13/10/2013 09h00 - Atualizado em 14/10/2013 09h56

Índios são mestres no cultivo de dezenas de variedades de pimenta

No norte da Amazônia, índios baniwa mantêm rituais para cultivar pimenta.
Sistema agrícola se tornou patrimônio cultural do Brasil

Do Globo Rural, com informações do Globo Natureza

No norte da Amazônia, uma tribo de índios domina uma riqueza genética. São os baniwas, mestres na domesticação e no cultivo de dezenas de variedades de pimenta, a maioria nativa.

O som da flauta baniwa é um presente que Mário ganhou do pai, que aprendeu com o avô, que, por sua vez, recebeu dos ancestrais dele. Agora, com o amigo, Luiz tenta manter viva essa música, junto com os utensílios tradicionais e a maloca que ele construiu com as próprias mãos. Na língua baniwa, ele explica que preservar uma música é um passo para preservar uma cultura inteira. O povo dele sempre fez isso.

A equipe de reportagem viajou até a Cabeça do Cachorro, região no extremo norte do Amazonas, para entender como os hábitos dos indígenas ajudaram a preservar uma joia da culinária brasileira: a pimenta. A primeira parada foi em São Gabriel da Cachoeira, uma bela cidade de 38 mil habitantes às margens do rio Negro. Exceto pelo avião, o transporte pelos rios é a única forma de chegar e sair do local.

Depois de um dia de preparação, que terminou com um pôr do sol espetacular, a equipe do Globo Rural partiu cedo, rumo mais para o norte, em um potente barco do Exército a caminho do rio Içana, um afluente do rio Negro, perto das fronteiras com a Colômbia e a Venezuela.

O destino foi o Tunuí Cachoeira, que fica no rio Içana, terra do povo baniwa. A viagem até lá tem a duração de seis horas. O Exército Brasileiro mantém no trecho os pelotões de fronteira, para proteger a Amazônia. Na região, quase todos os soldados são indígenas que nascerem nas comunidades, que podem ser avistadas nas margens, ao longo da viagem. Eles conhecem muito bem o labirinto de rios no meio da selva.

Tunuí Cachoeira é uma aldeia com pouco mais de 300 pessoas. A entrada da comunidade fica em um remanso muito bonito que as crianças aproveitam para brincam e espantar o calor. Os pequenos e os jovens passam o dia na escola, do campo de futebol. Os adultos têm muito trabalho na roça.

Em Caatinga da Amazônia apenas algumas pimentas são retiradas de cada pé. Elas são cuidadosamente colocadas  em um envelope feito de folhas de ambaúma. "Então, ela protege as pimentas. Para não pegar umidade, ela está preservada e pode durar três, quatro dias", conta o índio baniwa Ronaldo da Silva Apolinário.

Cada espécie é um orgulho para a dona da roça. A índia apresenta o nome das pimentas, "ati itaperri" e "zacuite". "Elas têm sabores diferentes e cheiro diferente", explica Apolinário. No espaço, a maioria das espécies é nativa, mas também tem pimentas trazidas de outras regiões.

Andar em uma clareira, com a moradora Vera Lúcia, é como fazer uma viagem no tempo. O povo baniwa habita a região há, pelo menos três mil anos. É o que existe de registro arqueológico. Talvez exista antes disso. E, como a pimenta é o principal dos ingredientes, é provável que, desde essa época, eles tenham domesticado as várias espécies de pimenta que podem ser encontradas ali.

A mitologia baniwa conta que no início, havia apenas seres primordiais, que ainda não eram gente nem bicho nem planta. Até que um dia, um grupo descobriu a fonte do poder sobre as outras espécies. "Antigamente, existia uma grande árvore que, em baniwa, é chamada 'cari catadapa'. E que, nesta árvore, existia diversos tipos de fruta, uma delas é a pimenta. Então existiam seres chamados 'wacawene' em baniwa. Dentre eles, existia um ser primordial também, que é chamado "inhapculiqueu", que é um dos principais conquistadores de todos os bens da cultura baniwa. Ele usou a pimenta como um instrumento de proteção do próprio corpo e pra cozinhar também os alimentos", conta o índio baniwa Juvêncio Cardoso.

Nos rituais de passagem para a idade adulta, os jovens aprendem que a pimenta é bactericida, ajuda a evitar a contaminação de alimentos consumidos frescos. Na representação, um pássaro é alimentado com peixe e morre. Mas, depois de acrescentar a pimenta, o grupo pode comer com segurança. Da planta mitológica aos dias de hoje, a pimenta manteve a importância e aumentou a presença nas aldeias. Essa é a constatação de uma pesquisa do Programa Jovem Cientista da Amazônia, mantido pela ONG ISA (Instituto Sócio Ambiental). "A gente pesquisou só na bacia do Içana, de Nazaré até Tucumã, e a gente achou 57 variedades", conta a professora baniwa Silvia Garcia da Silva.

Pelas regras dos baniwas, a mulher não pode se casar com um homem da mesma comunidade. Essa medida evita problemas de união entre parentes e ajuda a ter acesso a recursos de outras regiões, como a pimenta, além de facilitar a circulação das sementes e a preservação de espécies. "As mulheres, à medida que se casam, elas se mudam para outra comunidade, para a comunidade do marido, levando sementes, manivas, que é o patrimônio. É com isso que elas podem começar e fundar uma nova família", explica o ecólogo do Instituto Sócio Ambiental (ISA) Adeilson Lopes da Silva.

Em toda a Amazônia já foram catalogadas mais de 150 tipos de pimenta. e, como elas são plantadas juntas, os cruzamentos dão origem a novas variedades. "Existem várias espécies novas, vamos dizer assim, que os baniwa não conseguem dar o nome, porque os pássaros consomem muito a pimenta. Então, eles comem, levam para outro canto e vão plantando junto com as pessoas", diz o índio André Baniwa.

Algumas aldeias têm até encantadoras de pimentas. É sempre uma anciã que herdou os segredos de ancentrais e passou por muitos rituais de preparação ao longo da vida. Ábomi, que significa "avó", em baniwa, canta para fazer as pimentas brilharem. Ela conta que tem 75 anos ou mais, não sabe exatamente a idade, mas, apesar disso, ela não parece ter todos esses anos no rosto. Além disso, tem uma boa saúde. A explicação que ela tem para isso é porque ela vive dentro do jardim de pimenta que cultivou.

Os baniwa querem temperar o resto do país. Construíram, no canto da aldeia, a "aattipana dzoroo". Esse nome tem que ser explicado: "aatti" é "pimenta" e "pana" quer dizer "casa". E "dzoroo" é um besouro da região que constrói uma casinha feia por fora, mas muito lisa por dentro. A casa de pimenta baniwa é simples e pequena, mas o trabalho feito ali segue padrões de qualidade e limpeza definidos pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
A "aattipana dzorro" tem dezenas de espécies de pimenta conservadas in natura e secas. É um local de estudo e de produção.

Ronaldo e Osinete fabricam na casa de pimenta baniwa a "jiquitaia", que significa "pimenta com sal". O processo é artesanal: as pimentas, de todos os tipos, são trazidas pelas mulheres da aldeia, que recebem pelo que vendem. Elas são selecionadas, muito bem lavadas e colocadas em um forno para secar. Ronaldo é o responsável por transformá-las em pó. Ele fica horas assim e nem pode se sentar. "Se você sentar, o nariz vai ficar perto da boca do pilão e inspirar o pó direito. Aí, não aguenta muito tempo", ele conta.

Do pilão para a peneira, a pimenta precisa ficar bem fina e homogênea. Depois, com ajuda de uma balança, é feita uma mistura: exatos 90% de pimenta para 10% de sal. A produção é pequena é o objetivo é mantê-la assim, para não mudar a rotina da aldeia. Por isso, a pimenta jiquitaia é uma iguaria difícil de ser encontrada. Ela é vendida apenas em algumas casas de São Paulo, por exemplo.

Em 2010, o sistema agrícola dos baniwas e de outros povos indígenas da região do rio Negro passou a ser considerado patrimônio cultural do Brasil.

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