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"Nada vai nos separar": a mitologia de Fernandão em histórias, gestos e feitos

Ícone máximo no Inter, ídolo no Goiás, capitão morre em meio a duas paixões: voando feito um pássaro e perto do rio Araguaia. Deixa fãs entre a dor e a gratidão

Por Porto Alegre

 

Era o momento supremo de Fernandão: Mundial de Clubes, jogo contra o Barcelona, braçadeira de capitão. Era a hora de ele se tornar o mais protagonista dos protagonistas vermelhos, o maior astro entre todos os astros colorados. Ele era o herói ideal - o herói que todos queriam para uma vitória que, se acontecesse, seria épica. E o herói que todos aqueles banhados pela insanidade do otimismo (Vencer o Barcelona? De Ronaldinho?) imaginavam como grande salvador. Todos, menos um. Todos, menos o próprio Fernandão.

Um episódio ocorrido às vésperas do título mundial do Inter é o emblema de melhor costura para se entender quem foi Fernandão. Ele montou uma comitiva, com Iarley, Clemer e Alexandre Pato, e foi ao quarto de Abel Braga no hotel colorado em Yokohama, Japão. O Inter treinara muito mal em atividade já preparatória para a final. Para piorar, o Barcelona engolira o América do México nas semifinais, com goleada de 4 a 0 e apresentação circense de Ronaldinho. A impressão era de que um passeio catalão sobre os gaúchos se avizinhava.

A conversa com Abel foi uma tentativa de sedução tática: convencê-lo de que a estratégia teria que ser repensada para o jogo contra o gigante europeu. E da forma mais radical possível: Fernandão se tornaria um jogador quase imperceptível em campo; Fernandão, em vez de criar, marcaria; Fernandão, o melhor nome do Inter, passaria o jogo inteiro caçando Thiago Motta, dos mais discretos entre os jogadores do Barça e ponto inicial das jogadas dos campeões europeus. Fernandão, o herói ideal, o salvador mais óbvio, sacrificaria o ponto mais alto de seu estrelato para aumentar as chances de o Inter ser campeão.

E o resto é história: Fernandão saindo de campo com a musculatura destruída, Adriano Gabiru entrando, Índio dando um bico para o ataque, Luiz Adriano desviando de cabeça, Iarley arrancando para cima de Puyol, Gabiru recebendo, Gabiru chutando, Gabiru gritando de braços abertos, incrédulo, eufórico – enquanto Fernandão, no esconderijo do banco de reservas, via dar certo o plano que ajudou a arquitetar, via o Inter conquistar o planeta.

Foi em 17 de dezembro de 2006. Menos de oito anos depois, no início da madrugada deste sábado, 7 de junho, Fernando Lúcio da Costa morreu em um acidente de helicóptero às margens do rio Araguaia, em Aruanã, em seu tão adorado interior goiano. Tinha 36 anos. Deixa esposa, três filhos e incontáveis fãs, especialmente torcedores de Goiás e Inter.

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Homem do campo


Fernandão gostava de campo – natural para um filho de fazendeiro. Como profissão, dos de futebol; como paixão, dos do rincão do Brasil. O futebol o tornou um homem de grandes cidades, de multidões, mas era na calmaria de sua fazenda, montando cavalos, brincando com os bichos, cheirando o verde da mata, que ele se sentia confortável de verdade. Sobre a cabeça, ora com cabelos compridos até o ombro, ora curtos, acomodava um chapelão típico de boiadeiro. Divertia-se ensinando visitantes mais urbanos a comer pequi, fruta goiana, sem mastigá-la – sob pena de espinhos irem parar na boca do sujeito.

Fernandão - Goiás (Foto: O Popular)Homem do campo: do futebol e do rincão do Brasil, onde gostava de conviver com os animais (Foto: O Popular)



Era bom de bola desde novinho. Tão bom que resolveu encarar o futebol como possível profissão. Mergulhou nas categorias de base do Goiás aos 11 anos. Demonstrou características interessantes: alto sem ser desengonçado; magro sem ser franzino; líder sem ser arrogante.

 

Aos 16, virou profissional e ajudou o Esmeraldino a ganhar cinco títulos estaduais e a retornar à primeira divisão do Campeonato Brasileiro – teve passagem firme por seleções de base. Chamou atenção por se mostrar, ao mesmo tempo, um meia de criação e um atacante de definição. Fez belos gols, um deles de plasticidade impressionante – uma bicicleta perfeita contra o Bahia. Assim, abriu as portas do exterior.

Seu destino foi a França. Lá, defendeu primeiro o Olympique de Marselha. Certo dia, ainda se acostumando ao novo clube, recebeu a visita surpresa de um jovem brasileiro. O rapaz era carioca, se chamava Edimo, tinha 17 anos e pinta de volante brigador. Estava desesperado. Rumara para a Europa a convite de um empresário que prometera testes em clubes locais - e desaparecera. Sequer tinha dinheiro para comer. Fernandão o acolheu, o protegeu – sem imaginar o lance que o destino estava tramando para ambos. Edimo, hoje popularmente conhecido como Edinho, foi campeão da Libertadores e do mundo com o homem que o salvou na França. Hoje é volante do Grêmio e carrega eterna gratidão pelo gesto do amigo.

Passadas quase quatro temporadas no futebol francês, Fernandão decidiu que era hora de voltar ao Brasil. Interessados não faltavam. O Flamengo tentou de tudo para contratá-lo. Fez a melhor proposta. Mas o goiano, com a experiência que adquiriu no exterior, teve sua atenção chamada pelo tratamento que recebeu da diretoria de outro clube. Gostou das conversas com o presidente dessa equipe, Fernando Carvalho. E tomou sua decisão. Foi anunciado pelo Inter no dia 17 de junho de 2004.

Faltaram dez dias para ele fechar uma década de relação apaixonada com os colorados.

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O maior para muitos colorados

 

Para quem não é gaúcho, especialmente colorado, talvez não seja fácil compreender o tamanho da idolatria que a torcida do Inter tem (a morte dele não muda o tempo verbal) por Fernandão. Para muitos, possivelmente a maioria, ele é o maior jogador que já vestiu a camisa rubra. Olhando de longe, soa estranho. Afinal, embora sempre tenha sido muito bom jogador, Fernandão jamais foi um craque do naipe de Falcão ou uma sumidade da imponência de Figueroa, condutores dos timaços dos anos 70. É que a questão aí não é a qualidade técnica: é a mitologia.

Quando Fernandão chegou ao Inter, naquele inverno de 2004, encontrou um clube que tentava deixar a rotina de fracassos recentes – pegando um pouco pesado, um time que tentava deixar de ser perdedor. A década anterior açoitou os colorados. O início dos anos 2000 também não foi animador – vide o rebaixamento evitado na última rodada em 2002. Mas Fernandão acreditou no Inter ao perceber que o Inter acreditava nele. E mudou a história do clube.

Sua estreia entrou para o imaginário do futebol gaúcho, de tão emblemática. Foi em 10 de julho de 2004, três semanas após sua chegada. O jogo? Um Gre-Nal. O Inter, em crise, ainda não tinha vencido com o técnico Joel Santana, que resolveu apostar na novidade. Sacou o zagueiro Wilson no segundo tempo e mandou Fernandão a campo. Aos 33 minutos, o lateral-direito Elder Granja alçou a bola na área. Um cabeludo subiu mais alto, entre dois zagueiros, e cabeceou para as redes. Ajoelhou-se no gramado para comemorar. Foi cercado pelos colegas, que logo o lembraram de um pequeno detalhe: aquele era o milésimo gol da história do clássico gaúcho.

Parecia um aviso: seu primeiro gol já era um lance para a eternidade. Ali foi a gênese do sentimento colorado de que havia algo diferente naquele jogador. Da impressão para a certeza, foi um caminho gradual: Fernandão, após uma lesão na Sul-Americana de 2004, seguiu jogando bem, fazendo gols, ganhando imponência no clube. Foi campeão gaúcho e vice no polêmico Brasileiro de 2005. Pavimentou o caminho para o ano seguinte – o primeiro ano do resto da vida de todos os torcedores do Inter.

Ano de Libertadores, competição distante da torcida vermelha desde a campanha pífia de 1993. Ano de título. O Inter fez 24 gols na trajetória da conquista continental. Fernandão foi protagonista da metade deles: cinco gols (artilheiro do torneio) e sete assistências. Jogou como nunca na vida. E se consolidou como alicerce de um elenco raro.

O ex-volante Perdigão, em recente entrevista ao site “Impedimento”, fez uma analogia etílica para analisar o grupo campeão de 2006. Disse que existia a turma “Skol litrão” e a turma “vinhozinho chatô-não-sei-o-quê”. Fernandão dividia com Iarley e Clemer a ala do vinhozinho. Eram mais sérios, compenetrados, estudiosos – e, assim, lideravam a parte mais brincalhona do elenco. A mistura foi harmoniosa. A relação entre os jogadores se baseou sempre em algum ponto entre o respeito e a admiração. Fernandão foi central nisso. Foi o capitão, a referência moral e técnica daqueles atletas.

 

É por isso que os gols do título da Libertadores, no empate por 2 a 2 com o São Paulo, são tão simbólicos. Um é de Fernandão. O outro é de Tinga – em passe de Fernandão. Aquele jogo foi o ponto definitivo de passagem para o camisa 9. A torcida sentiu o mesmo que os jogadores: viu que tinha um norte em seu capitão, que tinha alguém em quem confiar em técnica e postura. Fernandão se deixou levar pela sinergia. Virou um representante dos torcedores – algo que jamais abandonaria, mesmo depois de pendurar as chuteiras.

 

Os gritos dele antes do jogo contra o Barcelona têm muito disso, assim como a cantoria no retorno ao Brasil. Fernandão foi o capitão do time e o porta-voz da torcida ao falar para o elenco, no vestiário do estádio de Yokohama, que era possível, que o Inter podia ser campeão. Até mais: que o Inter SERIA campeão. E foi. Na volta ao Brasil, em um Beira-Rio quase lotado, o capitão pegou um microfone e foi torcedor, foi colorado. Sem camisa, em êxtase, passou a cantar: “Ôooooo, vamo, vamo, Inteeeeeer, vamo, vamo, Inteeeeeer!”. O momento virou um sinônimo daquele título. 

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Lutas, dores e erros

 

Fernandão deixou o Inter em 2008 – depois de ganhar mais um Estadual, a Copa Dubai e a Recopa Sul-Americana. Foi seduzido por proposta milionária do Al-Gharafa, do Qatar. Em sua última entrevista, no hotel da concentração colorada em Porto Alegre, enquanto uma fã chorava a um metro, o jogador, emocionado, deixava uma frase enigmática: que um dia retornaria, mesmo que não fosse como jogador. Estava sendo premonitório.

No Oriente Médio, Fernandão viveu uma realidade muito diferente. Acostumado a estádios cheios, passou a ouvir até os gritos de Enzo, seu filho, nas arquibancadas: “Chuta, pai”. Não demorou para ele querer retornar ao Brasil. Mais especificamente, ao Inter. E aí deu tudo errado.

Acontece que o clube gaúcho não tinha certeza sobre o retorno do atleta. Temia que ele pudesse não estar em suas melhores condições físicas, dada a combinação entre a fragilidade da preparação no Qatar e a demora que o atacante sempre teve para atingir o ponto físico ideal. As trocas de e-mail entre diretoria e jogador pararam. E ele, indignado, fechou com o Goiás, sua antiga casa. Ficou particularmente magoado com Fernando Carvalho, a quem adorava, nos ombros de quem tinha chorado em 2007 na festa de um ano da conquista da Libertadores.

 

Fernandão ficou menos de um ano no Goiás. Não conseguiu repetir o sucesso de seu início de carreira. E viveu a experiência de enfrentar o Inter. No Beira-Rio. E sendo vaiado por parte da torcida – disposta a atrapalhar seu rendimento. Ficou em campo apenas 13 minutos. Irreconhecível, deixou o braço no rosto do volante Magrão e foi expulso. Parecia fora de si – talvez abalado emocionalmente pelo reencontro.

Do Goiás, Fernandão foi para o São Paulo, o último passo de sua carreira como jogador. Começou muito bem, ajudando o time contra o Cruzeiro pela Libertadores de 2010. Voltou a enfrentar o Inter e fez seu primeiro gol com a camisa tricolor justamente contra o ex-clube, justamente no Beira-Rio. Depois, foi eliminado do torneio continental pelo Colorado – nas semifinais. 

 

Em maio de 2011, encerrou a carreira – incomodado por recorrentes dores no púbis. Era a senha para retornar ao Inter, como previra no passado, em função fora do campo. Virou executivo de futebol, em uma medida da diretoria para acalmar a torcida depois da saída de outro ídolo, Paulo Roberto Falcão, demitido do cargo de treinador. Chegou quase junto com Dorival Júnior, a quem substituiria no ano seguinte.

Foi a maior saia justa dele no futebol. Com o time mal das pernas, a cúpula da diretoria colorada chamou Fernandão e o convidou para assumir o comando do time. Disseram a ele que era um pedido de ajuda ao clube. Fernandão ficou reticente. Conversou com amigos. E aí decidiu topar o desafio, ciente de que era uma decisão controversa. 

 

E decepcionou-se. No vestiário, lidou com um elenco desinteressado. Diagnosticou que atletas forçavam o terceiro cartão amarelo para ganhar maior período de folga. E foi aos microfones para chutar o balde. Detonou os jogadores – sem citar seus nomes. Acabou perdendo completamente o controle do vestiário, mas ajudou o clube a se livrar de alguns dos atletas que, segundo ele, faziam corpo mole. A rusga, no entanto, encurtou a passagem de Fernandão pelo Beira-Rio como treinador. Foi demitido a duas rodadas do fim do Campeonato Brasileiro de 2012. Despediu-se (mais uma vez) chorando diante dos microfones. Foi seu penúltimo ato no clube. O último seria histórico – mas ninguém poderia imaginar.

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"Nada vai nos separar"


Fernandão era de uma educação irretocável. Em Porto Alegre, gostava muito de frequentar restaurantes (chegou a abrir um, mas o negócio fracassou), sempre acompanhado pela esposa, Fernanda, e os filhos gêmeos, Enzo e Eloá. A cada par de minutos, era interpelado por alguém pedindo autógrafos. Atendia a todos.

Tinha voz mansa, mas firme. Ria pouco com quem não tinha maiores intimidades. Ouvia seu interlocutor olhando em seus olhos, mas falava desviando o olhar, procurando um lugar fixo para mirar, como se isso o ajudasse a formular melhor as frases. Comunicava-se muito bem. Era gentil, mas retrucava quando não gostava de alguma colocação. Era extremamente respeitoso com o Grêmio e evitava entrar em polêmicas típicas da rivalidade Gre-Nal. Parecia sempre estar alguns anos de maturidade à frente de sua idade.

 

Tinha aptidões esportivas que iam além do futebol. Gostava muito de jogar tênis. Andava bastante de lancha. E queria, em uma ironia absurda do destino, aprender a pilotar helicópteros. Era uma paixão dele. Dizia que se sentia um pássaro no céu.

Também tinha carinho particular pelo rio Araguaia. Foi nas margens dele que ocorreu o acidente, como se mesmo nos piores momentos Fernandão conseguisse estar perto de suas paixões. Conseguiu sobreviver à queda do helicóptero, mas morreu a caminho do hospital. Muito ferido, lutou pela vida além dos limites de seu corpo.

 

Fernandão seria comentarista do SporTV na Copa do Mundo. Estava empolgado com sua quarta incursão diferente no futebol – depois de ser jogador, diretor e técnico. Talvez tivesse a chance de ir ao Beira-Rio trabalhar em algum jogo do Mundial. Não teve tempo, mas conseguiu despedir-se antes, mesmo sem saber.

O ídolo colorado foi um dos mestres de cerimônia da festa de reinauguração do estádio, em abril. Subiu ao palco ao lado de Figueroa e D’Alessandro. Deixou a torcida em êxtase. Falou para o argentino a quem deixou a braçadeira de herança: “Esse estádio ficou ainda mais lindo, cara!”.

Foi ali, naquele campo de futebol cravado no paralelo 30, no Sul da América do Sul, que Fernandão foi mais adorado, mais louvado. Em um momento de despedida, pode ser doloroso e reconfortante pensar nas músicas que a torcida do Inter costumava cantar para o time no auge da passagem do capitão pelo clube. Uma delas dizia: “Colorado, colorado, nada vai nos separar”. Outra avisava: “Eu nunca me esquecerei dos dias que passei contigo”.

Pois é exatamente isso...

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