Rio

Treze mil famílias de Rocinha e Vidigal receberão títulos de posse de seus imóveis

Só na primeira comunidade, serão oito mil beneficiados; na segunda, cinco mil
Luzia Oliveira é moradora da Rocinha: 'Quando tentaram me tirar daqui, eu só tinha um recibo, escrito à mão, sem valor para a Justiça. Hoje, tenho o título de propriedade' Foto: O Globo / Gustavo Stephan
Luzia Oliveira é moradora da Rocinha: 'Quando tentaram me tirar daqui, eu só tinha um recibo, escrito à mão, sem valor para a Justiça. Hoje, tenho o título de propriedade' Foto: O Globo / Gustavo Stephan

RIO - Luzia Antônia dos Santos Oliveira comprou um imóvel na Estrada da Gávea, na Rocinha, na década de 60, com o dinheiro emprestado pela patroa. Lá viveu com quatro filhos e o marido por duas décadas, até que um vizinho, que se dizia dono do terreno, foi à Justiça exigir a saída da família. A ação não foi adiante, mas bastou para Luzia perceber como era importante correr atrás de um documento que comprovasse ser a proprietária da casa. Desde então, vários programas governamentais alimentaram o sonho da regularização fundiária de moradores da favela, que continuaram vivendo na informalidade. Agora, um projeto começa a sair do papel e, em 2012, deve entregar oito mil títulos de reconhecimento de posse a famílias da Rocinha (cerca de um terço da comunidade), numa parceria entre a Fundação Bento Rubião e a Secretaria municipal de Habitação. No Vidigal, outras cinco mil famílias (metade da comunidade, segundo o governo do estado) também terão suas propriedades regularizadas pela Secretaria estadual de Habitação.

— Quando tentaram me tirar daqui eu só tinha um recibo, escrito à mão, sem valor para a Justiça. Hoje, tenho o título de propriedade — conta Luzia, hoje com 85 anos e morando na mesma casa. — Eu amo a Rocinha.

Foram necessários 19 anos para que ela ganhasse uma ação, por usucapião, e o título da propriedade. Assim como Luzia, muitos moradores da Rocinha compraram imóveis e terrenos em loteamentos irregulares oferecidos por empresas que eram donas de terrenos. Quando muito, as famílias recebiam apenas um contrato de promessa de compra e venda. Um grupo de moradores está há anos na Justiça tentando ter reconhecida a propriedade. Porém, somente oito deles conseguiram o títulos, com a ajuda da Fundação Bento Rubião, ONG que há 25 anos trabalha pela regularização fundiária em favelas.

Um decreto de lei, aprovado em dezembro de 2009, abriu perspectivas para esse trabalho. Desde então, os títulos de posse podem ser concedidos em processos administrativos, fugindo da morosidade da Justiça. Para isso, é preciso que uma instituição pública participe do processo. Os títulos de posse, após cinco anos, tornam-se documentos de propriedade, como os de qualquer outra região da cidade, podendo, inclusive, ser vendidos. A fundação já havia feito o levantamento dos moradores de três áreas da Rocinha que abrigam oito mil famílias, ou seja, cerca de um terço dos cem mil moradores da favela (considerando que cada uma tem, em média, quatro integrantes).

O processo passa por algumas etapas. A principal delas é o levantamento da área demarcada, para que todos os moradores e proprietários originais das terras sejam identificados. A documentação é, então, registrada em cartório e, se não houver questionamentos, os títulos de posse começam a ser concedidos.

A Fundação Bento Rubião já completou o levantamento dos moradores do Bairro Barcelos (na parte baixa da Rocinha, uma das áreas de ocupação mais antigas), de uma faixa acima da Estrada da Gávea e do Laboriaux. O trabalho recebeu verbas do Ministério das Cidades. A prefeitura registrará em cartório, esta semana, o auto de demarcação do Bairro Barcelos. Para as duas outras regiões a serem $, o município aguarda a GeoRio apresentar um relatório das áreas de risco.

— Não podemos conceder títulos de posse para imóveis que estejam em risco de desmoronamento. De qualquer forma, o intuito é reassentar o mínimo possível de pessoas nessas áreas e solucionar a maioria dos casos com obras de contenção — diz o secretário municipal de Habitação, Jorge Bittar.

Os imóveis do Laboriaux têm a vantagem de ocupar um terreno do município. Nesse caso, serão emitidas concessões de uso por tempo indeterminado. Os documentos equivalem ao título de posse. Assim, o processo acaba encurtado. No Vidigal, a situação é a mesma: os imóveis estão instalados em área do estado. Lá, cinco mil famílias vão receber os títulos de propriedade por meio de escritura pública de doação ou termo de concessão de uso até junho de 2012, segundo a Secretaria estadual de Habitação.

O momento é histórico para as comunidades, na avaliação do arquiteto e urbanista Ricardo de Gouvêa Corrêa, coordenador-executivo da Bento Rubião. Em 2010, ele recebeu, no Rio, um troféu e US$ 100 mil da agência Habitat, da ONU, em reconhecimento ao programa "Terra e Habitação", considerado a melhor iniciativa do mundo. A expectativa de Corrêa é que as oito mil famílias da Rocinha recebam os títulos até o fim de 2012.

— Assim como existe carteira de identidade para os direitos civis, o direito à cidade e à cidadania é garantido pelo título de propriedade. Estamos reconhecendo direitos, previstos na legislação brasileira. Isso é bem diferente de legalizar o ilegal, como muitos ainda dizem por aí.

O urbanista explica ainda que, com a regularização plena de um bairro, as benfeitorias de infraestrutura — como o asfaltamento de ruas e a construção de redes de esgoto — deixam de ser, em época de eleição, benesse de políticos.

— Há ainda a questão econômica. Estudos mostram que, quando regularizado, um imóvel pode se valorizar em até sete vezes, após alguns anos. E a propriedade passa a poder ser oferecida como garantia para empréstimos, o que facilita a realização de melhorias nesse imóvel — diz.

Agente social da ONG no projeto de regularização fundiária e morador da Rocinha, José Martins de Oliveira lembra que famílias foram expulsas de suas casas por traficantes. Se elas tivessem títulos de propriedade, destaca, poderiam retomá-las.

— Para as famílias que vivem na comunidade, isso ainda representa deixar um patrimônio de herança para os filhos — afirma Martins.

José Nazaré Braga, morador do Caminho do Boiadeiro, na Rocinha, fala repetidamente em segurança quando o assunto é a importância do reconhecimento de sua propriedade. Na favela desde 1964, ele comprou o terreno da casa onde mora da extinta empresa Cristo Redentor, responsável pelo loteamento irregular. Braga, que tem apenas um recibo, já obteve uma decisão favorável na Justiça, mas ainda aguarda o documento ser aprovado pelo poder público.

— Quando cheguei aqui, era quase só mato. Chovia e não dava para chegar em casa. Com o tempo, a gente vai se enraizando. Esse documento é muito importante para mim e minha família. Agora, tenho mais esperança de que vou conseguir.