para análise testou positivo para coliformes totais (sujeira).

— Todo mundo compra lá. Não posso afirmar se a água foi mudada. Mas já teve gente que reclamou comigo e pediu o dinheiro de volta. Se isso estiver acontecendo, também somos vítimas — disse uma ambulante.

Esvaziado às pressas

Com a Subprefeitura da Zona Norte e a Guarda Municipal, a equipe do GLOBO esteve no espaço no último dia 21. O local, que era monitorado por um circuito interno de TV, tinha sinais de ter sido abandonado às pressas. No galpão, havia ratos circulando pelo chão, e foram encontradas notas fiscais de distribuidoras de bebidas, garrafas de água vencidas desde 2019, embalagens com gasolina e caixas usadas para armazenar mercadorias. Um mural de cortiça exibia avisos — entre eles, o de não entrar na linha férrea. Os fios das câmeras de vigilância estavam cortados. O responsável pelo lugar não foi encontrado.

— Que no local operava um depósito clandestino, foi comprovado. A informação sobre a reportagem deve ter circulado entre ambulantes, e os responsáveis se mobilizaram para evitar o flagrante — disse o subprefeito da Zona Norte, Diego Vaz.

A SuperVia também esteve no local dia 27. E encontrou um cenário diferente: tudo vazio, nenhum vestígio.

Uma das amostras contaminadas por coliformes fecais foi comprada na Avenida Brasil, na altura de Bonsucesso. O ambulante se disse surpreso com o resultado.

— Compro água geralmente em depósitos na Vila do João, na Baixa do Sapateiro e em supermercados do bairro. Não tenho como saber se foi adulterada. Sempre trabalhei honestamente. Se quiser, leve mais garrafas para testar — disse.

A segunda amostra com teste positivo para coliformes fecais foi comprada no Largo do Machado, em frente ao posto do Detran, de um ambulante idoso.

— A gente compra na Central do Brasil, em depósitos muito procurados por camelôs do Centro e da Zona Sul. Essa marca testada, acho que veio da Ceasa. De qualquer forma, já paramos de vender água. Agora, voltamos a trabalhar só com frutas — disse a filha do camelô.

Há dois anos vendendo garrafinhas em frente à sede do Flamengo, na Lagoa, o ambulante disse que também compra mercadorias na Central. O mesmo fornecedor abastece outro camelô com ponto em frente à estação do metrô de Botafogo. Em ambas as amostras, as águas, além de terem sido adulteradas, estavam contaminadas com coliformes totais.

— Todo mundo compra na Central. Já desconfiava que poderia ter algo de errado, mas não sou o responsável. Outro dia, um guia turístico brigou comigo dizendo que eu tinha vendido água de torneira e que o gosto não era bom — contou o rapaz.

Na Taquara, o camelô disse que a mercadoria viria de uma fonte na Estrada do Catonho, em Sulacap, na Zona Oeste:

— Compro de pessoas que passam de carro todos os dias abastecendo os vendedores de rua.

Em Bangu, o ambulante que vendeu uma das amostras adulteradas disse que comprou as garrafas em promoção num caminhão que chegava a um supermercado do bairro:

— Além do mais, eu não fabrico água. A água vem de Deus.

Na Pavuna, no Méier e no Maracanã, os camelôs citaram pequenos depósitos localizados nos bairros:

— Como não tenho licença da prefeitura nem peço nota — contou o ambulante abordado no Maracanã.

Vácuo na fiscalização dificulta controle de qualidade

A falta de fiscalização é uma das dificuldades para identificar se a água mineral vendida nas ruas é adulterada ou não. Nenhum órgão público tem como rotina testar a qualidade do produto vendido, para confirmar a existência da fraude.

A Agência Nacional de Mineração (ANM), que fiscaliza as jazidas e o processo de extração da água, informou que suas atividades se concentram no mercado legalizado: “Os pontos avaliados pela entidade são a captação, o envase e o armazenamento de água. Quaisquer possíveis adulterações no produto envasado ou nas embalagens são crimes tipificados por lei e deverão ser apurados por força policial”.

Na prefeitura, a fiscalização do comércio em geral é feita pela Secretaria de Ordem Pública (Seop) e pelo Instituto Municipal de Vigilância Sanitária (Ivisa-Rio). Os agentes da Seop atuam na verificação da procedência do produto. Sem nota fiscal, as mercadorias são apreendidas. As embalagens com água mineral — classificada como gênero alimentício — são descartadas automaticamente se estiverem mal armazenadas ou vencidas.

Dos camelôs, só licença

Os camelôs licenciados pela prefeitura dizem que geralmente os fiscais atuam por amostragem. Pedem que apresentem a licença e nem sempre exigem que exibam notas fiscais de todas as mercadorias. Das 30 amostras analisadas a pedido do GLOBO, pelo menos 20 foram compradas de ambulantes credenciados. A Seop informou que tecnicamente não tem condições de avaliar qualquer forma de adulteração de águas.

Já a Ivisa fiscaliza as condições de armazenamento e de higiene. Se não forem apropriadas, os produtos também são inutilizados sem análise das amostras. O padrão é o mesmo se a fiscalização for em supermercados, bares ou camelôs.

O Procon estadual, por sua vez, informou não ter relatos de denúncias de consumidores sobre água mineral.

O presidente da Associação Brasileira da Indústria das Águas Minerais (Abinam), Carlos Alberto Lancia, propõe que as autoridades fluminenses regulamentem um selo de fiscalização como o existente em produtos como cigarros e bebidas alcoólicas. Além de dificultar as fraudes, a medida, acredita Lancia, poderia incrementar a arrecadação de ICMS.

— São Paulo, por exemplo, já regulamentou o selo, bem como o Ceará e o Rio Grande do Norte. O resultado em São Paulo foi um aumento de 150% na arrecadação tributária. Há três anos reivindicamos que a Secretaria estadual de Fazenda do Rio regulamente seu selo. Mas, infelizmente, até agora faltou vontade política — disse Lancia.

Em nota, a Secretaria estadual de Fazenda informou que não é competência do órgão fiscalizar a procedência e a qualidade dos produtos. “A secretaria atua como órgão fiscalizador junto às empresas e no transporte de mercadorias, combatendo a sonegação fiscal, crime que muitas vezes vem acompanhado da falsificação”.

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