30/08/2013 19h07 - Atualizado em 02/09/2013 22h28

Índice internacional suspende revistas científicas brasileiras

Elas apresentaram número 'anômalo' de citações, diz empresa.
Editores dizem que agiram de boa-fé e que foram mal interpretados.

Rafael SampaioDo G1, em São Paulo

Pelo menos seis revistas científicas brasileiras estão suspensas de um índice mantido pela empresa Thomson Reuters, o chamado "Journal Citation Reports" (JCR), sob a alegação de que elas apresentaram número "anômalo" e "excessivo" de citações recebidas, de acordo com um boletim divulgado pela empresa. Ouvidos pelo G1, editores dessas publicações alegaram ter agido de boa-fé e terem sido vítimas de um erro de interpretação.

A suspensão ocorreu em junho e deve durar um ano. O "fator de impacto", indicador usado para medir a relevância de uma revista científica, é calculado pelo número de citações que a publicação recebe por artigos divulgados em outros periódicos ou na própria revista por um determinado período. A publicação deste dado é que foi suspensa, segundo a Thomson Reuters.

"O fator de impacto oferece uma medida objetiva e importante sobre a contribuição de um periódico na divulgação científica, e sua distorção por uma excessiva concentração de citações é um assunto grave", afirma a nota da empresa.

A decisão atingiu quatro publicações na área médica: a "Revista da Associação Médica Brasileira" (vinculada ao órgão de mesmo nome), a "Clinics" (publicada mensalmente pela Faculdade de Medicina da USP), o "Jornal Brasileiro de Pneumologia" (vinculado à Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia) e a "Acta Ortopédica Brasileira".

Outros dois periódicos brasileiros constam na lista - a revista "Planta Daninha" e a "Revista Brasileira de Zootecnia". No total, mais de 60 publicações internacionais foram listadas como suspensas, aponta o boletim da empresa.

O Journal Citation Reports divulga os dados analisados no ano anterior, portanto a suspensão atinge a divulgação do "fator de impacto" das publicações científicas de 2012.

'Boa-fé'
Os editores das revistas brasileiras ouvidos pelo G1 disseram ter agido de boa-fé, ser alvo de erro de interpretação e não ter tentado enganar o índice mantido pela empresa.

"Quisemos fazer algo para aumentar a internacionalização e a visibilidade, agimos de boa-fé, não fomos bem interpretados"
Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho,
editor do 'Jornal Brasileiro de Pneumologia'

"Quisemos fazer algo para aumentar a internacionalização e a visibilidade, agimos de boa-fé, não fomos bem interpretados", afirmou Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho, professor titular da Faculdade de Medicina da USP e editor-chefe do "Jornal Brasileiro de Pneumologia".

Também professor titular da faculdade e vice-diretor clínico do Hospital das Clínicas da USP, Edmund Baracat, que assumiu a  "Clinics" após a suspensão da revista no índice, evitou fazer críticas à Thomson Reuters e considerou a medida "um direito da empresa".

Baracat ressaltou que a "Clinics" está adotando medidas para evitar problemas similares no futuro, como acompanhamento trimestral no número de citações feitas pela revista e um corpo editorial (composto de mais de um editor).

Editor-associado da revista “Planta Daninha”, Leonardo D'Antonino disse que é a segunda vez que a revista é suspensa no JCR – o caso ocorreu também em 2011. A alegação da Thomson Reuters, diz ele, é que a publicação fez autocitação – quando artigos de uma revista fazem referência ao próprio periódico.

Antonino, no entanto, negou que a revista tenha manipulado dados ou agido de má-fé. “Nós simplesmente reproduzimos na revista o que se produz de pesquisa científica na área no Brasil, 90% dos artigos são brasileiros. Há artigos vindos do Iraque, do Irã, do Afeganistão, do Egito”, diz ele, pontuando haver também uma quantidade significativa de submissões vindas de Portugal e da Espanha.

Professor da Universidade Federal de Viçosa e editor-chefe da "Revista Brasileira de Zootecnia", Marcelo Rodrigues também afirmou ter agido de boa-fé. Ele explicou que a revista inicialmente havia sido suspensa no ano passado, caso que continuou neste ano.

Ele disse que a Thomson Reuters, a partir de um certo momento, passou a considerar que as revistas que citam a si mesmas não fazem uma boa prática para a ciência. "A autocitação é considerada aceitável em torno de uns 30%. Nosso índice infelizmente na época ultrapassou esse valor", pondera.

Como a revista era publicada em português e é uma das referências na área, ela acabou recebendo muitas citações vindas dos próprios artigos publicados, o que potencializou a suspensão no JCR, diz o editor.

Uma das medidas adotadas após o problema foi de controle - atualmente, segundo o professor, a revista está na faixa de 10% de autocitações, o que deve permitir que ela volte ao JCR em 2014. "Não é nenhum interesse de um editor de revista científica manipular dados, não ganhamos nada com isso", disse. "É um trabalho solidário com a ciência, para produzir boa ciência."

O editor da "Acta Ortopédica Brasileira" foi procurado pelo G1, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.

Amontoado de citações
As revistas médicas foram punidas pela prática do "citation stacking", termo que pode ser traduzido como "empilhamento de citações" ou “amontoamento de citações”, que ocorre quando artigos de uma publicação mencionam a produção intelectual de outras revistas numa quantidade considerada excessiva.

Quando ocorre este problema, também chamado de “cruzamento de citações”, tanto a revista que fez as citações excessivas quanto aquela que as recebeu estão sob risco de suspensão, aponta a Thomson Reuters. A prática prejudica a formação do índice por distorcer o “fator de impacto”, diz a empresa.

A Thomson Reuters menciona como exemplo uma revista científica fictícia que passou de 2002 a 2008 recebendo poucas citações ou nenhuma de outro periódico (zero até 2004, de  quatro a 11 até 2008) e de repente recebe 71 citações em 2009 e 67 em 2010. Se a análise mostrar que o percentual dessas citações anômalas chega a uma parte grande do total de menções feitas pela revista “doadora”, ambas podem ser suspensas.

O boletim da empresa não deixa claro qual o percentual máximo de citações que podem ser “trocadas” entre os periódicos, mas o exemplo apresentado mostra a revista “doadora” fazendo até 90% das citações obtidas pela revista “receptora”.

Artigos de revisão
O professor Carvalho, do "Jornal Brasileiro de Pneumologia", reconhece que artigos de revisão divulgados em revistas científicas brasileiras em 2011 provavelmente ajudaram a causar o problema da suspensão. Ele menciona um artigo publicado em dezembro de 2011 na "Revista da Associação Médica Brasileira" revisando o que havia sido produzido no Brasil nos últimos anos termos de pesquisa cardiorrespiratória.

O artigo, afirma o professor, fazia mais de 230 referências a pesquisas publicadas em outras revistas. Só o "Jornal Brasileiro de Pneumologia" foi citado 83 vezes, aponta Carvalho. Para ele, no entanto, isso ocorreu por fatores como o baixo número de publicações científicas a respeito de áreas específicas no Brasil, como a pneumologia.

O único jornal específico de pneumologia é o nosso, obviamente haveria um grande número de artigos"
Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho,
editor do 'Jornal Brasileiro de Pneumologia

"Como o único jornal específico de pneumologia é o nosso, obviamente haveria um grande número de artigos [citados sobre o tema]", afirma. Ele considera que a publicação que ele dirige não foi acusada de fazer um grande número de citações a outras em artigos, mas sim de recebê-las.

O objetivo dos editores das revistas suspensas, pondera o professor, não era aumentar o "fator de impacto". "A ideia era expor aos pesquisadores, através de artigos de revisão, o que a ciência brasileira vem produzindo na área respiratória, ortopédica, cardiológica, a ideia era ampliar [o debate]."

Carvalho diz terem sido feitas várias reuniões entre editores de revistas nos últimos anos em que foram discutidas ações para obter maior exposição e internacionalização da pesquisa científica brasileira. Nessas reuniões foram feitas sugestões, como produzir mais artigos de revisão que avaliassem o conhecimento científico produzido no país. Provavelmente artigos deste tipo foram os responsáveis pelo problema, pelo ponto de vista do professor.

O docente avalia que a produção de artigos de revisão deste gênero nunca havia sido considerada inadequada. "Existem outras formas até mais simples de aumentar o 'fator de impacto', como a chamada 'autocitação'", que não foram encontradas nas revistas médicas pela Thomson Reuters, avalia Carvalho.

Comportamento anômalo
Uma nota da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) de julho reforça o caso, afirmando que a Thomson Reuters adotou a medida devido a um "comportamento anômalo destes periódicos no tratamento das citações que compõem o fator de impacto das revistas".

"O Conselho Superior [da Capes] considera inaceitáveis atitudes como estas, que não coadunam com os princípios da ética científica"
nota da Capes sobre a suspensão

Segundo a Capes, a decisão da empresa que divulga o índice ocorreu após a constatação de "excesso de citações cruzadas entre os periódicos". O órgão governamental diz usar o "fator de impacto" para avaliação de programas de pós-graduação, além de outros indicadores.

A instituição condenou a prática. "O Conselho Superior [da Capes] considera inaceitáveis atitudes como estas, que não coadunam com os princípios da ética científica", disse, em nota.

Após o caso, o órgão anunciou que retiraria as revistas científicas brasileiras e internacionais punidas da base de dados do Qualis Periódicos, um dos quesitos utilizados para avaliar e classificar a qualidade da produção dos programas de pós-graduação no país.

Tanto Carvalho quanto o editor-chefe da "Revista da Associação Médica Brasileira", Bruno Caramelli, que também é professor da Faculdade de Medicina da USP, consideraram a punição da Capes mais severa que a da Thomson Reuters.

"Estamos detectando uma queda na submissão e nos artigos já aprovados, que o autor pede para retirar porque não vai estar no Webqualis e, portanto, não entrará para a avaliação da pós-graduação", disse Caramelli, segundo uma nota divulgada pela Associação Médica Brasileira (AMB).

"A partir do momento em que essas revistas são retiradas do sistema [Capes], todo e qualquer pesquisador brasileiro deixa de procurar essas revistas para publicar seu trabalho", afirmou Caramelli.

"A partir do momento em que essas revistas são retiradas do sistema [da Capes], todo e qualquer pesquisador brasileiro deixa de procurar essas revistas para publicar seu trabalho"
Bruno Caramelli,
editor da "Revista da AMB"

A Capes foi procurada pelo G1 por telefone e e-mail para opinar sobre as questões levantadas pelos editores das revistas, mas não se pronunciou até o fechamento da reportagem. O órgão considerou que a “única resposta oficial” a ser dada é a nota oficial divulgada em julho.

Prazo para terminar
Carvalho aponta que a penalidade no índice internacional tem prazo para terminar - as publicações devem ser reavaliadas em 2014 e podem voltar ao JCR. Não está claro, no entanto, se o mesmo ocorrerá no sistema da Capes, diz ele. "A Capes tomou uma atitude violenta, sem conversar com os editores, simplesmente excluiu", reclama.

Para o professor, o órgão do governo poderia ter convocado os editores das revistas, discutido os motivos, feito sugestões e tentado alternativas. "Essa medida da Capes desestimula o envio [de artigos científicos]. É uma punição contra a pós-graduação", considerou.

Na opinião do docente, a Capes deveria considerar que são revistas prestigiadas, com 40 ou mais anos de existência. "Você manter um periódico científico por décadas é um desgaste, um investimento enorme", afirma. "Eu não iria me meter a fazer uma coisa espúria, todos nós somos professores e pesquisadores, trabalhamos com ensino, tenho reconhecimento das minhas pesquisas nacional e internacionalmente."

Carvalho considera que a Capes possui um sistema de avaliação da pós-graduação muito baseado no "fator de impacto". "Essa é a opinião de um grande número de pesquisadores brasileiros. A Capes deveria ter uma forma de avaliar a importância da pesquisa", e não focar com tanta ênfase em citações, afirma.

Leonardo D'Antonino relata dificuldades com a "Planta Daninha" após a suspensão pela JCR e a punição da Capes. “Prejudica demais, derruba o trabalho. Podemos ter problemas de financiamento”, lamenta, contando que o número de artigos submetidos caiu desde o ocorrido.

Baracat diz que houve queda de cerca de 50% no número de artigos submetidos à “Clinics”. Antes da suspensão, o número de trabalhos enviados chegava a 80 por edição – eles são analisados e há um controle de qualidade, só uma parte entra na revista, diz o professor.

Uma medida mais justa, na avaliação do professor, seria a Capes retirar os artigos das revistas científicas suspensas referentes apenas ao ano em que a publicação foi punida. “Trabalhos publicados antes da decisão [da empresa] deveriam ser considerados. Na época em que eles foram publicados, não houve problema algum.”

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