Edição do dia 13/05/2011

13/05/2011 23h14 - Atualizado em 13/05/2011 23h16

Mulher de 30 anos não consegue comer absolutamente nenhum doce

A doença metabólica de Daniela é provocada pela ausência de uma enzima no fígado. Os hábitos incomuns da universitária sempre causaram espanto.

A pequena São Miguel Arcanjo, no interior de São Paulo, é um lugar onde ainda é possível atravessar a rua sem grandes sobressaltos. A cidade é a capital da uva Itália. Mas fomos até lá para atender um pedido de socorro.

“Tenho um problema desde que nasci. Hoje estou com 30 anos e nenhum médico me deu resposta do que possa ser. É que não consigo ingerir nada, absolutamente nada que seja doce”, escreveu a estudante universitária Daniela Terra Queiroz.

Na mensagem enviada ao Globo Repórter, Daniela também contou que, mesmo não sendo diabética, chega a passar mal ao ingerir qualquer alimento doce. “É como se fosse um veneno que entrasse em meu organismo. Começo a suar e a tremer, a visão escurece, abaixa a pressão. Aí eu já corro e tenho que comer alguma coisa bem salgada por cima, como se fosse para quebrar esse açúcar. Não sei explicar, não sei”, revelou a jovem.

Casada, com dois filhos, ela tem sempre seu prato separado nas refeições em família, sem nenhum ingrediente doce.

Para Daniela, doce não é só o que normalmente nós imaginamos. “Eu não como molho vermelho. Então, eu não como lasanha, macarronada, nada que tenha tomate. Ou tomate natural ou a polpa. Já experimentei um chocolate, já experimentei um bolo, mas para mim tudo tem o mesmo sabor. É ruim, é horrível”, contou.

Ninguém mais na família sofre com esse problema, que, no caso dela, começou desde as primeiras papinhas de frutas e legumes.

“Quando ela não vomitava, ela começava a transpirar e ficava toda molhada. Era a mesma coisa que colocar ela debaixo de uma torneira ou de um chuveiro. Ela ficava molinha. Daí os médicos falavam que era normal: ‘criança tem que insistir, cada vez mais’”, lembra Lourdes Terra Queiroz, mãe de Daniela.

“Minha mãe comprava caixa de bombom para a gente, a gente comia e ela só ficava olhando”, diz Graziela Terra Queiroz, irmã de Daniela.

Globo Repórter: Leite só puro?
Lourdes Terra Queiroz, mãe de Daniela: Só puro e líquido. Ela sempre tomou água e leite.
Globo Repórter: O que a senhora acha que é? O que passa pela sua cabeça?
Lourdes Terra Queiroz, mãe de Daniela: Não sei dizer.
Globo Repórter: Mas é um motivo de preocupação para a senhora até hoje?
Lourdes Terra Queiroz, mãe de Daniela: Com certeza.
Globo Repórter: A senhora sente que falta alguma coisa para ela?
Lourdes Terra Queiroz, mãe de Daniela: Falta. Principalmente quando dá as crises... Dói muito dentro de mim.

Sem explicação, Daniela aprendeu a se defender, intuitivamente, ao longo da vida. Nos aniversários, soprava as velinhas, mas nunca pôde comer bolo. Hoje, ela até prepara bolo para os meninos, mas sem experimentar, claro. Ela só segue a receita.

Como toda dona de casa, ela também vai ao supermercado e enche o carrinho com coisas que não suporta. Já o chocolate é um sonho distante, nunca realizado. “Eu compro um pedacinho para eu ficar cheirando chocolate. Compro para sentir o cheiro dele. Aí parece que sacia a vontade de comer o chocolate”, revela.

Como também passa mal, às vezes, por falta da energia que o açúcar traz, Daniela costuma comer muito carboidrato, que se transforma em açúcar, no organismo.

Na feira livre, quais são as possibilidades para o estranho paladar de Daniela? No meio de uma variedade de frutas como a que existe no Brasil e que a Daniela não aproveita, só existem duas exceções: limão e maracujá.

Sem uma explicação médica, os hábitos incomuns de Daniela sempre causaram espanto, inclusive no namorado, hoje marido. “Eu chegava com um sorvete e nada. Ela não comia. A gente ficava preocupado, falando ‘não foi com a minha cara’”, ri o professor Roberto Apolinário Júnior. O marido revela ainda que se preocupa com a saúde da esposa.

Já que Daniela nos pediu ajuda, sugerimos uma consulta na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). As especialistas do Centro de Referência em Erros Inatos do Metabolismo (CREIM) ouviram atentamente o relato dela, checaram os exames anteriores e chegaram a um diagnóstico preliminar.

“Na verdade, isso é uma alteração genética que você tem. E essa historia de você não aceitar nada com sabor doce faz parte da alteração que você tem, da doença que você tem do metabolismo”, apontou a diretora do CREIM, Ana Maria Martins.

A doença metabólica de Daniela, provocada pela ausência de uma enzima no fígado, é a frutosemia, uma intolerância à frutose, açúcar presente em frutas, legumes e que se apresenta também como sacarose e sorbitol, que aparece até em certos medicamentos.

“Todo produto que você olhar no supermercado, você vai olhar o rótulo e você vai ver se tem açúcar. Se tiver, você não pode comer. Agora, por exemplo, pode ser qualquer produto, pode ser salsicha, tem açúcar para conservar”, declara a doutora Ana Maria Martins.

“Existe a intoxicação aguda, que é aquela coisa de você comer uma grande quantidade de frutose e desencadear uma reação naquele momento. Ou a intoxicação crônica, que é aquela que você vai comendo todos os dias uma quantidade maior do que você tolera”, afirma a nutricionista Renata Bernardes de Oliveira, do CREIM, da Unifesp.

A frutosemia não tem cura, nem é uma doença muito rara. Um de cada 20 mil bebês nasce com ela. Se não identificada, pode levar à morte por cirrose ou falência hepática. Quem tem frutosemia precisa de muito cuidado com alimentação a vida inteira.

“Se você continuasse comendo do jeito que você come, com certeza você ia ter um grave problema hepático na sua vida, porque conforme você vai comendo, ele vai fazendo mal para o fígado, vai fazendo mal, cronicamente. Então, é como se você batesse nesse seu fígado. Cada vez você estraga mais células, cada vez você destrói mais células do fígado. E ele vai ficando todo inflamado”, explica a doutora Ana Maria.

Daniela foi orientada a fazer mais uma série de exames e a começar a tomar, imediatamente, vitaminas para suprir a falta de frutas e legumes. Fora a dieta, ela terá ainda mais limitações. Nunca mais ela vai poder comer chocolate, nem maracujá e limão, que, mesmo azedos, têm açúcar. Não é bem o que Daniela esperava.

“Eu achei que fosse assim uma coisa talvez mais simples, mais leve. Mas eu não tenho medo de nada. Eu prefiro saber logo e tentar resolver do que ficar sem saber. Informação é tudo. E eu não tinha. Até então eram 30 anos sem informação de nada”, comenta a universitária.

Duas semanas depois, Daniela volta ao consultório, porque ainda faltam exames. Mas seguindo as novas orientações médicas, ela já se sente melhor. “Você está no caminho. A gente olhando, você está bem melhor”, ressalta a Dra. Ana Maria. “Com certeza você vai ajudar muito mais gente do que você possa imaginar por ter procurado o Globo Repórter. Com certeza muita gente vai se identificar”.