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'Cults', Wallace e Paulo André tentam mudar o perfil do boleiro no Timão

Apaixonados por xadrez e literatura, zagueiros fogem do estereótipo
do típico jogador e querem acabar com preconceito contra a classe

Por São Paulo

Esqueça quase tudo o que você ouviu sobre jogadores de futebol. O pagode, símbolo das últimas gerações de atletas profissionais, toca em outro ritmo para os zagueiros Paulo André e Wallace, do Corinthians. Ávidos por literatura, cultura geral e até rivais nos xadrez, os defensores alvinegros tentam criar para as próximas safras uma nova faceta do “boleiro” e mudar os olhos da sociedade para a profissão que, segundo eles, não envolve apenas a ostentação extrema e a alienação cultural.

- O jogador, às vezes, tem um vazio dentro dele por saber apenas jogar futebol. Para ele, o negócio é sair, pegar mulher e beber. Nós queremos mostrar que é possível ter outros prazeres, como dar valor à família e à formação. Depois de velho, o cara não vai mudar. Se pegarmos um atleta na criação dele, teremos um nível melhor daqui a 15 anos – afirmou Paulo André.

O zagueiro, novo titular absoluto do setor, tenta usar a bagagem de ter vivido quatro anos na França, onde atuou pelo Le Mans, e cursado dois anos da faculdade de educação física para influenciar o comportamento de alguns companheiros mais jovens. Um dos líderes do elenco, o defensor revela que o preconceito contra os profissionais da bola ainda é muito grande longe dos gramados.

- O preconceito é diário. Nós, que gostamos de sair para jantar e conhecer pessoas bacanas, percebemos isso. Todo mundo fala: “Ah, é jogador”. Demora para você quebrar o gelo e mudar um pouco a cabeça da pessoa. Mas o perfil do atleta está mudando. Hoje, já não somos vistos como malucos. O pessoal se interessa por outros assuntos, não apenas ir para a noite atrás de pagode e loira.

Wallace concorda com o companheiro de zaga e emenda:

- Muitas pessoas falam que jogador de futebol é burro. Há muito preconceito contra nós. Precisamos quebrar esse estereótipo.

Muitas pessoas falam que jogador de futebol é burro. Há muito preconceito contra nós"
Wallace

O baiano de Conceição do Coité, aliás, nem parece um filho da terra da axé music. Aos 23 anos e casado, o jogador troca a curtição da agitada vida noturna de São Paulo pelos livros. A paixão começou quando ainda estava nas categorias de base do Vitória, seu primeiro clube. De lá para cá, são mais de 70 publicações “devoradas”. Atualmente, ele tem na cabeceira da cama a biografia do filósofo alemão Arthur Schopenhauer. Quando pendurar as chuteiras, sonha fazer faculdade, mas ainda sem um caminho traçado.

- O Paulo me ajudou muito nessas coisas. O mundo do jogador é muito restrito, e nós nos identificamos. Tenho lido muitas biografias. O hábito de ler foi criado quando eu tinha 16 anos e pegava três ônibus para ir para casa. Era estressante. Um dia, um amigo me deu o livro “O homem que matou Getúlio Vargas”, do Jô Soares. Foi ali que comecei a me interessar, depois vieram os livros do Stephen King. Só os de autoajuda que me irritaram um pouco, porque é sempre a mesma história (risos) - contou Wallace, fã de Wilson Simonal, Jack Johnson e Red Hot Chili Peppers.

Um dos grandes amigos de Ronaldo no Timão, Paulo André vai ainda mais longe. Durante a entrevista, no apartamento dele na área nobre de São Paulo, o jogador ouvia a cantora americana de blues e jazz Norah Jones. Nas paredes, quadros pintados por ele no período em que morou na França. O zagueiro tem ainda uma coleção de livros dos mais variados assuntos e é dono de um blog, que no futuro renderá um livro, em que retrata a vida de um atleta profissional, inspiração tirada da biografia do ex-tenista André Agassi. Já pensando na aposentadoria, o defensor, de 28 anos, abriu uma empresa de investimentos com atuação na bolsa de valores.

- Ganhar muito dinheiro é ilusão. É para uma minoria. A maioria dos jogadores ganha uma quantia que não dá para garantir uma aposentaria quando parar de jogar. Chegar aos 30 anos e só saber jogar futebol é um grande problema. É preciso ter outras atividades para conseguir uma vida normal. Por isso, tentamos conversar com os mais jovens para que eles aprendam – ressaltou o zagueiro, que chegou a participar de encontros na casa do Fenômeno com os políticos José Serra e Fernando Henrique Cardoso.

Amigos? No xadrez, não!

Paulo André e Wallace Xadrez Corinthians (Foto: Marcos Ribolli / Globoesporte.com)Wallace tira sarro de Paulo André após uma jogada
(Foto: Marcos Ribolli / Globoesporte.com)

A amizade dos defensores se formou através de um esporte pouco comum entre os jogadores: o xadrez. Se no gramado a dupla de zaga não sofreu gols nos três jogos que atuou junta em 2011, no tabuleiro o clima é de rivalidade. Durante a entrevista, enquanto Paulo André adota um estilo provocador, Wallace prefere a concentração máxima com os olhos grudados no tabuleiro e ouvindo “Vesti Azul”, de Simonal. No placar, o dono da casa levou vantagem: 3 a 0, virando o histórico do confronto para 6 a 4.

- Essa sua casa tem algum problema, Paulo André! – esbravejou Wallace.

Aqui em casa, o Wallace já levou três pancadas (no xadrez). Ele é time pequeno"
Paulo André

- Um dia, saí do campo no CT e ele estava jogando. Passei e brinquei, dizendo que nunca havia perdido. Quando fomos jogar, ele ganhou três vezes. Eu fiquei bravo e treinei. Depois, aqui em casa, ele já levou três pancadas. Ele é time pequeno – brincou Paulo André, que aprendeu a jogar na infância com o pai e praticou com amigos durante o período que morou na Europa.

O xadrez acompanha Wallace desde as categorias de base do Vitória. Com uma turma da pesada, composta também pelo ex-vascaíno Anderson Martins e pelo ex-cruzeirense boliviano Marcelo Moreno, o clube apostou no jogo para acalmá-los. Desde então, atleta incorporou o jogo à rotina e, segundo ele, não encontrou muitos adversários pelo caminho.

- Eu fiquei um bom tempo sem perder. Só fui perder minha invencibilidade para o Paulo. O pessoal no Corinthians gosta de jogar, mas ninguém sabe. Apenas o Julio Cesar e o Fábio Santos jogam direitinho.

Paulo André e Wallace Xadrez Corinthians (Foto: Marcos Ribolli / Globoesporte.com)Paulo André também comemora um bom lance
(Foto: Marcos Ribolli / Globoesporte.com)

Faltando dez rodadas para o fim do Brasileirão, os zagueiros tentam levar para o gramado toda a estratégia do tabuleiro para ficar com o título. Depois de um período de instabilidade, o Timão passou a ser mais cauteloso em campo e obteve bons resultados. São quatro jogos sem perder, o último deles vencendo por 3 a 0 o Atlético-GO e recuperando a liderança.

- Precisamos jogar com a parte mental, tentar desestruturar o adversário. Com aqueles dez jogos sem perder, achamos que poderíamos ganhar de todo mundo de qualquer jeito. Agora, mudamos o jeito de jogar fora de casa a partir daquela partida contra o São Paulo (0 a 0). Estamos mais fechados, como os adversários vêm para jogar no Pacaembu. É uma tática de xadrez para ser campeão – disse Paulo André.

- Eu concordo com o Paulo – resumiu Wallace.

- Para de me copiar! – provocou o amigo.