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Saleem Haddad: “É difícil falar sobre ser gay e árabe quando sua identidade é tão politizada”

Saleem Haddad: “É difícil falar sobre ser gay e árabe quando sua identidade é tão politizada”

Em seu romance de estreia, o escritor nascido no Kuwait aborda as particularidades de ser integrante da comunidade LGBT no Oriente Médio

TERESA PEROSA
01/07/2016 - 09h00 - Atualizado 01/07/2016 23h28
O escritor de origem árabe Saleem Haddad (Foto: Divulgação)


Pouco depois do ataque à boate LGBT Pulse, em Orlando, uma imagem que exibia três homens gays em visual drag queen viralizou nas redes sociais. Além do impacto óbvio do que ainda é de alguma forma visto como fora do comum – homens vestidos com trajes femininos – a mensagem que acompanhava a foto era marcante: “Meu coração está com as vítimas do ataque homofóbico em Orlando. Então aqui está uma foto de três homens árabes vestidos em drag. Porque dane-se a homofobia e dane-se a islamofobia e os hipócritas que usam um para justificar o outro. Vocês todos têm sangue em suas mãos. E, se essa foto lhe ofende, você também tem sangue em suas mãos”. Nos dias que se seguiram, foram mais de 11 mil curtidas e 4 mil compartilhamentos no Facebook.

O responsável pela publicação foi o jovem escritor árabe Saleem Haddad – na foto, ele se encontra do lado direito, segurando um cigarro. Nascido no Kuwait, filho de uma mãe iraquiana-alemã e de um pai palestino-libanês, Haddad viveria ainda na Jordânia e no Chipre durante a infância e adolescência, até se mudar para o Canadá, para cursar o ensino superior. Hoje, mora em Londres. Em março, publicou Guapa, seu romance de estreia, ainda sem data para chegar ao Brasil. Nele, Haddad narra a história de um dia na vida de Rasa, um jovem árabe gay de 20 poucos anos que lida com a própria orientação sexual, as expectativas da família e os reflexos de um regime político autoritário. Em entrevista a ÉPOCA, Haddad fala sobre as generalizações que permeiam as discussões sobre ser gay no mundo árabe e islâmico e sobre a importância de se ouvirem as múltiplas vozes da comunidade LGBT na região.

ÉPOCA – O senhor é cidadão britânico. Como votou no referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia?
Saleem Haddad –
Votei pela permanência. Em Londres, nós vivemos em uma espécie de bolha, onde a vasta maioria quer ficar na União Europeia. É um pouco engraçado, porque na minha rotina constantemente estou exposto a argumentos pela permanência e todas as pessoas que conheço votaram pela permanência, mas, quando você olha para as pesquisas e para como as pessoas votaram, a maioria das pessoas fora das grandes cidades defendia a saída. A campanha pela saída foi sequestrada fundamentalmente por racistas que manipularam com mentiras aqueles que não têm informação o suficiente. Os dois lados da campanha foram muito feios, na verdade. Mas a campanha pela saída, os níveis de racismo e xenofobia que emanavam dali, tornou muito difícil apoiá-la, mesmo que haja argumentos válidos para a saída. Os dois lados têm razões válidas, mas quando um lado está dominado por linguagem racista é impossível apoiá-lo. Eles escolheram ir pelo lado anti-imigração, da incitação ao pânico, que é terrível. Mas na Europa de maneira geral, não só no Reino Unido, vivemos uma onda crescente de discurso xenofóbico. A forma como ideias racistas estão circulando no discurso público, sem nenhum pudor, nenhuma autocrítica, é muito assustador.

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ÉPOCA – O que lhe motivou a publicar a foto com você e seus amigos vestidos como drag depois do ataque em Orlando?
Haddad –
Aquela foto foi tirada na noite anterior ao ataque em Londres. Nós saímos para uma festa drag bem grande aqui. Quando tiramos a foto, conversamos entre nós e dissemos: não podemos compartilhar isso nas redes sociais, o que as pessoas vão dizer? E, de manhã, acordamos e vimos as notícias desse ataque horrível. Nós tínhamos ido a essa festa drag na noite anterior, então sentimos uma conexão muito forte e a necessidade de falar alto, não só como parte da comunidade LGBT, mas também como parte deste outro grupo que estava sendo demonizado na mídia, os árabes e os muçulmanos, depois do ataque em Orlando. Para nós, foi muito empoderador postar isso, tendo como alvo não só aqueles com posicionamentos homofóbicos, em nossa comunidade ou de maneira mais ampla, mas também aqueles que estavam instrumentalizando esse ataque com objetivos políticos.

A foto postada por Saleem, pouco depois do ataque à boate pulse em Orlando - o escritor se encontra do lado direito, segurando um cigarro (Foto: Reprodução/ Eman A)



ÉPOCA – Em um artigo publicado pelo site Daily Beast o senhor escreveu “Queers árabes enfrentam uma luta dupla: enquanto nós lutamos contra as forças opressivas dentro de nossas próprias comunidades, nós também estamos resistindo à narrativa global que tenta usar nossa ‘opressão’ para atingir objetivos militares e políticos”. Pode explicar em que sentido?
Haddad –
Não é segredo que em muitos países do Oriente Médio e em países árabes, como em todo o mundo, nós temos problemas com homofobia, misoginia e o patriarcado. Nós, queers [termo oriundo do inglês e antes considerado um xingamento dirigido a gays. Hoje, serve para designar pessoas cuja orientação sexual ou identidade de gênero não corresponde ao padrão heterossexual ou a seu sexo biológico – o conceito busca abarcar gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros] árabes, e as mulheres também, estamos lutando contra essas estruturas patriarcais e homofóbicas em nossos países. O desafio é que, para jovens árabes com minha idade, com seus 20, 30 anos, os ataques de 11 de setembro de 2001 se tornaram um grande marco em nossas vidas e tudo o que veio depois disso nos abalou. Depois do 11 setembro, quando teve início a invasão americana do Afeganistão, uma grande parte do objetivo declarado foi a libertação das mulheres afegãs. Havia essa ideia de que os Estados Unidos iriam até lá para salvar as  mulheres do Oriente dos homens do Oriente. Tornou-se muito difícil para as mulheres ativistas se colocarem contra o patriarcado em sociedades árabes e muçulmanas, mas ao mesmo tempo elas não queriam que sua luta fosse cooptada em prol dos objetivos militares do governo dos Estados Unidos. Agora, mais recentemente,  tem havido uma lenta instrumentalização do mesmo tipo,  em relação aos homossexuais no Oriente Médio. A mídia ocidental passou a destacar como o Estado Islâmico atira homens gays do alto de prédios. É o mesmo padrão. Nos ataques de Orlando, por exemplo, os muçulmanos e árabes LGBTQ foram de repente convocados para tentar explicar a homofobia em sociedades muçulmanas ou falar sobre as dificuldades que enfrentam em nossas comunidades. Isso endossa uma narrativa de “barbarismo islâmico”, de que as comunidades islâmicas são bárbaras, quando a realidade é muito mais complexa que isso.

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ÉPOCA – Como foi sua experiência pessoal, quando descobriu que era gay e entendeu sua sexualidade como parte de sua identidade?
Haddad –
É importante mencionar que minha experiência é apenas minha experiência, não representa aquela de todos da comunidade LGBT no Oriente Médio. Sinto que sempre fui um outsider. Tenho uma ascendência muito misturada. Meu pai é libanês-palestino, minha mãe é meio alemã, meio iraquiana, nós nos mudamos frequentemente enquanto eu crescia. Então, sempre me senti como sendo “de fora”. Foi muito difícil quando comecei a me dar conta de minha sexualidade, porque percebi que tinha esse outro elemento de diferença. E, a meu redor, não via nenhuma representação positiva de pessoas gays, e ainda menos de árabes gays. Essa descoberta ocorreu nos anos 1990 e, mesmo então, se você olhasse para a cultura pop americana, os programas de TV e os filmes, não havia tantas representações de personagens gays positivos nesses produtos, nem nos Estados Unidos. Cresci sem ter nenhum direcionamento em minha vida. Em termos do que eu podia ver a meu redor, o único caminho era me casar com uma mulher e esconder minha sexualidade. Foi uma experiência muito traumática. E, quando fui para o Canadá, para estudar na universidade, pensei que seria a chance de explorar minha sexualidade. Mas cheguei ao Canadá três semanas antes de o 11 de setembro acontecer. Depois disso, foi algo como: esqueça a questão gay, agora tenho ficar bem resolvido com o que significa ser árabe. Quando você cresce no Oriente Médio e todos a seu redor são árabes, você não pensa sobre isso. No Canadá, as pessoas entendiam minha identidade árabe de uma forma muito diferente. Existe essa ideia de que a libertação acontece quando você vai para o Ocidente. Na verdade, para mim, o que encontrei foi esse novo marcador de diferença da qual precisei superar. Só quando voltei ao Oriente Médio, para a Jordânia especificamente, é que fui capaz de encontrar outros árabes gays em bares, em cafés. A internet ainda não era o que é agora, em termos de ser um ponto de encontro e contato, então muito disso acontecia em alguns cafés e bares. Esses espaços são muito importantes para mim. Foi por isso que decidi escrever o romance e intitulá-lo Guapa, que é o nome do bar no livro.

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ÉPOCA – O senhor começou trabalhando na área de ajuda humanitária. O que o levou a escrever Guapa?
Haddad –
Em parte, por tudo isso que falei. É difícil falar sobre ser gay e árabe, em um clima em que sua identidade é tão politizada e de tantas formas diferentes. Senti que precisava expressar todos esses desafios, e a única forma de fazer isso era de maneira muito emocional, pela ficção. Queria explorar o que significava ser gay e árabe e as nuances e os desafios únicos disso, mas não queria escrever um livro de memórias. Senti que podia fazer muito mais por meio da ficção. O que orientou meu desejo de escrever o livro foi o sentimento de que tudo era possível, especialmente depois das revoluções árabes que aconteceram em 2011, que foi quando comecei a escrever. Naquele ano, a sensação era que qualquer coisa era possível e que você podia ser qualquer coisa. Queria explorar essa linda revolução política, que na época parecia tão otimista. E, é claro, conforme eu escrevia e as notícias iam chegando e a situação se tornava mais complicada e mais triste, obviamente isso foi absorvido pelo livro. Então, o Guapa acabou se tornando um exame dessa ideia de uma revolução política acontecendo enquanto o personagem se torna adulto e como esses dois elementos conversam entre si.

ÉPOCA – Por que decidiu ambientar a história em uma cidade árabe sem nome?
Haddad –
Estava muito preocupado em contribuir com a ideia de que o Oriente Médio é uma massa homogênea e que não há diferença entre os países. Não acho que a história deve ser lida como uma análise política. É uma história sobre revolução e amor, as relações entre amor, família e revolução, tanto a revolução interna como a externa. Enquanto escrevia, estava viajando muito para o Iêmen, Egito, Líbia e estava trabalhando com a questão na Síria. Não viajei para lá, mas trabalhava com o tema. Então, a política desses países foi absorvida nesse país imaginário que criei. Mas estava explorando ideias, em vez de dizer: vou falar sobre a vida gay no Líbano, ou a vida gay no Egito, realmente não queria fazer isso.

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ÉPOCA – A literatura tem um papel em romper com esses estereótipos e imagens de um Oriente Médio homogêneo e único?
Haddad –
Com certeza, tenho uma fé muito grande na literatura. Não coloco toda a minha fé na literatura, não acredito que ela acabará com as guerras, mas tenho fé na capacidade da literatura em criar empatia e compreensão. A coisa mais importante que sinto ter aprendido nesse processo foi como percebi que, assim como eu, muitos árabes gays cresceram sem se ver representados. Nós não nos víamos nos jornais, na televisão, nos filmes, nós sempre tivemos de nos imaginar em diferentes construções. Depois de escrever esse livro, recebo e-mails de árabes gays de diferentes países, em que eles dizem que “essa foi a primeira vez que li um livro e finalmente sei o que é se sentir representado na minha cultura. Isso para mim é algo tão importante quanto construir pontes com outras comunidades. Apoiar a minha própria comunidade e dizer que a nossa experiência é válida o suficiente para estar em um livro.

ÉPOCA – A representação da comunidade gay na cultura poderia então ser um primeiro passo importante para a comunidade LGBT árabe ter suas questões solucionadas?
Haddad –
Sim, essa representação para mim é muito importante. Mas também percebi que a minha opinião em relação a isso não necessariamente reflete as ideias de outros sobre o assunto. Existe uma tensão na comunidade sobre [o tema]. De meu ponto de vista, é importante que nossas vozes sejam ouvidas não só por nós, mas também por outros. Mas respeito aqueles que consideram que sair do armário [sobre sua orientação sexual] não é algo que necessariamente queiram fazer. É necessário que haja respeito para as diferentes opiniões. E uma coisa importante para falar é que os movimentos LGBT no Oriente Médio estão articulando sua luta não só em relação a direitos gays, o direito a casar, por exemplo, mas o fazem dentro de um contexto mais amplo de luta por liberdade, justiça, proteção e liberdade individual na condição de cidadãos, independentemente se você é um homem gay ou uma mulher heterossexual. De muitas maneiras, os desafios enfrentados pelos homens gays são os mesmos enfrentados por mulheres héteros. E mesmo homens héteros enfrentam muitos desafios em muitos países árabes. Temos ditaduras militares, o controle dos direitos sobre os corpos e sobre a liberdade sexual. É algo que vai além da comunidade LGBT na região. Então, construir essas conexões dentro das diferentes lutas no mundo árabe é algo que os movimentos LGBT estão fazendo muito bem. Não acho que a comunidade LGBT no Oriente Médio queira compartimentar sua luta.

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ÉPOCA – O cantor Hamed Sinno, da banda libanesa Mashrou Leila’, que também é abertamente gay, mencionou em uma entrevista que uma das dificuldades que ele sente em ser um artista do Oriente Médio é a pressão para que represente toda a cultura árabe e/ou islâmica. O senhor sente o mesmo?
Haddad –
Sim, definitivamente. É uma situação muito difícil. Enfrento isso frequentemente. As pessoas, principalmente nos Estados Unidos, vêm até você e o entrevistam como se você pudesse representar 1,6 bilhão de pessoas ou o componente gay dessas 1,6 bilhão de pessoas. Isso é injusto, impossível de fazer, e também deixa a pessoa vulnerável à crítica, porque o que se diz é tomado como “isso é o que a comunidade LGBT árabe pensa”. Esse foi um dos principais impeditivos para escrever o romance, porque eu estava com muito medo. Pensava: ao escrever sobre isso, estou representando essa comunidade gay da melhor forma possível? Estou mostrando a diversidade da comunidade? E, no fim, a única forma que me fez conseguir escrever o livro foi remover essa pressão de mim, dizer para mim: “Saleem, você não precisa representar todos eles. Só fale sobre sua própria experiência e conte a história que quer contar, não se preocupe com representação. E essa foi a coisa mais poderosa que me permiti fazer, mas é uma luta constante. Em toda entrevista, preciso dizer: essa é minha experiência, isso é o que eu penso. Eu sou uma voz entre outras vozes. Talvez seja por isso que a ideia de representação e de fazer com que nossas vozes sejam ouvidas é tão importante. Porque então começaremos a ter uma diversidade de perspectivas.

ÉPOCA – O que o senhor diria para alguém, dos países ocidentais, que dissesse: vocês são mais perseguidos lá do que aqui?
Saleem –
Diria em primeiro lugar para ler meu livro [risos]. É importante dizer que existem muitas lutas e que a vida é muito difícil para algumas pessoas no Oriente Médio, você não pode eliminar essas dificuldades. As vidas dos refugiados, as pessoas enfrentando a guerra na Síria, pessoas sem documentos, sem passaportes, sejam elas palestinas ou do Golfo, essas pessoas enfrentam muitas dificuldades e opressões. Mas diria que há muitas nuances, é muito mais complicado. Nós estamos falando de 1,6 bilhão de pessoas, que vivem momentos de alegria, vão a boates, festas, supermercados, shoppings. As pessoas saem de suas casas e vivem suas vidas todos os dias. Violência e fascismo existem em todos os lugares. Nós vimos isso em Orlando. Essa violência associada a esse ideal militar de masculinidade que você vê no Exército americano, na polícia americana. Imagino que no Brasil vocês devam ter isso também. Essas formas de violência existem em todas as comunidades. E o Oriente Médio não é exceção. Mas há também grandes momentos de apoio, alegria e liberdade – e essa é a beleza do Oriente Médio.








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