Saúde

Modelo de produção controlado pelas fabricantes de cigarros faz plantadores no RS se endividarem

Um produtor que trabalha desde os 7 anos tem débito de R$ 70 mil
SOC-Pelotas, Rio Grande do Sul, 25/07/2014- o agricultor Giovane Fouchy classifica as folhas de fumo apos a colheita e secagem na estufa. Foto: Antonio Scorza/ Agencia O Globo. Foto: ANTONIO SCORZA / Agência O Globo
SOC-Pelotas, Rio Grande do Sul, 25/07/2014- o agricultor Giovane Fouchy classifica as folhas de fumo apos a colheita e secagem na estufa. Foto: Antonio Scorza/ Agencia O Globo. Foto: ANTONIO SCORZA / Agência O Globo

PELOTAS, RS - Pelos cálculos feitos de cabeça, Giovane Fouchy acumula dívida de R$ 70 mil. Até o pequeno terreno onde vive com esposa e três filhas na zona rural de Pelotas (RS) foi financiado pela indústria do fumo. Giovane pensou que teria uma boa renda na lavoura, sonho compartilhado pelos agricultores que iniciam o negócio. Acontece que toda a cadeia produtiva, do financiamento de sementes à compra da safra, é controlada pela mesma empresa. E isso, segundo especialistas, provoca nos fumicultores forte dependência econômica.

— Há um alto investimento, que o produtor vai pagar em dez, 20 anos, e nesse período ele se torna refém da indústria. Acaba sendo um mecanismo de escravidão — denuncia Amadeu Bonato, pesquisador do Departamento de Estudos Socioeconômicos Rurais (Deser).

A ideia de lucro com o tabaco vem de experiências de alguns agricultores. Ronei Podewils mantém uma plantação de 120 mil pés, estufas elétricas, trator e uma produção que, na última safra, garantiu-lhe lucro de R$ 60 mil, usado para sustentar a família de oito pessoas durante o ano.

— O fumo precisa de pouca terra e dá o suficiente para viver — pensa.

Giovane não teve a mesma “sorte”. Ele começou a plantar tabaco aos 7 anos, quando o pai abandonou os pés de pêssego após a falência da fábrica de doces local. A última safra lhe rendeu R$ 75 mil. Na ponta do lápis, no entanto, descobre que o lucro é um terço do valor, já que os cuidados são caros e intensivos. Este ano não deverá ganhar nem metade. Enquanto isso, apenas uma parede divide o cômodo onde vive e o depósito de fumo, pois não teve como arcar com a construção da casa.

— Era convicto de que o fumo podia dar dinheiro, mas estou vendo que não dá futuro para ninguém — diz, desestimulado.

A classificação do tabaco é um dos principais motivos de conflito entre agricultores e empresas. Só a folha do tipo Virgínia, por exemplo, tem mais de 40 níveis de qualidade, atribuídos segundo características físicas e químicas. Nos galpões, a família separa manualmente as remessas em alguns desses níveis, mas só na indústria o preço é definido. No caso de Giovane, a mais de 400 quilômetros de casa.

— A cadeia da produção ao consumo é articulada por transnacionais, que buscam o controle do processo e têm poder de decidir o preço final. Às vezes pagam bem, mas geralmente o preço fica abaixo do esperado pelos agricultores — analisa Tania Cavalcante, secretária executiva da Comissão Nacional Para a Implementação da Convenção Quadro para o Controle do Tabaco.

Lauro Leitzke contraiu dívida de R$ 40 mil. Este ano ainda nem começou a produzir mudas. Tentou vender o terreno em Pelotas para quitar as dívidas e mudar de ramo. As três filhas querem continuar no campo. Lauro fala pouco e com semblante triste.

— Teria investido no leite, mas não acredito que dê para fazer isso agora — diz.

Pesquisador do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde da Fiocruz, Marcelo Moreno entrevistou 71 mulheres do município de Palmeira (PR) e investigou como elas enxergavam a fumicultura.

— Elas já conhecem a intoxicação por agrotóxico, o câncer relacionado à radiação solar, a doença da folha, os problemas osteomusculares pelo levantamento de peso, o trabalho extenuante... — comenta Moreno, que explica por que elas permanem no ciclo degradante: — Notamos um sistema integrado de produção que amarra o produtor. Existe uma dependência econômica. É um grande problema o medo de sair e achar que não vai conseguir sobreviver, mesmo sabendo que está adoecendo.

‘MODELO GARANTE COMPETITIVIDADE’

O que alguns pesquisadores chamam de dependência econômica é o que o presidente do Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (SindiTabaco), Iro Schünke, diz, na verdade, garantir a competitividade do fumo brasileiro, que perde em produção apenas para a China.

— Sempre vai ter trabalhador que não produz bem, mas a maioria fica satisfeita. O sistema é reconhecido internacionalmente e garante o tabaco brasileiro como um dos melhores — afirma. — A classificação segue uma instrução normativa do Ministério da Agricultura, e existe um técnico na hora da definição do preço para dirimir qualquer dúvida. É importante estar tudo separado, porque o cliente vem ao Brasil e escolhe o blend, a mistura.

Schünke defende o fumo como uma cultura lucrativa e flexível às características da terra. Mas segundo a coordenadora do Centro de Apoio ao Pequeno Trabalhador (Capa) Rita Surita, a produção é bastante heterogênea em cada área.

— No Sul gaúcho, a indústria se firmou a partir da década de 1980 como alternativa à crise econômica. Os agricultores foram deixando de plantar alimentos para produzir fumo, e hoje estão empobrecidos e endividados — lamenta Rita. — Há estudos mostrando que temos agricultores muito eficientes e disciplinados que funcionam para produções trabalhosas como a do fumo.

Embora a tendência mundial seja a da redução de incentivos e subsídios, a importância econômica da atividade no Sul leva governos a distribuir benefícios. Isso porque o Brasil produziu 706 mil toneladas de tabaco ano passado, mais de 90% nos três estados da região. É o maior exportador, com 87% da produção destinados a países como Bélgica, China e EUA. Em 2012, foi o terceiro produto agrícola das exportações primárias (US$ 3,256 bilhões). E ainda arrecadou cerca de R$ 10,8 bilhões em impostos.

Em 2013, com incentivo do governo gaúcho, a Philip Morris inaugurou uma fábrica de cigarro em Santa Cruz do Sul, num evento com a presença do governador Tarso Genro. Na ocasião, ele discursou: “vamos incentivar empresas não predatórias”. E continuou : “a estrutura estatal tem uma função organizadora e indutora do desenvolvimento econômico e social, e é por isso que financiamos essa expansão e estamos muito orgulhosos disso”.

Na última quinta-feira, O GLOBO procurou o governo do estado para comentar os subsídios à indústria, mas sua assessoria de comunicação respondeu que não havia tempo hábil para a resposta.


O agricultor Lauro Alfredo Leitzke segura os ultimos pes de fumo em seu cultivo abandonado
Foto: Antonio Scorza
O agricultor Lauro Alfredo Leitzke segura os ultimos pes de fumo em seu cultivo abandonado Foto: Antonio Scorza

A doação a campanhas eleitorais por indústrias do tabaco é frequente. Dados do Tribunal Superior Eleitoral e da ONG Transparência Brasil mostram que a Continental Tobaccos Alliance ficou no topo do ranking: entre 2002 e 2008 doou R$ 1,06 milhão a políticos de Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Na sequência, estão Alliance One (R$ 810 mil em 2006 e 2012) e Sudamax Indústria e Comércio de Cigarros (R$ 522 mil em 2006), seguidas por uma série de outras empresas do tabaco com doações menores.

Pouco a pouco, o governo federal vem diminuindo os incentivos à fumicultura por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Hoje o agricultor precisa comprovar que parte da propriedade é destinada a outra atividade que não o tabaco. Em 2001, o Pronaf chegou a ser totalmente proibido a esse grupo, medida revertida dois anos depois. Já o BNDES só fez aumentar os empréstimos à agroindústria do fumo. Até 2010 foram cerca de R$ 370 milhões, sendo o maior valor no último ano (R$ 116 milhões).