Saúde Ciência Revista Amanhã

Terra das águas

Brasil enfrenta o desafio de adotar uma gestão que leve em conta cenário de mudanças climáticas e escassez global desse recurso natural. Por dia, são consumidos no país 1.381 litros

Cataratas de Foz do Iguaçu
Foto: Claus Meyer/TYBA
Cataratas de Foz do Iguaçu Foto: Claus Meyer/TYBA

RIO - Os números impressionam: 11,6% de toda a água doce existente no planeta, mais de 90% do território com chuvas durante todo o ano, 95,2% da população urbana com acesso à água potável. A abundância dos recursos hídricos no Brasil é, inegavelmente, um dos bens mais valiosos do país. Não é à toa que o Brasil é identificado mundialmente como a potência hídrica do século XXI. Sob nossos pés está a maior reserva de água doce do mundo: o aquífero Guarani, uma mega poça d´água que corta sete estados brasileiros e se estende por três países vizinhos, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai.

Às vésperas do Dia Mundial da Água, que se comemora sexta-feira, dia 22 de março, o Brasil entra mais uma vez em foco. É que o país é rico nesse recurso natural absolutamente vital para a sobrevivência da humanidade. Só que, mesmo onipresente no dia a dia das sete bilhões de pessoas que habitam o planeta, a água está passando por uma crise de abastecimento. A escassez desse líquido incolor, insípido e inodoro está transformando-o em uma commodity no mercado de valor cada vez mais elevado.

Por dia, o brasileiro consume, em média, 1.381 litros. Para se ter uma ideia, países que estão no limite da faixa de pobreza no consumo de água, como Bangladesh, Quênia, Nigéria, Angola e Etiópia, ingerem 50 litros. Os americanos, por sua vez, chegam à média de 6.800 por dia.

O Brasil é a melhor tradução dessa situação de escassez na abundância. E a gestão da água ainda se coloca dividida entre velhos e novos desafios. De um lado, a histórica falta de saneamento que polui e consome em excesso os mananciais brasileiros; de outro, um cenário de mudanças climáticas e escassez global que altera o xadrez da disponibilidade hídrica. Desafios que se colocam cada vez mais urgentes na reta final da “Década da Água”, a ser encerrada em 2015, quando, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o planeta deve já ter reduzido pela metade o número de pessoas sem acesso à água potável e ao saneamento básico.

Estresse hídrico

— O Brasil é extremamente avançado em algumas dimensões. Mas ainda não resolveu a velha agenda da baixa cobertura de tratamento de esgoto, uma demanda que vem desde os anos 1970, quando o país começou a se urbanizar de forma mais acelerada. É preciso financiar o investimento e a tarifa do serviço à população de baixa renda que não consegue pagar. É muito difícil que o país consiga universalizar o acesso à rede de esgoto sem subsídios. Quando liga a rede doméstica ao esgoto a tarifa dobra de valor. Hoje já existe a tarifa social. Mas será que ela é suficiente? — pondera Marcos Thadeu Abicalil, especialista sênior em água e saneamento do Banco Mundial (Bird), no Brasil.

Alguns estados brasileiros já ultrapassaram ou estão no limite do estresse hídrico, como é o caso daqueles na região do semiárido. Com as mudanças climáticas, estas áreas já atingidas pela seca sofrerão ainda mais com a escassez, enquanto aquelas com grandes reservas de água já começaram a virar alvo de disputa pela terra.

A falta de água no mundo não coloca em risco apenas a sobrevivência do homem. Ela pode comprometer safras agrícolas e a produção de bens e serviços, mas também impactar negativamente o crescimento econômicos dos países.

— Se temos um problema na gestão de recursos hídricos é a falta de saneamento. Isso faz com que tenhamos os rios dos centros urbanos altamente poluídos, o que obriga as empresas de saneamento a buscarem água em regiões distantes. Isso acarreta o encarecimento do abastecimento brasileiro. Hoje, os rios urbanos são placas que se movem pelas cidades — explica Paulo Canedo, coordenador do laboratório de hidrologia da Coppe/UFRJ. — É claro que, pela abundância de água que temos, somos, em parte, displicentes. Mas não é justo colocar a culpa só nisso. Passamos muitos anos sem investimento no setor e ficamos sem regras claras.

A legislação que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico no país é recente, de 2007. A regulamentação, porém, só ocorreu em 2010 e muitos municípios ainda lutam para implementar políticas nesta área. Segundo levantamento do Ministério das Cidades feito junto às empresas prestadoras de serviços de esgotamento sanitário em 2009, apenas 1.739 municípios brasileiros, 31,2%, são atendidos por uma rede com pouco mais de 208 mil quilômetros.

Leis modernas

A eficiência do sistema é outro desafio. Em média, as empresas de saneamento no Brasil perdem 42% da água produzida. Ou seja, a cada 100 litros de água potável produzidos, só 58 litros são vendidos. Em relação ao esgoto, do total coletado, apenas 68% é de fato tratado.

Apesar da dificuldade de regulamentação das políticas de saneamento, o país avançou na legislação na gestão compartilhada da água. Deste 1997, o Brasil conta com a Lei das Águas, que instituiu a cobrança pelo uso dos recursos como forma de estimular o uso racional e gerar recursos para projetos de recuperação dentro do contexto das bacias hidrográficas. O preço público é fixado no âmbito dos comitês de bacia, composto por membros da sociedade civil, poder público e empresas usuárias do recurso, e com apoio técnico da Agência Nacional de Águas (ANA).

— A gestão dos recursos hídricos progrediu muito no sentido da participação da sociedade, da indústria e da agricultura. Antes, o modelo era muito centrado no poder público, e as decisões, tecnocratas. Onde não houve avanço é na gestão integrada. Articular as políticas urbanas, de saneamento, agricultura irrigada, do setor elétrico e harmonizá-las com a política de recursos hídricos para que os interesses não sejam conflitantes. Isso ainda é falho, principalmente em função da forma compartimentada como a administração pública se comporta — analisa Paulo Libânio, assessor da diretoria de gestão da ANA e doutor em recursos hídricos pela UFMG.

Um dos principais entraves é o fato de que o plano de recursos hídricos elaborado pelos comitês não tem caráter mandatário, ficando a cargo do gestor municipal decidir como fará os investimentos no setor e, inclusive, tomar decisões contrarias ao que foi estabelecido.

— Nossa legislação é bem feita e também bastante moderna. O que falta é uma consciência política para trabalhar de forma harmônica e não apenas voltado a políticas setoriais. O caminho mais adequado seria a elaboração de planos plurianuais com uma definição dentro dos orçamentos públicos — sugere Libânio.