10/12/2011 15h09 - Atualizado em 13/12/2011 13h55

Com origens ligadas à pirataria, 'demoscene' evolui e muda arte digital

Imagens e músicas são reproduzidas em tempo real a partir de códigos.
‘É o celeiro da inovação do mercado de games’, afirma artista brasileiro.

Altieres RohrEspecial para o G1

Solskogen 2011, na Noruega, festa da 'cena' (Foto: Steinar H. Gunderson/sesse.net)Solskogen 2011, na Noruega, festa da 'cena' (Foto:
Steinar H. Gunderson/sesse.net)

Nascida da comunidade de pirataria, a “demoscene” hoje já não compartilha mais softwares ilegais, mas sim programas de computador capazes de gerar, em tempo real, gráficos e sons artísticos, desafiando, às vezes, os limites dos computadores e da eficiência dos códigos que geram essa “arte digital”. Esses programas, chamados de “demos”, são exibidos em eventos – as demoparties -, onde concorrem em diferentes categorias.

Bent Stamnes trabalha como executivo de uma operadora de tecnologia móvel na Noruega, mas é também um porta-voz da demoscene. Ele mantém o arquivo da demoscene no site scene.org. “Um demo é uma forma de arte eletrônica não interativa e gerada em tempo real”, resume Stamnes, que conheceu demos em 1987, aos 9 anos.

“A ‘cena’ de demos pode ser considerada uma filha bastarda da cena de pirataria, porque as primeiras pessoas que faziam demos eram aquelas que faziam as animações de aberturas em cracks [softwares que permitem quebrar a proteção anticópia] para jogos. Assim como eu, essas pessoas acabaram gostando mais das introduções do que dos próprios cracks, e a cena dos demos surgiu daí”.

Stamnes afirma que a influência da demoscene está presente nos visualizadores de música – como os incluídos no Winamp e no Windows Media Player – e em estúdios de jogos como Team17 (criadora da série de jogos "Worms"), DICE (série "Battlefield" e "Mirror’s Edge"), FunCom ("Age of Conan") e Remedy ("Max Payne" e "Alan Wake").

Demos se diferenciam de programas comuns por não serem interativas: a maioria dos aplicativos ou jogos permite que o usuário interaja ou interfira em sua execução. Também são diferentes de um protetor de tela, porque têm música como um elemento característico e a animação é normalmente sincronizada.

Por serem programas de computador, demos utilizam tecnologias como o DirectX, OpenGL e linguagens de programação como C++, além de softwares como o Photoshop e Maya para a edição de gráficos – um conjunto muito parecido com o que é usado para criar jogos de computador.

Cenário brasileiro
O designer e professor Hugo Cristo criou quatro grupos de demoscene no Brasil: Eclipse (1993-94), Flying Christ (1994 a 1996), América (1996-1997) e Imago Project (1998-2001). Os três primeiros tinham apenas membros de Vitória (ES), mas o Imago Project chegou a ter membros nos Estados Unidos e na Suíça, além de São Paulo e Bahia. Ele acredita que o cenário brasileiro é “inexistente”.

The Gathering, na Noruega, reúne seis mil ‘sceners’ para ver e avaliar demos (Foto: Steinar H. Gunderson/sesse.net)The Gathering, na Noruega, reúne seis mil ‘sceners’ (Foto: Steinar H. Gunderson/sesse.net)

“Fora do país, a demoscene é o celeiro de inovação do mercado de games. Títulos como "Max Payne" e "Angry Birds" surgiram nesse meio por causa dos limites de hardware e de software que os demosceners tentam quebrar todos os dias”, diz.

Hugo Cristo, que é professor na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), observa que as universidades brasileiras desconhecem a demoscene, enquanto na Europa – especialmente em países escandinavos como Noruega e Finlândia – elas são terreno fértil para os “sceners”.

Outro problema, segundo ele, é que o Brasil ainda não encontrou seu próprio mercado para os jogos eletrônicos, concentrando-se demais no que vem de fora do país. “Não existe um incentivo real para programadores, artistas gráficos ou músicos investirem na pesquisa de novas tecnologias, seja para games, seja para demos”, lamenta.

Etherea, demo brasileiro que ficou em 2º lugar em competição no Japão (Foto: Reprodução)Etherea, demo brasileiro que ficou em 2º lugar em
competição no Japão (Foto: Reprodução)

Mesmo assim, há mais brasileiros que insistem em criar demos. Vander Nunes, apelidado na cena de “imerso”, conheceu as demos ainda no início da década de 90, quando se conectou a rede de BBS (bulletin board system) FIDONET – um sistema de troca de notícias que funciona com ligações telefônicas.

“Consegui um Amiga 500 importado ilegalmente. Nessa mesma época, eu montei um pequeno BBS com um modem, que inicialmente era de 2400 bps, mas chegou a fantásticos 33.6 kbps. Outras pessoas espalhadas pela cidade e pelo país tinham o mesmo equipamento ligado ao telefone. Formávamos assim redes amadoras de comunicação nacional e internacional. Durante as madrugadas, meu BBS ligava para alguns Hubs e trocava mensagens com os mesmos. Alguns Hubs mais importantes ligavam para o exterior e trocavam mensagens com os BBSs estrangeiros. Então, na manhã seguinte, todos tínhamos notícias do exterior, e o exterior notícias nossas. Essa era a nossa ‘internet’ da época”, conta.

Nunes é hoje membro do grupo francês Titan, posição conseguida depois que uma demo “feita às pressas” obteve o segundo lugar na Tokyo Demo Fest 2011, no Japão. O programador brasileiro participou da competição 64k, na qual o programa de computador que vai ser executado não pode ter mais do que 64 kilobytes. Esse espaço normalmente não é suficiente para armazenar nem uma foto ou 10 segundos de música, mas o programa de Nunes tem uma animação de vários minutos, em 3D, acompanhada de música. Um “jogo” de 100 kb disponível em Etereo.com.br permite viajar em uma galáxia construída somente com códigos de programação.

O técnico em telecomunicações Robson de Braz também já participou dos grupos europeus “Gravity” e “The Ravebusters”. Fascinado por demos desde 1993, quando também tinha um computador Amiga, Braz só começou a participar da demoscene em 2005. Hoje, ele tem seu próprio grupo, o Códigos, que conta com membros da Europa.

O Brasil não vê uma demoparty desde 1997, com a Z97, organizada por Hugo Cristo. Mas o estudante Danilo Guanabara Fernandes está realizando uma demoparty no Brasil. A ideia é que ela seja realizada em São Paulo, em dias anteriores à Campus Party.  A demoparty “Art Engine” já tem site oficial e página no Facebook.

Composição de música
As músicas das demos de hoje são muitas vezes criadas em softwares profissionais de edição de áudio, como o Cubase ou Reaper. Mas as faixas da demoscene na década de 80 e início da de 90 eram os chamados “módulos” ou “mods” – arquivos de música muito pequenos que podem ser reproduzidos com a mesma fidelidade em todos os sistemas – diferente, por exemplo, do formato de música “midi”, que também é pequeno, mas que cada sistema pode reproduzir de maneira diferente.

Festa da 'modscene' na Noruega (Foto: Steinar H. Gunderson/sesse.net)Festa da 'modscene' durante evento The Gathering,
na Noruega (Foto: Steinar H. Gunderson/sesse.net)

Com 140 mil músicas em módulos disponíveis gratuitamente, o ModArchive tenta arquivar as músicas criadas com essa tecnologia de módulos, composta em softwares chamados de “trackers”. “Os trackers permitiram que usuários comuns de computador pudessem criar músicas sem precisar investir muito em instrumentos e equipamento”, explica o programador holandês Marcel van Wijk, um dos mantenedores do Mod Archive. Os primeiros trackers foram lançados para o computador Commodore Amiga no final da década de 80.

“Quando você baixava uma música, ela vinha em um formato aberto que podia ser visualizado no tracker para ver exatamente o que o músico fez para que o som ficasse do jeito que ficou. Com isso, dava para aprender coisas novas facilmente e melhorar as próprias composições”, explica o webdesigner israelense Eliran Ben Ishai, conhecido como “DNA Groove”, que fez músicas de jogos para a Blitwise e tem composições eletrônicas mais recentes disponíveis em seu site pessoal.

'Spheres on a Plane', demo do grupo Dead Roman em full HD exibido na demoparty The Gathering (Foto: Reprodução)'Spheres on a Plane', demo do grupo Dead Roman exibido na demoparty The Gathering (Foto: Reprodução)

O estudante Johannes Schultz, também do Mod Archive, explica que os arquivos de música nesse formato costumam ser pequenos, o que permitiu que as pessoas conseguissem compartilhar as músicas mais facilmente em uma época sem a internet como a conhecemos hoje. “Usando curtas gravações de instrumentos reais - chamados de samples –, as pessoas conseguiram produzir músicas que soavam bem e com um tamanho pequeno”, diz.

O analista de suporte Elcimar Leandro dos Santos conheceu os arquivos de módulo em 1995, quando encontrou um o tema de Axel Foley (do filme “Um Tira da Pesada”) em um computador no qual fazia manutenção, mas só conseguiu saber como abrir o arquivo em 1996 (“não tinha Google na época”, conta). Depois de tentar usar vários trackers, Elcimar achou o Impulse Tracker.

“Minha vida mudou. Era uma evolução do Scream Tracker feita para ser usada só com teclado, e eu adorei isso. Desde então o Impulse Tracker passou a ser o software que eu mais usei para compor as músicas”, revela. Elcimar chegou a participar do grupo “Imago Project”, formado por Hugo Cristo.

A página no Scene.org tem algumas das músicas do brasileiro, que também teve uma música sua – a Healing Winds – resenhada em uma revista eletrônica da demoscene.

O software de composição de música Renoise foi criado para seguir a lógica dos antigos “trackers” e é hoje usado por bandas e músicos ao redor do mundo.

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