Ruth de Aquino

As teorias de conspiração conspiram contra nós. Por Julia Michaels

As teorias de conspiração conspiram contra nós. Por Julia Michaels

Na 'Visita' de hoje, Julia sugere algumas linhas de ação, entre elas o voto, para não sucumbir à passividade

10/08/2014 - 10h36 - Atualizado 27/10/2016 17h17
O que podemos fazer como cidadãos, quando viver parece penoso? (Foto: Julia Michaels)

Para esta gringa que escreve aqui, a FLIP, a Festa Literária Internacional de Paraty, encerrada há uma semana, foi um horror. Primeiro, o documentarista Charles Ferguson, diretor de um filme vencedor do Oscar, “Trabalho Interno”, descreveu a esmagadora falta de moralidade e ética do setor financeiro americano, antes, durante e depois da crise de 2008.

Depois, o jornalista Glenn Greenwald, que trouxe à tona o assustador alcance de espionagem da National Security Agency (Agência Nacional de Segurança), descreveu a esmagadora falta de moralidade e ética do governo e da imprensa dos Estados Unidos, inclusive face à tortura que fere a lei internacional.

Nossa, pensei, encolhida no meu assento, debaixo da Tenda dos Autores. Se no meu país, onde o sistema judiciário funciona de verdade, onde existem milhares de organizações que vigiam e cobram governos e empresas, a situação é essa, como estamos no país que adotei há 33 anos?

Vieram mais perguntas à minha cabeça. Um mero indivíduo, diante da podridão de uma sociedade, como pode reagir? Como ficamos, sobretudo com um menu eleitoral de tantos candidatos inapetitosos?

O brasileiro está acostumado a conviver com escândalos. Lembro-me da instrução que um colega recebeu, nos meus dias de iniciante no Brasil, do chefe de redação do jornal O Estado de São Paulo.  Era o primeiro dia de trabalho do colega, no ano de 1983: “Se tiver uma boa notícia sobre Paulo Maluf, não vale matéria nenhuma. Se a notícia for mais ou menos, deve ser impressa na última página. Se tiver uma má notícia, vai para a primeira página.”

Meses mais tarde, como free-lancer do Wall Street Journal, tive a oportunidade de perguntar a Júlio de Mesquita Neto, então diretor do jornal, "qual o motivo da parcialidade".

Era o dever do jornal, ele me explicou, pacientemente, informar seus leitores sobre a sucessão constante de denúncias de corrupção envolvendo o então deputado federal Paulo Maluf. Somente assim é que o país poderia trilhar o novo caminho democrático.

Muitas décadas e muitas eleições mais tarde, pensamos que o Estadão bem que poderia ter continuado a publicar receitas de cozinha, tal como fez na época da censura. 

Hoje, o jornalismo não está tão solitário na luta contra falcatruas.

Podemos marchar pacificamente; nos juntar a um grupo de ativismo, como, por exemplo, o maravilhoso Meu Rio, atualmente em expansão para outras cidades; ou há quem prefira ir às ruas para protestar de maneira violenta. Existe até a possibilidade de fazer um mestrado em políticas públicas e se candidatar a algum posto. O voto também constitui uma ação.

Antes de optar por algum desses caminhos, ou por qualquer outro, é recomendável investir no pensamento crítico. Depois, também.

Como pensar de maneira crítica? Não é fácil avaliar argumentos e fatos? Sim, até certo ponto. O difícil é considerar as ausências. É crucial pensar no que falta.

Por exemplo, a prefeitura do Rio publicou, ano passado, um lindo Plano Estratégico para os anos 2013 até 2016. Suas 240 páginas contêm metas em todas as áreas, como saúde, educação e transportes. Nele, consta um prefácio, “Uma Visão de Futuro”.

Só que o Plano é setorial. Falha ao não apresentar soluções para o desafio primordial de integrar suas partes formais e informais, entre morro e asfalto, uma convivência que tem muito a ver com sustentabilidade, transporte e desigualdade. O Plano também não insere a cidade no Estado, e fiquei sem saber como o município e as cidades vizinhas poderão pensar e coordenar seus dilemas em conjunto e parceria.

Para pensar de maneira crítica, é também importante identificar premissas, avaliando relevância e validade.

Quando o neurocientista norte americano Carl Hart esteve aqui, em maio passado, para falar de políticas públicas para as drogas, apontou uma premissa até então pouco questionada. Tirou foto de um carro do Guarda Municipal em cujo parachoque estava escrito “Crack: é possível vencer”, um lema federal que vemos em toda parte.

Hart fez perguntas que raramente nos ocorrem: “Como se faz para vencer o crack? O crack agora possui características humanas?” Em palestras no Rio e em São Paulo, disse que a luta contra o crack mascara o verdadeiro problema, a pobreza.

As premissas mais encobertas, as que mais pedem nosso escrutínio, diga-se de passagem, são as nossas próprias. As injustiças do mundo nos incomodam, mas nem sempre atendemos à chamada para a ação – nem que seja ler um livro.

No seu livro de memórias O que é isso, companheiro, o ex deputado Fernando Gabeira descreve um período de clandestinidade num apartamento em Copacabana, cumprido depois de participar do sequestro do embaixador norte americano. Todo dia, Gabeira planejava a morte de um mosquito apelidado de Eduardo, limpava o revólver, e preparava macarrão com sardinhas.

A ação, lembra ele, era tudo. Impossível agir na clandestinidade. Então, melhor não fazer nada: nem matou o mosquito. “[...] poderia ter formulado mil planos de estudos, como os que se fizeram no exílio. Poderia ter aprendido um novo idioma, tentar dominar melhor os que já conhecia,” escreve Gabeira. “Estávamos, entretanto, vivendo um período muito antiintelectual. A exaltação da ação armada, a desconfiança em torno das atividades exclusivamente políticas faziam com que muitos de nós, eu especialmente, tivéssemos até um pouco de vergonha de preocupações intelectuais.”

Para quem curte a cadeira, as teorias conspiratórias são um grande aliado. O ex-governador Anthony Garotinho estaria por trás das greves que aconteceram no Rio de Janeiro antes da Copa do Mundo, de acordo com uma teoria dessas. Pode ser que seja verdade, ou não. Mas a maior utilidade das teorias conspiratórias é que explicam tudo e nos levam a descartar outras possíveis explicações. Os conspiradores são sempre mais poderosos do que nós mesmos. Somos vítimas deles. E assim, não fazemos nada.

Perfil Julia Michaels, Blog da Ruth (Foto: ÉPOCA)







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