• Ana Laura Stachewski
Atualizado em
Processo seletivo; RH (Foto: PeopleImages/Getty Images)

Softwares analisam candidatos pelo perfil comportamental, excluindo informações como gênero e formação (Foto: PeopleImages/Getty Images)

No RH, a inteligência artificial já é uma aliada da produtividade. A tecnologia permite analisar currículos e testes de forma automatizada, economizando horas de trabalho e permitindo aos recrutadores se concentrar em outras etapas. Mas seu uso também traz desafios: é preciso treiná-la para que não reproduza e reforce vieses contra alguns candidatos, por fatores que vão do gênero à instituições de ensino em que estudaram.

Em 2018, a Amazon desistiu de seu projeto de software de recrutamento por esse motivo. A ferramenta apresentou vieses contra mulheres e encontrou mais de uma forma de aplicar esse filtro, rebaixando até mesmo currículos com instituições de ensino exclusivas para alunas. O motivo, de forma resumida, é o fato de o mecanismo aprimorar sua análise a partir de exemplos – e o mundo corporativo, em geral, ainda carece de diversidade.

Desde então, outras empresas têm buscado formas de fazer o que a gigante varejista não conseguiu: treinar e monitorar algoritmos para eliminar vieses em vez de aplicá-los em massa. E algumas têm conseguido bons resultados. No ano passado, a produtora de papel e celulose Suzano adotou o MindMatch, software de recrutamento da startup Mindsight, em um processo seletivo de estágio. Com 78 candidatos por vaga, o RH levaria cerca de 117 horas para analisar 60% dos currículos. Em vez disso, a etapa levou apenas cinco horas.

A economia de tempo não foi o único ganho. Entre os 63 finalistas do processo seletivo, 49% eram mulheres e 51%, homens. “Nós não olhamos para o gênero na seleção. Esse percentual apareceu naturalmente ao final dos testes”, explica Felipe Crivello Cesar, líder de customer success da Mindsight. Fatores como a formação profissional e o nível de inglês também ficaram de fora. Por meio de testes, o processo avalia os candidatos de acordo com o perfil ideal para cada vaga. Ou seja, as soft skills são a prioridade.

Kassio Castro, analista de planejamento e gestão de talentos da Suzano, cita um exemplo: uma das posições era para a área florestal, mas sua atuação seria mais voltada às vendas. Ao olhar apenas para o currículo, seria difícil diferenciar os concorrentes em relação a esse perfil. E, segundo Castro, os profissionais nem sempre têm uma visão clara sobre si mesmos. “O MindMatch tira a gente no achismo e da percepção individual de cada canditato”, explica.

Além do currículo

Para fazer o match, o software usa como base referências internas da empresa, como as características de colaboradores que se destacam em suas áreas. A Votorantim Cimentos foi outra que começou a adotar esse método. “Antigamente, os filtros eram pelas competências e pela experiência profissional. Hoje, o principal é a aderência ao perfil cultural”, explica Aldo Frachia, gerente de diversidade e atração. Desde 2019, as seleções iniciais dos processos de trainee da empresa são feitas dessa forma. 

O conceito de fit cultural e os processos seletivos às cegas, que ignoram informações como gênero e idade, não são uma novidade. Com a IA, o ganho está na escala e rapidez com que essas análises são feitas. Mas como garantir que erros como a da Amazon sejam evitados? Com a dose certa de treinamentos e curadoria humana. “Temos um mercado de trabalho enviesado. Como a IA aprende com as contratações, a tendência é que enviese as seleções se não fizermos nada”, explica Robson Ventura, cofundador da Gupy. A startup desenvolveu a Gaia, uma inteligência artificial voltada a processos de seleção.

Para evitar o viés de gênero, uma das estratégias usadas pela startup é analisar apenas o radical das palavras no currículo – como “engenheir” em vez de “engenheiro”. Outra informação suprimida é a localização. Se vários profissionais de uma área ou empresa moram em determinadas regiões, a IA corre o risco de entender que aquele é um bom critério para selecionar os futuros contratados.

Mas nem todos os vieses são tão simples de identificar. Por isso, a startup mantém o que chama de “base de ouro”: um banco de dados com currículos diversos e representativos em critérios que vão do gênero à qualificação profissional. Antes que qualquer modelo de algoritmo seja aplicado a processos reais, é submetido a essa base. “Ele tem que indicar uma divisão 50/50 entre homens e mulheres, por exemplo. Se indicar 30/70, existe um viés.”

O aspecto de gênero é apenas uma das questões, e existem margens de erro consideradas aceitáveis. Mas a estratégia dá uma ideia do que é necessário para tornar a inteligência artificial mais ética – e os processos seletivos, realmente diversos. Se a base de currículos analisada não for heterogênea, os resultados também não serão. E aplicar filtros com “boas intenções”, segundo Ventura, também pode gerar vieses negativos.

Olhar para dentro

Para tornar a base de currículos mais plural, o trabalho vai além do processo seletivo: envolve desde o modo como a empresa se posiciona no mercado até a abordagem que utiliza na divulgação de uma vaga. Se a diversidade não existe em nenhum desses lugares, a chance de atrair talentos diversos é menor. “Esse processo de atratividade e consideração, de se imaginar na empresa, é muito importante”, diz Aldo Frachia, da Votorantim Cimentos.

Um dos primeiros passos dados pela empresa, em 2017, foi fazer um mapeamento interno para identificar onde estavam as lacunas. O foco inicial era a contratação de pessoas com deficiência (PcD), mas o processo logo se expandiu. Em 2019, a empresa criou um banco de talentos com foco em diversidade, hospedado em sua página na plataforma da Gupy. Também recorreu a estratégias mais diretas, como um processo seletivo de estágio técnico voltado exclusivamente para mulheres.

A formação de recrutadores e lideranças é outro fator importante, assim como o diálogo com os funcionários. “Fazemos um trabalho sobre vieses inconscientes com todos os colaboradores e capacitações particulares com gestores”, diz Kassio Castro, da Suzano. A empresa tem como meta ter 30% dos cargos ocupados por mulheres e 30% por pessoas negras até 2025. E a inteligência artificial é vista como uma das aliadas para acelerar esse processo. “É muito comum que o RH seja uma área passiva, receptiva. Ferramentas como essa a tornam mais ativa.”