Cultura

Samba em São Paulo se divide entre experimentalismo e culto à tradição

Cantora Juliana Amaral e grupos como Passo Torto e Metá Metá investem em novidades, enquanto outros jovens interpretam antigos compositores de Rio e São Paulo

Romulo Fróes, Marcelo Cabral, Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, do grupo Passo Torto, buscam inovações no samba
Foto: José de Holanda / Divulgação
Romulo Fróes, Marcelo Cabral, Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, do grupo Passo Torto, buscam inovações no samba Foto: José de Holanda / Divulgação

RIO - Desta sexta até domingo, o show “Tradição, e o samba continua” homenageará um dos principais compositores paulistas, Geraldo Filme, reunindo no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, expoentes da atual cena musical da cidade (Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Andreia Dias), da antiga (Germano Mathias, Velha Guarda da Camisa Verde e Branco) e o nome mais conhecido da Lapa carioca, Teresa Cristina. No palco, uma proposital convivência entre diferenças.

— Na nossa parte, vamos entortar um pouco o Geraldo, mas seremos mais respeitosos na hora do Germano e da Velha Guarda — diz Romulo, diretor musical do show. — Para mim, o samba não é só um ritmo, mas o elemento de identidade da música brasileira. Então, meu trabalho tem que passar pelo samba. O samba não pertence a ninguém. Ele é meu, é do país, é de todos.

A frase espelha a riqueza não sem conflitos por que passa o samba em São Paulo. Há os que procuram jogar luz sobre a tradição local, que sempre ficou à sombra da do Rio, onde o samba tal qual conhecemos nasceu e logo se projetou nacionalmente, graças ao rádio. Há os que cultuam os pioneiros cariocas. E há a turma que se sente livre para combinar o samba com gêneros pop e outras referências, em busca de linguagens próprias.

Romulo, Kiko e Rodrigo formam com Marcelo Cabral o grupo Passo Torto . Kiko, Thiago França e Juçara Marçal mantêm o Metá Metá . E agora está saindo o novo CD da cantora Juliana Amaral , com músicas de Kiko, Rodrigo e autores de épocas e lugares diferentes, incluindo o pernambucano Fred Zero Quatro com o seu “O mistério do samba”, cujos versos defendem que o samba não pode ser reduzido a nenhuma classificação (“Como reza toda tradição/ É tudo uma grande invenção”).

— Meu interesse é pela poética do samba: pelas alegrias atrás de tristezas, pela solidão no meio da multidão, pelos desencontros nos encontros — explica Juliana. — Mas não consigo me chamar de sambista, não tenho relação direta com o samba de nenhum lugar. Tive acesso a ele ouvindo os discos, como era comum na classe média.

No CD “SM, XLS” (“Samba mínimo, extra luxo super”), ela se acompanha de um trio ou, em várias faixas, de um músico por vez — daí o “mínimo”. Uma experimentação que destoa das propostas que vêm recuperando tradições que estavam se esfarelando.

Desde a década de 1990 surgiram diversas “comunidades”, como são conhecidos os grupos que se encontram, principalmente em bairros mais pobres, para cantar sambas antigos e/ou mostrar novos. Nosso Samba, Samba da Vela, Samba Autêntico, Morro das Pedras — que se desdobrou em Berço de São Mateus e Terreiro Grande, entre outros — e Samba da Laje são algumas das iniciativas que multiplicaram o interesse pelo gênero, aproximando-o ou não do rap, muito forte na periferia.

— Acho esse encontro saudável e necessário, porque eles falam do mesmo cotidiano. O (rapper) Emicida participou do meu disco — ressalta Tadeu Kaçula, compositor que, como produtor, organiza há dez anos o evento gratuito Rua do Samba Paulista e, como pesquisador, já lançou seis dos 12 CDs da coleção Memória do Samba Paulista, voltada para nomes importantes e pouco lembrados da música de São Paulo.

Fernando Pellegrino, o Tuco, tem outra dedicação: as músicas feitas nos terreiros das escolas de samba cariocas entre os anos 1930 e 1950. Em seu CD “Peso é peso” só há inéditas ou músicas com apenas uma gravação. Foi a cantora Cristina Buarque quem o apresentou a esse universo pouco registrado em discos. Ele tenta reproduzir a sonoridade da época.

— Procuro chegar o mais perto possível de como aquilo foi criado — diz Tuco, que fez parte do grupo Terreiro Grande e hoje canta com o Batalhão de Sambistas. — Nada contra arranjos modernos, mas nem sempre fica bom. E acho importante perpetuar essa tradição do samba.

Kiko Dinucci é um apaixonado pela história do samba paulista. Para ele, Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini realizaram uma reinvenção original, “carregada de sotaque”, do samba carioca que chegou ao rádio. Ele ainda destaca a transformação de passado rural em música urbana feita por Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde, Toniquinho Batuqueiro, Talismã, Henricão e outros. E do meio-termo entre Rio e São Paulo que é Germano Mathias . Mas não ouve com prazer a devoção às tradições:

— Ao contrário dos autores clássicos como Ismael Silva e Noel Rosa, que reinventavam o samba com estilo próprio, os puristas de hoje escutam discos dos anos 1960 e 1970 ou mais antigos e reproduzem as estruturas consideradas por eles intocáveis. Há uma reverência exagerada ao passado, pessoas se vestindo como malandros cariocas do começo do século XX. Enquanto isso, ritmos periféricos como funk, rap e tecnobrega assumem o diálogo com as questões contemporâneas, coisa que o samba perdeu há muito tempo.

Conjunto que bebe há 15 anos nas fontes dos grandes sambistas de Rio e São Paulo, partindo deles para criar composições próprias, o Quinteto em Branco e Preto também sofre críticas por tangenciar em algumas músicas um som mais leve, menos tradicional.

— Para ser tradicional, não precisa ser fechado. Antes de ser sambista, a pessoa é artista, está aberta a influências — diz Magnu Sousá, do Quinteto.

Filha de compositor da Camisa Verde e Branco, Fabiana Cozza concilia em seus CDs a tradição de São Paulo com novidades de Kiko, Rodrigo e outros. Acabou de fazer um show com o repertório de Clara Nunes e canta com Emicida no projeto “Sambando no hip hop”. Está no meio da efervescência.

— A turma de Romulo, Kiko e Rodrigo vem fazendo samba de forma mais crua, falando das mazelas de São Paulo e com instrumentação indie, para usar uma palavra de que não gosto. No Rio, a matriz africana é mais forte. Em São Paulo, ela está só na periferia — avalia Fabiana, que considera prazerosa a missão de gravar gente da velha guarda como Wilson Moreira. — Se não, quem vai cantar daqui para a frente?

O carioca Bernardo Oliveira, professor de filosofia que vem se firmando como um pensador original na área musical, afirma que é “abstração ideológica” eleger representantes de uma entidade “Samba”, ainda mais num tempo de “fragmentação cada vez mais radical” na música brasileira.

— Não só Kiko, Rodrigo e Romulo, mas tambem Tuco, Quinteto, Graça Braga, Dona Inah, o disco do Leandro Lehart com as baterias das escolas de samba e a pá de lançamentos recentes apontam para muitos caminhos e manifestam um momento de vitalidade do samba paulistano — exalta ele.

— Nossa tradição em São Paulo talvez seja acabar com as tradições — assinala Romulo.