Cultura

Por que retratar, exibir e falar sobre vagina ainda é tabu

Artistas plásticos, historiadores, filósofos e sexólogos falam sobre o assunto

‘Odalisque’, obra de 1951 de Pablo Picasso
Foto: Terceiro / Reprodução
‘Odalisque’, obra de 1951 de Pablo Picasso Foto: Terceiro / Reprodução

RIO - Em 1866, o artista francês Gustave Courbet pintou o quadro “A origem do mundo”. A encomenda, reza a lenda, foi feita pelo diplomata otomano Khalil-Bey, que vivia em Paris. Bey queira acrescentar algo mais picante à sua coleção de pinturas eróticas.

Vigorava na arte o período realista. As cidades cresciam, urbanizavam-se, enchiam-se de cabarés, bares e bordéis. Na França, as pinturas refletiam essa vida. Três anos antes, Éduard Manet colocara uma meretriz como modelo de seu quadro “Olympia”.

Courbet resolvera ir além. Em vez de retratar uma mulher, de corpo inteiro, focaria em sua genitália, aberta, em primeiro plano. Nasceria assim “A origem do mundo”. Khalil-Bey guardaria a obra num banheiro de casa (na verdade, um salão de banho), coberta por uma cortininha de pano, para ser vista em momentos especiais.

Dali até 1955, a pintura a óleo de 46 centímetros por 55 centímetros teria ao menos três outros donos — alguns continuaram a guardá-la em quartos privativos, como quem esconde algo proibido e sagrado. Seu último proprietário foi o psicanalista Jacques Lacan. Em 1995, após sua morte, o quadro foi doado ao Museu d’Orsay, em Paris. Foi quando “A origem do mundo” finalmente saiu do anonimato, passando a constar no hall da fama da arte ocidental.

Na semana retrasada, a pintura (que está na capa desta edição da Revista O GLOBO) voltou à baila, durante palestra sobre os conceitos de arte, sexo e pornografia ministrada pelo historiador Jorge Coli, na Academia Brasileira de Letras (ABL). A conferência “O sexo não é mais o que era”, que estava sendo transmitida ao vivo pelo site da instituição, teve o sinal interrompido pouco após Coli proferir a palavra “boceta”. O professor diz que o quadro de Courbet estava sendo mostrado num telão ao mesmo tempo.

Precavida, a direção da ABL concluiu que o conteúdo verbal e pictórico (havia também fotografias do artista Jeff Koons em posições sexuais) era inapropriado ao público do site, que não tem restrição de idade. Decidiu por tirar a palestra do ar, embora ela tenha continuado a correr no anfiteatro da academia. Ainda assim, ao saber do fato, no dia seguinte, Coli protestou em sua página no Facebook. O fato tornou-se público.

— Várias pessoas me escreveram reclamando da interrupção — justificou, pelo telefone.

O filósofo Adauto Novaes, organizador do ciclo que incluiu a conferência de Coli, ratificou. Em entrevista publicada no GLOBO, falou de um “conservadorismo geral dominando”.

— Há um processo muito reacionário no mundo, no campo da política e da moral. Hoje o conservadorismo é muito maior do que nos anos 1960 e 1970 — declarou.

Por coincidência, não foi a primeira vez que o órgão genital feminino causou celeuma neste mês. Um dia antes, a iTunes Store, livraria virtual da Apple, censurou o título do livro recém-lançado pela escritora americana Naomi Wolf. Enquanto as concorrentes o publicavam tal qual batizado (“Vagina: Uma nova biografia”), o site da empresa criada por Steve Jobs vendia a obra como “V****a”. A descrição do livro explicava: “A autora faz uma pesquisa histórica e mostra como a v****a foi considerada sagrada por séculos até ser vista como uma ameaça.” Procurada pela reportagem, a Apple Brasil não se manifestou sobre o assunto até o fechamento desta edição.

Mas por que a vagina continua sendo um tabu? A Revista O GLOBO buscou historiadores, sexólogos, artistas, cirurgiões plásticos e um editor de revista masculina para entender a seguinte questão: em tempos de vasta permissividade e acesso ao sexo, que espaço ocupa o órgão genital feminino no imaginário?

— É um olhar esquizofrênico — acredita Jorge Coli. — O Museu d’Orsay coloca “A origem do mundo” numa sala perfeitamente acessível, com crianças e excursões de escola passando. Imagens do quadro são publicadas nos jornais. Agora, se alguém resolve colocá-lo no Facebook, acaba retirado do ar.

Coli defende a tese de que um quadro ou uma foto, embora de cunho erótico, perde o teor sexual quando transformado em arte:

— Se você expõe uma imagem como objeto analítico reflexivo, ela deixa de ser pornográfica. Essa atitude da ABL desqualificou meu trabalho.

Na última quarta, a academia divulgou um comunicado em que reiterava sua “posição de intransigente defesa da liberdade de expressão e de repúdio a toda e qualquer forma de censura”. Ao tratar de Coli, o texto dizia que o próprio conferencista havia advertido o público a respeito do conteúdo pornográfico que apresentaria, “pedindo que se ausentasse da sala quem fosse sensível ao tema”.

Por fim, o documento apontava que a legislação brasileira proíbe a veiculação de conteúdo pornográfico em sites abertos, “como o da ABL”, sugerindo que o caso pudesse servir “de base para um debate frutífero para a sociedade, permitindo ir além de um mero carimbar de rótulo de ‘censura’”.

Para chegar a esse ponto de consentimento, a polêmica dividiu opiniões entre os imortais, que realizaram uma sessão extraordinária na academia, um dia antes, para decidir a posição que seria adotada pela casa. Durante o chá da tarde, Lêdo Ivo, titular da cadeira 10, distribuiu cópias de um poema da americana Denise Levertov sobre a genitália feminina.

— O debate é muito importante. E o poema de Denise Levertov colide com o quadro de Courbet: ela diz que as genitálias femininas são escuras, franzinas e cabeludas. Assim como a poetisa, muitas mulheres às vezes não gostam de seu púbis. Já o quadro é uma beleza.

Lêdo Ivo concorda com Jorge Coli num aspecto, embora defenda a posição da ABL:

— Em Paris, vejo crianças de 5 anos desfilando em frente ao quadro no Museu d’Orsay como se estivessem numa aula de biologia. Não tem dimensão erótica. Mas do ponto de vista legal, a casa agiu de maneira corretíssima. O problema não foi o quadro do Courbet, mas a exibição de duas imagens fortíssimas de felação. As TVs não exibiriam essas imagens e nem mesmo a reprodução do quadro de Courbet antes das dez da noite.

À luz dos acontecimentos, discordâncias devidamente registradas, segundo Adauto Novaes, o ciclo batizado “Mutações” continuará tendo a academia como sede:

— Nas instituições, há um processo de conservadorismo grande. Houve um avanço técnico, mas não moral. De toda forma, o ciclo de palestras permanece na ABL até o fim do ano.

No mundo das artes, obras com cenas de nudez são corriqueiras (vide os exemplos, cunhados por grandes mestres, que ilustram esta reportagem). Polêmicas em torno delas, também. O crítico Felipe Scovino lembra que, em 2006, peças de Marcia X foram retiradas da exposição “Arte Erótica”, no CCBB, por usar terços religiosos para desenhar imagens de pênis:

— A Opus Dei ficou revoltada. E antes, nos anos 90, também houve censura a uma exposição em que o Nelson Leirner se apropriava de fotos de crianças nuas, da Anne Guedes. Mas o nu na arte do século XX é desprovido de sexualidade. Não é para provocar excitação.

Já o artista Milton Machado, professor da Faculdade de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pondera:

— O quadro do Courbet é chocante até aos olhos de hoje. E tem um título pouco religioso; diz que a origem do mundo não está em Adão e Eva, mas numa vagina cabeluda. De toda forma, acho que a ABL devia ter deixado o vídeo correr, e depois explicar o contexto do quadro, para evitar mal-entendido.

Autora do recém-lançado “O livro do amor” (Bestseller), a psicanalista e sexóloga Regina Navarro Lins não acredita que estejamos atravessando um momento conservador:

— Caminhamos para maior liberdade sexual, mas toda vez que andamos para frente, ondas reativas tentam segurar a evolução. Estamos no meio do processo de mudança que começou nos anos 60 e 70, depois do advento da pílula. Em 50 anos, não dá para mudar tudo o que existiu em cinco mil anos.

Para ela, o órgão sexual feminino, em particular, é historicamente perseguido:

— Há dois mil anos, a partir do cristianismo, o sexo é visto como sujo e pecaminoso. E a mulher, como um ser perigoso, dono de um desejo insaciável a ponto de precisar ser trancado. Os órgãos sexuais feminino e masculino sempre serão misteriosos. O temor que os homens têm da vagina, porém, é muito maior. No inconsciente dos mitos, ela é vista como força devoradora. Existe a lenda da vagina dentada. A própria configuração da vagina, em forma de fenda, é muito temida.

Cirurgia Plástica: o mito da vagina ‘perfeita’

Temida e, ultimamente, “corrigida”. Embora ainda não haja dados oficiais, cirurgiões plásticos ouvidos pela reportagem calculam que no Brasil, nos últimos dois anos, o número de mulheres que recorre a profissionais da área em busca da vagina “perfeita” aumentou 50% — nos EUA, estimam-se em 1,5 milhão por ano; na Inglaterra, 1,2 milhão. A procura maior é pelo procedimento ninfoplastia (ou labioplastia), intervenção que reduz os pequenos lábios. A popularização vem à reboque de modelos e manequins que alardeiam a “novidade”, às vésperas de fotos para ensaios sensuais.

— É difícil falar sobre um padrão de beleza, mas, no geral, a idealização é que os pequenos lábios estejam bem cobertos — ressalta o cirurgião plástico Rodrigo Badotti, da Clínica Dicorp, especializado em cirurgia de face que, nos últimos meses, passou a fazer uma média de três cirurgias íntimas por mês.

Presidente do Instituto Ivo Pitanguy, o cirurgião plástico Francesco Mazzaroni alerta que esse tipo de intervenção só deve ser feito em caso de recomendação médica:

— A paciente só vai ver o resultado da cirurgia se fizer contorcionismo diante do espelho. E a imagem refletida não é fidedigna. Já recebi clientes no consultório com edições da “Playboy” a tiracolo, dizendo: “Olha, eu quero ficar assim.” Tento explicar que alguns casos são anatomicamente inviáveis. A questão não pode ser estética, tem que haver necessidade. Se a cirurgia der errado, não tem retorno.

Diretor de redação da revista “Playboy”, Edson Aran diz já ter ouvido boatos de modelos que teriam feito cirurgia íntima antes de posar nuas. Mas aponta que a grande mudança na intimidade feminina, nos últimos anos, é no tocante à estética capilar.

— As mulheres andam vindo de fábrica sem pelo, o que é até ruim para fotografar.

Em tom de piada, ele sugere uma pensata sobre quadros como “A origem do mundo”:

— Metade das obras do Renascimento ou do barroco eram com mulheres peladas. Eram a “Playboy” de antigamente. Não tinha imprensa acessível na época.

O artista paulista Henrique Oliveira pensa parecido:

— As imagens eróticas mudam de acordo com o tempo, com o momento da sociedade. A pintura do Courbet estava para o século XIX assim como a “Playboy” da Deborah Secco está para os dias de hoje. Mas acredito que a tela não inspire desejos carnais há muito tempo.

Henrique esteve frente a frente com “A origem do mundo” em 2008, em Paris. Dois anos depois, criou a instalação “A origem do Terceiro Mundo”, um túnel de madeira, com 45 metros de extensão, que desemboca numa vagina aberta. A obra foi exposta na Bienal de São Paulo. Ele não vê erotismo nela:

— O ponto central é como a lasca de madeira, um dejeto, foi transformado em algo sensual. Parte do público ficou surpresa ao sair do túnel e, ao olhar para trás, dar de cara com uma vagina. Muitos discutiram se era uma gruta. Outros ficaram desconfortáveis ao constatar que se tratava do órgão sexual feminino.

No filme “Fale com ela”, o diretor espanhol Pedro Almodóvar conta a fábula de Alfredo, um homem vitimado por um experimento científico de sua mulher, Amparo, que acabou por torná-lo tão pequeno quanto um dedo. As cenas, em preto e branco, mostram Alfredo caminhando sobre o corpo nu de Amparo para, por fim, se ver diante de sua vagina. Alfredo e o órgão sexual têm o mesmo tamanho. Ele respira fundo, hesita e, por fim, resolve penetrar no desconhecido. De lá, nunca mais volta.