Brasil

Clubes de maconha: baseados num vazio legal

Parlamento espanhol debate futuro de agremiações que reúnem usuários da erva graças a brecha na lei

Pedro Sánchez (de óculos, à direita), presidente do clube em Madri, anota pesos da maconha distribuída entre os sócios ali: 73 confiscos e 15 dias de prisão desde 2011
Foto:
Priscila Guilayn
Pedro Sánchez (de óculos, à direita), presidente do clube em Madri, anota pesos da maconha distribuída entre os sócios ali: 73 confiscos e 15 dias de prisão desde 2011 Foto: Priscila Guilayn

MADRI - Pedro Pérez apaga o “14” desenhado a giz num quadro negro e, em seu lugar, escreve: zero. É o número de dias que os sócios do Le Santa passaram sem ter maconha apreendida pela polícia na saída desse discretíssimo clube de cannabis madrilenho. A marca foi quebrada na noite anterior, pela ação de um agente disfarçado de mendigo. Desde que o Le Santa Le Club abriu, em 2011, os sócios tiveram sua erva confiscada 73 vezes, e Pérez, seu presidente e fundador, passou um total de 15 dias atrás das grades como consequência de cinco batidas, durante as quais os tupperwares repletos de “camarões” que suprem os associados acabaram apreendidos. Depois, tudo foi sempre devolvido. E Pérez, absolvido por um juiz da acusação de tráfico de drogas. Há anos, a mesma coisa se repete: Pérez, como a maioria dos responsáveis por até 800 clubes de cannabis espanhóis, vive um limbo jurídico. O consumo no país só é explicitamente proibido na rua, de maneira que são cada vez mais comuns as associações que distribuem a erva em ambientes privados. Fartos das frequentes, ainda que inócuas, investidas policiais, seus adeptos querem mais: eles exigem a legalização.

Nesta segunda-feira, o Parlamento espanhol começa a debater o futuro desses clubes. As razões alegadas por seus sócios para frequentá-los são muitas — de pura recreação a uso terapêutico —, mas, em comum, eles evocam a brisa mundial que sopra a favor da liberação, movimento que ganhou ímpeto com o Uruguai e, depois, com o estado americano do Colorado.

— A maconha que foi confiscada e, depois, devolvida fica guardada. Ninguém fuma. Assim, se a policia voltar aqui, perguntaremos se vão querer levar a erva que o juiz mandou devolver. Não têm sentido (as batidas). Por essas e outras, a discrição aqui é total, e nosso endereço nunca é divulgado — Pérez afirma.

Atrás de portões de ferro, sem cartazes nem letreiros, seguidos de uma segunda e de uma terceira portas (com segurança reforçada por leitor de impressão digital, interfone ou câmera), funciona parte dos clubes, que ainda costumam comprovar a identidade da pessoa pedindo a carteira de sócio. A rigidez das agremiações federadas, no entanto, contrasta com o descontrole de outras, não registradas nas federações regionais canábicas.

EM BARCELONA, IRREGULARIDADES

As “ovelhas negras” basicamente se concentram em Barcelona, onde os clubes quadruplicaram desde 2011 e podem chegar a faturar, segundo se estima, € 5 milhões ao mês. Se, geralmente, o limite de sócios em cada um é de 500 (a taxa de inscrição ronda os € 10), na capital catalã pode chegar a 15 mil. Além disso, no resto do país, para se associar é preciso ter mais de 21 anos, ser indicado por um membro e superar duas entrevistas. Já na Catalunha alguns clubes ignoram as exigências e saem pelo passeio marítimo captando turistas. Outras das irregularidades cometidas são o envio expresso de maconha, no sistema de entrega pelo correio. Os dirigentes dos clubes que seguem o chamado “código de ética” da categoria esperam que as atitudes ruins dos infratores não impactem as discussões no Parlamento.

— Se, quando regularem (os clubes), a lei for muito restritiva, continuarei lutando para que acabe a hipocrisia na Espanha e se veja que a cannabis não é uma droga a mais. Está provada sua importância terapêutica — argumenta a professora primária Alba Sánchez, fundadora do clube Zhara, no qual 15 dos 80 membros são sócios terapêuticos.

Depois de receber o diagnóstico de um Linfoma de Hodgkin, e começar as sessões de quimioterapia, ela passou a fazer uso da maconha, com prescrição médica, a fim de aplacar as náuseas. Alba, que nunca tinha provado um baseado, pediu a seu irmão mais velho para conseguir a droga. Desde então, ela a aspira com um inalador especial. O mesmo aconteceu com a promotora musical Carola Pérez, coordenadora do gabinete terapêutico da Federação Madrilenha de Associações de Cannabis, que, com as inalações, enfrenta melhor as dores de coluna que 11 cirurgias não conseguiram solucionar. Elas andam com as receitas médicas na bolsa para evitar problemas com a polícia.

— Vai depender do critério do policial apreender ou não, mas eles costumam ser mais humanos — Carola explica.

A Catalunha é a região autônoma espanhola onde o uso terapêutico da cannabis está mais avançado, já que foi aprovado, em 2001, pelo Parlamento local. Agora, como o País Basco e Navarra, debate a legalização dos clubes.

— A prefeitura de Barcelona paralisou a concessão de licenças e está redigindo uma normativa muito restritiva. Mas o importante acontecerá no Congresso Nacional — conta Bernardo Soriano, advogado especializado em maconha.

O foco, por ora, é na regulação dos clubes, que, sem estarem proibidos ou regulamentados, são abertos com base em jurisprudências. Embora, hoje, o uso na rua seja ilícito, os usuários não são presos, mas apenas “registrados”. Além disso, a erva é apreendida, e há multa de € 300 a € 30 mil.

Apesar da relativa proteção ao consumo em ambientes privados, os clubes federados costumam permitir a retirada de, no máximo, 20 gramas de uma só vez (e por semana). É que a maioria das apreensões da droga ocorre quando os usuários estão deixando as agremiações, já na rua.

O cultivo tampouco é expressamente proibido. Mas, se a polícia encontra plantações, estas são arrancadas, e o juiz, com base em indícios (se a pessoa é consumidora, se há dinheiro, se há cannabis embalada, se há lista de nomes), arquivará o processo ou classificará como tráfico de drogas.

— O clube deve ter uma previsão de consumo dos sócios para o cultivo — diz Soriano. — Tudo está estabelecido em um contrato assinado na adesão do sócio. O delito ocorre quando o clube compra ou produz quantidades aleatórias para vender a quem aparecer.

VENDA A  €6 O GRAMA

A destruição de uma plantação, no entanto, poderia asfixiar economicamente uma associação. Por isso, o abastecimento de muitas costuma ser por “compra mancomunada”: os sócios dizem quanto consumirão (o limite individual recomendado é de 60 gramas por mês, e o limite máximo permitido, em geral, é de 100 gramas, a € 6 o grama), e o clube adquire a droga.

— A finalidade dos clubes é poder se autoabastecer. Mas, por enquanto, não tem jeito. Cultivar é arriscado, temos que ir ao mercado negro — conta o carpinteiro Dario Gutierrez, secretário do clube One Dream.

Pedro Pérez, do Le Santa, apressa-se em esclarecer:

— Mas que fique bem claro: não tratamos com narcotraficantes.