Coluna
Artigo Lucélia Santos granderio@oglobo.com.br

'Na cultura brasileira provinciana, só pobre anda de ônibus'

Texto exclusivo da atriz Lucélia Santos reúne 11 sugestões de melhorias no transporte público carioca

Fui invadida na minha simplicidade e involuntariamente exposta publicamente semana passada, através das redes sociais, por uma foto roubada de uma fã xereta!

Estava eu andando no busão, como sempre faço quando não tenho motorista. Não dirijo carros, nunca dirigi por toda minha vida. E gosto de viver assim, é meu jeito, pronto! Sempre andei de ônibus.

Fazia um calor escaldante, e eu devia estar mesmo deprimida pois viajava em pé, num ônibus lotado saindo da minha aula de ioga no Humaitá a caminho de casa na Barra.E “clique”, ela me fotografou, eu não vi. Dois dias depois, indo novamente no mesmo busão, para a mesma aula no Humaitá, fui surpreendida por uma chamada de um site de fofocas sobre a foto no 524 que estava rodando na rede social. Era como se estivesse sendo perseguida pelo Google Maps, sendo rastreada, me deu uma sensação horrível de invasão. No primeiro momento, não entendi direito o que estava acontecendo.

Só ao chegar em casa já tarde da noite, vi finalmente nas redes sociais a foto, os comentários e a repercussão. Fiquei sinceramente chocada, não entendo esse tipo de atitude, de comportamento no Brasil.

O que deveria ser a coisa mais normal do mundo estava se transformando num acontecimento de mídia. Comecei a refletir sobre isso, respondi no mesmo momento pelo Twitter. Resolvi falar com a imprensa ao invés de rejeitá-la.

A meu ver, o que ocorre é algo muito primário, advindo da cultura brasileira provinciana de que só pobre anda de ônibus. A elite brasileira se exila nos seus carrões enormes, lindos, com ar condicionado, vidros pretos pra não ser vista, mas principalmente para não ver! Ninguém quer olhar ao redor, pois dói. Olhar para o outro e para a necessidade do outro dói, tira da zona de conforto.

E é sobre isso que devemos falar. Sobre o coletivo, sobre os outros, sobre a sociedade. E sobre o egoísmo vigente na sociedade.

Decidi aproveitar essa oportunidade para discutir publicamente a situação dos transportes coletivos no Rio. Eu posso fazer isso muito bem. Dona Francisca, minha faxineira que viaja três horas de ônibus para chegar ao trabalho, meu caseiro, meus funcionários do dia a dia não podem. O povo brasileiro não pode, pois não se sente no poder de fazê-lo, por razões de educação que valeriam outro estudo.

E os que poderiam discutir o assunto, pois têm verve e condições para fazê-lo, não o fazem porque são egoístas, estão escondidos e refugiados nos seus carrões muitas vezes blindados, com medo dos “pobres”. E o mais cafona é que essas mesmas pessoas se fotografam felizes da vida nos metrôs de Londres, Nova York, Paris, Frankfurt, pois acham o máximo andar de metrô lá fora! E de ônibus também. E até postam nas redes sociais, sorridentes. MUITO CAFONA!!! Argumentam: “Mas o transporte coletivo aqui não dá!” E não dá “mermo, mermão”!

Então vamos trabalhar pra melhorar o transporte coletivo para todos!

Estou aqui estudando por onde começar. O serviço prestado pelos ônibus cariocas decorrem de concessões públicas, então deveríamos conhecer melhor os contratos que regem o jogo dessas concessões.

Deve haver, ou deveria haver, um órgão regulador e cuidador, controlador, desses serviços prestados à população por parte do governos, não? Que cobrassem competência, eficiência nos serviços. E que exigissem a manutenção dos equipamentos, o que não ocorre há décadas no Rio de Janeiro...

Quem são?

Quem são os protagonistas responsáveis pelo transporte público no Rio? O governador e o prefeito nós conhecemos, os outros quem são? Vamos conversar? Queremos conversar com vocês. Às vistas da abertura da Copa do Mundo, vocês deveriam querer conversar e trabalhar para resolver, se não poderão ser achincalhados pela imprensa internacional.

A Presidente Dilma acaba de anunciar que está liberando 4 bilhões de reais para mobilidade urbana, esse assunto é portanto, o assunto do dia.São recursos do PAC 2. Queremos saber como ela pretende usar esse dinheiro e quem será responsável pela partilha e sistema de prioridades dessa utilização.

Tomei a liberdade de enumerar algumas das necessidades para os ônibus no Rio, para o conforto de pessoas como eu e Dona Francisca. São elas:

1- Mudança da frota para circulação de ônibus novos. Fora com a sucata!

2- Se quiserem manter os velhos, que seja feita uma revisão geral nos amortecedores, bancos, freios, escapamentos e sistema de refrigeração. Máquinas velhas com equipamentos jorrando gases são dos principais responsáveis pela poluição e destruição da atmosfera.

3- Numa cidade quente como a nossa o razoável seria ar condicionado em todos os ônibus. Questão de saúde!

4- Que seja aumentada a frota para que toda a população possa viajar sentada. Que se crie uma logística inteligente das linhas.

5- Mapeamento das zonas de maior demanda, comum planejamento para atender a todos nas horas de pico.

6- Pontualidade! Que os horários dos ônibus sejam estampados nos postes, nos pontos de parada.

7- Iluminação adequada nos locais de parada, para maior segurança de quem viaja, principalmente as mulheres. Isso evitará assaltos à população. E ataques sexuais às mulheres.

8- Revisão dos salários dos motoristas e carga horária, para evitar acúmulo de estresse, pois muitos deles dirigem como alucinados, às vezes por falta de tempo para comer, já assisti a cena assim. Dar atendimento psicológico e treinamento social psicológico aos motoristas, gerando cordialidade e respeito. Há várias observações sobre isso nos metrôs do Rio, para relacionamento entre passageiros. Tem que passar a matéria para os condutores também. Treinamento!

9- Que se crie uma inteligência para melhorar o trânsito definindo lugares para todos os veículos: quem anda onde, a que horas, quem para onde, a que horas. Proibir táxis de parar em qualquer lugar para pegar ou largar passageiros.

10- Os novos ônibus devem ter rampa para subida e descida de cadeirantes.

11- E mais tarde, se o Rio realmente crescer intelectualmente, queremos também “recks” para as bicicletas.

O excesso de carros nas ruas tem diretamente a ver com o fracassado sistema de transportes coletivos de qualidade na cidade. Numa relação proporcionalmente direta. Mais ônibus bons circulando, mais metrô funcionando, mais ciclovias, menos carros nas ruas.

Temos que entender seriamente essa equação e lutar para inverter a realidade atual.Os carros já estão se transformando praticamente em residências das pessoas.

Bem aqui vou ficando, pois as principais idéias que vêem ocupando minha mente desde a semana que se passou estão aqui relacionadas.

Gostaria que fossem publicadas muitas fotos de todas as pessoas públicas no mundo inteiro que, como eu, têm o hábito de andar de ônibus, metrôs, bicicletas.

Muito carinho pelos que se sensibilizaram por esse assunto e por mim nesses dias, obrigada.

E pra terminar quero apenas dizer que meu sonho de consumo é um carro de marca Mercedes Benz, de cor branca, clássico, o melhor do mundo, que pretendo comprar ainda neste ano do cavalo! Quando me virem andando nele, com motorista, claro, por favor não me venham fotografar e me expor com julgamentos idiotas nas redes sociais como agora. Não aceitarei patrulha ideológica ok?

Tudo isso me lembra a parábola do jovem e do velho Bodsatva. Essa fã desavisada acabará, sem querer, prestando um lindo serviço a população.

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