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Muricy projeta duelo com Barça e garante: 'Vão sofrer com Neymar'

Técnico fala do Mundial, sobre seu principal craque, ataca dirigentes corneteiros e diz que não se arrepende de não ter ido para a Seleção

Por São Paulo

O técnico Muricy Ramalho, do Santos, é um dos técnicos mais vitoriosos de sua geração. Quatro títulos brasileiros, seis vezes campeão estadual e, neste ano, entrou no rol dos treinadores brasileiros campeões da América, comandando o Peixe. O título mundial, que o Alvinegro Praiano tentará conquistar no Japão, poderá ser a coroação.

Para o comandante santista, no entanto, mais do que o orgulho de poder liderar o grupo que tentará dar ao Santos a sua terceira estrela, há a certeza de que ele vai calar a boca de muita gente que o criticou. Ele não cita nominalmente quem são os seus desafetos, mas deixa claro que alguns deles estão na diretoria do São Paulo, que o dispensou em 2009, após a eliminação da Taça Libertadores.

Essa foi a quarta tentativa seguida de o Tricolor conseguir o tetracampeonato continental. Todas frustradas. Todas com Muricy como técnico. Em 2006, derrota na final para o Internacional. No ano seguinte, o time caiu ainda nas oitavas, diante do Grêmio. Em 2008, o Fluminense foi o algoz, nas quartas. E em 2009, derrota para a Raposa também nas quartas.

Como o São Paulo havia sido campeão em 2005, no ano anterior à chegada de Muricy, chegou-se à conclusão de que o técnico, que havia conquistado três títulos nacionais com o Tricolor, só era bom nos pontos corridos. No mata-mata, não. Por isso, quando venceu a Libertadores neste ano, Muricy tirou o peso das costas e lembrou muito dos "corneteiros" são-paulinos.

Esse é um dos vários temas explorados pelo treinador em entrevista que ele concedeu ao Globoesporte.com dias antes da viagem do Peixe ao Japão. Foram mais de três horas de papo, num restaurante japonês próximo (por ironia) ao Morumbi. Na conversa, Muricy foi Muricy: atacou alguns dirigentes que, segundo ele, "não sabem p. nenhuma de futebol e só enchem o saco", dissecou o Barcelona, a quem o Peixe pode enfrentar numa eventual final do Mundial de Clubes, rasgou elogios a Neymar e garantiu:

- Se passarmos à final, eles (Barcelona) vão sofrer muito com o Neymar.

montagem Arte Muricy Ramalho entrevista 2 (Foto: Editoria de Arte / GLOBOESPORTE.COM)O técnico Muricy Ramalho está feliz da vida no comando do Santos e pronto para começar o Mundial

Globoesporte.com - Muricy, vamos começar pelo Neymar. O garoto não para. Treina, joga, viaja, faz comercial, é convidado para vários eventos. Você se preocupa com toda essa correria do seu principal jogador? Às vezes, dá a impressão de que existem dois dele...
Muricy (rindo) - Pois é. Deve ter dois. Eu não me meto na vida pessoal do jogador. Não só do Neymar. De nenhum. O Neymar atingiu um nível que não adianta o técnico esquentar a cabeça. Ele é o cara da moda. Tem muita publicidade para fazer. Agora, o que é mais importante é que ele respeita os horários de treinos de concentração. O pessoal que cuida da carreira do Neymar é muito consciente com isso: eles fazem a programação do jogador em cima dos nossos horários.

É impressionante. O cara (Neymar) é um fenômeno mesmo"
Muricy Ramalho

Mesmo assim, chega uma hora que o jogador precisa descansar, se desligar de tudo, não?
Sem dúvida. Ele não para mesmo. O único momento que o Neymar descansa é nas concentrações. Porque aí ele se fecha lá no nosso CT e dorme mesmo. Não atende ninguém, se alimenta direito. Só assim a gente consegue parar o Neymar. Agora, tem uma coisa: o custo-benefício dele é altíssimo. De que adianta eu ter um jogador que não vai a evento, não faz propaganda, está sempre aqui e não joga nada ou então que fica toda hora machucado? O Neymar é cheio de compromissos e, mesmo assim, treina muito, joga demais, está sempre com a cara boa. É impressionante. O cara é um fenômeno mesmo. Agora, se um dia eu sentir que toda essa correria está atrapalhando o seu rendimento, eu vou chamar e conversar. Por enquanto, não precisa.

Você está vivendo de perto a ascensão do Neymar. Hoje, ele está cotado entre os melhores do mundo. Muitas vezes, temos a tendência a valorizar o passado. Você que está no futebol há muito tempo, acha que Neymar está no nível de craques históricos, como Zico, Rivelino, por exemplo?
Sim. Com certeza o Neymar está nesse nível. E olha que eu sou exigente do que diz respeito a chamar um jogador de craque. No Brasil, o cara joga bem uma partida e já falam que é craque. O que temos é jogadores bons e jogadores muito bons. Craque é o gênio, o que vê a jogada antes dos outros. E isso é raro. O maior que eu vi foi o Zico. Pelé não conta. Esse está num nível só dele. Zico tinha todos os fundamentos: cabeceava, driblava, chutava bem com os dois pés, fazia gol até de cabeça, tinha visão de jogo e era um atleta. Isso é craque. Zico, Rivelino, Zidane. Neymar está nesse patamar. O que ele joga é um absurdo.

muricy ramalho santos treino japão (Foto: Agência EFE)Treinando a equipe em solo japonês (Agência EFE)

Atualmente, além do Neymar, quem mais é craque?
O Messi e o português (Cristiano Ronaldo) também. São jogadores diferentes.

E o Ganso?
Ganso também. Esse é um jogador especial. Um camisa 10 clássico. Não existe nenhum outro meia no Brasil como ele. Acho que nem no mundo. É o cara que pensa o jogo, que cadencia na hora de cadenciar e que acelera na hora de acelerar. Tem uma visão de jogo impressionante. Só que precisa estar bem fisicamente para jogar. Agora, ele está muito bem e tem de se manter assim. É o que eu sempre digo a ele.

O Messi, que você citou, faz a diferença no Barcelona. Você perdeu o Adriano (volante que sofreu lesão no tornozelo direito e só volta em 2012), que colaria nele. Como vai fazer agora para tentar parar o argentino caso o Santos o enfrente na final do Mundial?
Pois é. Eu não tenho outro jogador para fazer o que o Adriano faz. Ele é muito obediente taticamente. Na Libertadores, anulou todos os enganches (armadores) adversários. Vamos ver o que vamos fazer. Alguém vai ter de vigiar o Messi, sim.

É o tipo de jogador que necessita de uma marcação individual, certo?
Sim. Eu tenho visto muitos jogos do Barcelona e percebo que ninguém marca o Messi individualmente. Ele está sempre livre. Não sei como isso é possível. Ele recebe a bola, e ninguém nunca encosta. Acho isso esquisito.

Você acredita que essa seja a explicação para o fato dele não brilhar tanto pela seleção argentina?
Eu tenho certeza disso. Principalmente quando joga Copa América ou Eliminatórias. Pega um marcador paraguaio, uruguaio, colombiano. Esses caras chegam junto, e aí é diferente. As pessoas nunca analisam isso. Os europeus nunca reconhecem que lá se tem mais facilidade para jogar. Aqui, o espaço é muito pequeno. E o Messi é um gênio, se der espaço para ele, já era. É como o Neymar. Se não colar, ele vai para dentro do gol.

Você tem analisado muito o Barcelona. O que tem passado a seus jogadores? O Borges, outro dia, disse que eles sempre se dão bem contra defesas que jogam em linha. Esse é um aspecto que você já vem estudando?
Todo time europeu joga em linha. Eles encurtam o campo. Os zagueiros não gostam de sair para fazer cobertura. O Barcelona se aproveita muito bem disso. Fica tocando a bola. Para lá e para cá. Esperando o adversário perder a paciência e sair para tentar cortar. Eles aproveitam, enfiam no espaço vazio e saem na cara do gol. É a jogada mortal deles. Nós aqui não jogamos em linha, mas com zagueiro sobrando. Não encurtamos o campo, deixamos mais comprido. Não é o tipo de jogo que eles estão acostumados a enfrentar. Vamos ver o que acontece.

montagem Arte Muricy Ramalho entrevista 1 (Foto: Editoria de Arte / GLOBOESPORTE.COM)O técnico santista em vários momentos desde que assumiu o Peixe e perto do capítulo final deste ano

E como atacar um time que não permite que o adversário tenha a bola?
Eu sei que não vou ser a fera que vai diminuir a posse de bola do Barcelona. Isso ninguém consegue. Se nos enfrentarmos, eles vão ter 65, 70% da posse. É assim mesmo. Temos de apertar a marcação, tentar sair da pressão e apostar em algumas coisas: uma enfiada do Ganso ou do Elano, que são nossos melhores passadores, e uma jogada genial do Neymar. E com certeza o Neymar vai fazer alguma coisa. Disso eu não duvido.

O Barcelona tem algum ponto fraco? A defesa, por exemplo?
Eles confiam muito naquela linha ofensiva. Adiantam todo mundo e fazem uma pressão enorme. Acreditam tanto nessa estratégia que largam tudo lá atrás. Quem consegue passar dessa linha, tem chance de surpreender. Não acho que a defesa seja ruim. É que eles jogam muito abertos e, como quase ninguém consegue sair dessa pressão, eles acabam não sofrendo tanto lá atrás. Agora, tem algumas coisas: todo time que tem jogadores muito técnicos não gosta de sofrer. E tenho certeza de que eles vão sofrer com o Neymar. Além disso, eles têm dificuldade na bola aérea defensiva. São algumas coisas que podemos explorar.

O Barcelona é um time admirado por muita gente. Seus jogadores também devem gostar muito de vê-los. Os mais jovens devem jogar videogame com o Barça e até veem alguns jogadores de lá como ídolos. Como quebrar essa relação fã-ídolo na hora de a bola rolar para evitar que o seu time perca tempo reverenciando o adversário e se esqueça de jogar?
Isso é natural. Eles gostam mesmo de ver o Barcelona. Como aqui no Brasil se criou o hábito de ver o Santos por causa do Neymar, do Ganso, desse pessoal todo. Eu mesmo quando não estava no clube, parava para ver. Agora, eles são jogadores de futebol. Quando entram em campo, isso tudo acaba. Passam a ver quem está do outro lado como adversário, como um obstáculo a ser ultrapassado. Por isso, essa questão de admiração ao Barcelona não me preocupa. Todos sabem que o time deles é favorito, que só tem feras. Só que meus jogadores estão com muita coragem. Eles vêm ganhando títulos desde o ano passando e acreditam muito nisso.

neymar ganso santos (Foto: Agência Estado)Ganso e Neymar: as joias do time (Agência Estado)

Agora, antes do Barcelona, o Santos tem a semifinal, que promete ser pedreira (Monterrey, do México, e Kashiwa Reysol, do Japão se enfrentam neste domingo. Quem vencer pega o Peixe)
Claro, não estou menosprezando ninguém. É que o Barcelona é o time da moda. Então, acabamos falando muito deles. Estou vendo os outros times, estamos estudando, tenho informações. O mexicano conheço bem. É uma pedreira. Trabalhei lá e sei como os times do México se comportam. Tem o Suazo, atacante muito forte. O time japonês também é bastante complicado, com Jorge Wagner, Leandro Domingues, dirigido pelo Nelsinho (Batista).

Durante a campanha vitoriosa da Libertadores, você sempre repetia que não era uma obsessão sua ser campeão continental. Só que depois da conquista, num desabafo, você acabou admitindo que perseguia, sim, esse título. Parecia mesmo ter algo entalado...
Eu perseguia mesmo. É que no futebol se cria algumas coisas que incomodam. Dirigente nunca admite seus erros. Então, quando há uma derrota, uma eliminação, é preciso achar um culpado. E aí é sempre o técnico. (Imitando dirigente apontando para o treinador): "É aquele ali". O problema da Libertadores (no São Paulo) era sempre eu. Diziam que eu não ganhava mata-mata. O que é uma bobagem, pois eu já ganhei um monte. Só que isso virou um carimbo e me incomodava demais, pois não era um negócio honesto. E quando não são honestos comigo, eu piso mesmo no pé.

Vocês são os incompetentes, os ruins, os despreparados. Eu, não"
Muricy, sobre desafetos no São Paulo

Você se refere a que, exatamente? Conselheiros, dirigentes, torcedores, imprensa?
Dirigentes mesmo. Os caras faziam as coisas erradas, um monte de m. e jogavam tudo nas minhas costas. Diziam que era meu problema com mata-mata. Aí eu saio, mudo de clube, continuo ganhando tudo e venço a Libertadores. Queria muito mesmo conquistar esse título para acabar com isso, para mostrar a esse tipo de pessoa incompetente, que não assume suas responsabilidades.

A quais dirigentes você se refere?
Uns caras lá. A turma do chazinho. Vocês sabem quem é, não preciso falar. Quando o time perdia, eles sumiam. A imprensa ia entrevistar, eles mandavam falar comigo e fugiam. Quando ganhávamos, era abraço, cumprimento. Isso sempre me incomodou. Saí de lá e ganhei no Fluminense, no Santos. Ou seja, eu era o problema? Não, né? São pessoas oportunistas. Então, quando desabafei depois do título, dizendo que queria muito essa Libertadores, era para colocar essas pessoas no lugarzinho delas: "Vocês são os incompetentes, os ruins, os despreparados. Eu, não".

muricy ramalho santos especial (Foto: Marcos Ribolli/GLOBOESPORTE.COM)No Japão, Muricy está a dois jogos de ser campeão mundial (Foto: Marcos Ribolli/GLOBOESPORTE.COM)

Qual a imagem que você tem dos dirigentes brasileiros e dos bastidores dos clubes?
Infelizmente, o futebol não apresenta muita coisa correta. Eu tive problema no Fluminense também. Não aceito as coisas de qualquer jeito, não aceito que se metam na minha parte. Por isso, arrumo muita confusão mesmo.

No Fluminense, você teve problemas com o presidente Peter Siemsen...
Ali foi problema político. Houve a eleição, ele assumiu e não me queria no clube. Descobri até que ele já tinha dito para dirigentes de outros clubes que não iria ficar comigo. Então, eu saí. Não tinha como ficar por lá. Meu relacionamento com o grupo de jogadores era excelente, mas depois da troca de diretoria, ficou difícil.

Depois de São Paulo, Palmeiras e Fluminense, você acertou com o Santos. Falando ainda em dirigentes: que observações você faz dessa diretoria santista?
Aqui no Santos é bem diferente. O que eles estão fazendo agora não existe. É outro tipo de pensamento. O clube é gerido por pessoas do mercado financeiro, empresários. Não é aquela coisa de dirigente que não sabe pensar em alternativa. É outro pensamento. É só ver o que eles fizeram nessa questão do Neymar. A quantidade de propostas que eles receberam para vender o garoto é absurda. Qualquer outro dirigente já teria vendido, pois é dinheiro demais. Eles perceberam que o clube pode ganhar muito mais mantendo o Neymar, com ajuda de empresas, valorizando a marca. O futebol brasileiro vai ter de caminhar para o que o Santos faz agora, com gestores profissionais e não amadores. Esse é o correto.

Mas há uma pressão por resultados como nos outros clubes que você trabalhou, não?
Pressão tem em todo lugar. Só que aqui eles confiam muito em mim e me deixam trabalhar. Não aparecem no CT para ficar enchendo o saco. O que eu não aguento é ver dirigente circulando no local de treino, dando palpite. Sabe aqueles aposentados que não têm o que fazer e ficam no clube enchendo o saco? No Santos não tem isso. Eles nem aparecem no treino. O pessoal do Comitê de Gestão nunca foi ao CT. O presidente aparece pouco. Eles contratam o treinador e deixam o cara trabalhar.

Em 2012, o Santos irá comemorar o seu centenário. Os principais jogadores estão sendo mantidos e há promessa de reforços. Dá para dizer que o time santista para o ano que vem será ainda mais forte?
É o que se fala mesmo. Estamos tendo reuniões sobre isso e vamos nos reforçar, sim. Mas não é nada absurdo, pois já temos uma boa base. Serão contratações pontuais. Vamos trazer dois laterais, isso é certo. Para a direita, temos de repor a saída do Danilo (vendido ao Porto-POR) e para a esquerda precisamos de opção. O que me deixa mais confiante é que a coisa aqui é bem organizada. Já temos o planejamento para 2012 todo pronto. Cheguei a um ponto de minha carreira que isso é o mais importante. Já ganhei, sou valorizado, tenho convite toda hora, não preciso correr atrás. O que me motiva agora é poder fazer parte desse processo de melhorar o Santos em vários sentidos. É diferente dos outros clubes. Estou gostando.

E dirigir a Seleção Brasileira ainda o motiva?
Se eu tivesse cismado que tinha de dirigir a Seleção, eu já estaria lá, pois eu era o alvo. Não houve acordo, o Fluminense não me liberou e eu não quis quebrar o vínculo que eu tinha com o clube. Até hoje me chamam de louco por não ter ido, por não ter forçado. Mas eu tenho certeza de que fiz o certo. Aliás, foi a melhor coisa que me aconteceu. Não fui e ajudei o Fluminense a conquistar o Brasileiro depois de 26 anos. Depois foi para o Santos, ganhei Paulista e Libertadores. Imagina se eu tivesse ficado na Seleção? Estaria agora ainda montando um time, na maior pressão, levando porrada de todo o lado. Escolhi bem.

muricy ramalho santos especial (Foto: Marcos Ribolli/GLOBOESPORTE.COM)Antes da viagem, o técnico foi provar um sushi (Foto: Marcos Ribolli/GLOBOESPORTE.COM)