Por Bárbara Muniz Vieira, G1 SP — São Paulo


Sacerdote de umbanda fala sobre violência contra adeptos de religiões de matriz africana

Sacerdote de umbanda fala sobre violência contra adeptos de religiões de matriz africana

O número de denúncias de discriminação religiosa contra adeptos de religiões de matriz africana no Brasil feitas pelo Disque 100, serviço de atendimento 24 horas do Ministério de Direitos Humanos, aumentou 7,5% em 2018. Foram 71 denúncias do tipo feitas de janeiro a junho deste ano, contra 66 no mesmo período de 2017.

Já as denúncias feitas por discriminação contra todas as religiões caíram de 255 para 210, queda de 17% no mesmo período.

Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Nesta terça-feira (20) é celebrado o Dia da Consciência Negra.

Em todo o ano 2017, foram 145 denúncias de discriminação religiosa em todo o país. São Paulo teve 29 denúncias por meio do canal. O estado só fica atrás do Rio de Janeiro, com 34 denúncias.

Nem todos os casos são denunciados pelo telefone do ministério. O G1 ouviu adeptos de religiões afro que sofreram violência, e nenhum deles conhecia o canal.

Imagem de preto-velho, entidade cultuada em religiões de matriz africana como a umbanda — Foto: Fábio Tito/G1

Ao mesmo tempo em que crescem as denúncias de violência, as religiões afro-brasileiras registraram crescimento de 43,8% no número de adeptos em São Paulo, de acordo com o estudo “Diversidade Étnico-racial e Pluralismo Religioso no Município de São Paulo”, publicado em dezembro de 2016.

Ao todo, 50.794 pessoas declararam ser de umbanda, 18.058 do candomblé e 854 de outras religiosidades afro-brasileiras. A soma representa 0,6% das 48 religiões ou convicções filosóficas declaradas. “Muitos de seus fiéis preferem não se identificar publicamente por receio de discriminação religiosa”, diz o estudo.

Alexandre Cumino posa no Colégio Pena Branca, terreiro de umbanda que ele está à frente no bairro do Ipiranga, Zona Sul de SP — Foto: Fábio Tito/G1

Invasão e destruição

A casa de candomblé Ilê Asé Ojú Oyá, localizada em Guaianases, bairro da Zona Leste da capital, foi atacada em março deste ano. Paula Torrecilha Ty Ayrá, 31 anos, conta que o local foi invadido, teve objetos furtados e quebrados.

"Quando chegamos, encontramos tudo revirado, todos nossos objetos sagrados no chão, espalhados, coisas vandalizadas, quebradas. Na cozinha jogaram todos nossos alimentos no chão. Muita coisa foi roubada", disse.

"Em um primeiro momento, ficamos bem fragilizados, com medo de que acontecesse novamente e nos tornasse vítimas de violência física, além da violência psicológica que um caso desses submete não só os integrantes da casa, mas toda a comunidade. Mexer com um acaba abalando o todo", conta Paula.

Segundo ela, a casa é formada majoritariamente por mulheres lésbicas, bissexuais, trans negras e periféricas. "Somos todas de luta. Esse ataque, que queria nos fragilizar, nos destruir, só serviu para nos unir e fortalecer. Descobrimos juntas um meio de restabelecer nosso Asé que foi profanado, reerguer tudo que foi levado e destruído."

A casa de candomblé Ilê Asé Ojú Oyá, localizada em Guaianzes, Zona Leste da capital, foi atacada em março deste ano — Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

Para Alexandre Cumino, sacerdote de umbanda e diretor da Associação Umbandista e Espiritualista do Estado de São Paulo (Aueesp), a intolerância religiosa é advinda do preconceito em relação ao negro, à cultura do negro e à religião do negro.

"Boa parte dos casos [de violência] está relacionada a segmentos religiosos que têm uma discriminação e um preconceito na sua pregação doutrinária e identificam o Deus do outro como o diabo", explica ele.

Cumino é autor do livro "Exu não é o diabo", que desmistifica a ideia de que o orixá Exu é o representante do mal e por isso deve ser combatido.

"Há pessoas de outras religiões que acreditam que nosso orixá o Exu é o diabo. Quando se identifica o nosso orixá como o diabo e o diabo como o responsável por todos os males, então na cabeça torpe e infame do ignorante, se acabar com a minha religião, vai acabar com o diabo"

Trabalho para Exu com ponto riscado, padê e vela no Colégio Pena Branca — Foto: Fábio Tito/G1

Segundo Cumino, que é bacharel em ciências da religião, não existe diabo na umbanda e no candomblé. Essas religiões não 'culpam' o diabo pelo mal ou por seus erros.

"Diabo é principalmente uma criação judaico-cristã e mais especificamente católica. O Lúcifer é bem católico mesmo, ele não existe no judaísmo. Você tem lá o Satã ou o Shaitan, que é uma figura muito específica no Velho Testamento. No livro de Jó, Satã senta ao lado de Deus e eles estão conversando o que vão fazer com Jó. Então esse Satã judeu que é um opositor, ele não é nem de perto esse grande diabão que construíram e muito menos os Exus, os orixás, ou as entidades de umbanda ou de candomblé, religiões que não reconhecem nenhum diabo. Quando a gente [adeptos da religião] faz uma coisa errada é a gente mesmo [que fez]".

Imagens negras do altar do Colégio Pena Branca, terreiro de umbanda no Ipiranga, Zona Sul de SP — Foto: Fábio Tito/G1

A yalorixá (mãe de santo) Gabriela Beck, 39 anos, do Centro Cultural Eyin Osun, na Vila Industrial, extremo Leste de São Paulo, conta que a confusão entre o orixá Exu com Satanás já lhe rendeu ameaças com faca.

"Temos um vizinho que cresceu comigo no bairro e agora é evangélico. Ele acredita que o Satanás está instalado na minha casa. É desesperador. O problema dele é a casa de candomblé, onde também moro com meu pai. Ele nos ameaça com faca, nos ofende. Eu acho que em grande parte porque meu pai é idoso e eu sou mulher. Eu tenho medo dele fazer alguma coisa, colocar fogo na minha casa, matar meu pai", diz ela.

Gabriela Beck no Centro Cultural Eyin Osun, na Zona Leste de SP — Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

"Racismo religioso"

A maioria dos adeptos de religiões afro-brasileiras na cidade de São Paulo é formada por pessoas brancas, de acordo com uma pesquisa da Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial. São 60,6% brancos, 13,1% pretos e 25,5% pardos.

Embora sejam frequentadas mais por brancos, as religiões de matriz africana são majoritariamente associadas e a negros por causa de suas origens, de acordo com a secretária executiva de Promoção de Igualdade Racial da prefeitura de São Paulo, Elisa Lucas Rodrigues.

"Tudo o que se refere a negros há um olhar extremamente preconceituoso aflorado. São crianças agredidas nas escolas e todo tipo de absurdo que vemos todos os dias na televisão. É engraçado porque se você vai a terreiros, vê maior quantidade de brancos. Eu mesma conheço médicos e advogados, gente da classe média, que está aderindo a essas religiões, mas eles também sofrem essas agressões por serem de uma religião que remete a negros", diz Elisa.

Integrantes do terreiro Ilê Asé Ojú Oyá, em Guaianazes, Zona Leste de SP — Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

O advogado e ex-secretário da Justiça do estado de SP, Hédio Silva Jr., 57 anos, adotou o termo "racismo religioso" para os casos de preconceito a adeptos de religiões de matriz africana.

"Não é tão comum ofensa a ateu, agnóstico, judeu. As ofensas são direcionadas a umbandistas e candomblecistas. E é assustador a apropriação de espaços públicos por grupos privados, por exemplo nas escolas, onde funcionários tornam a escola pública extensão do seu centro religioso", diz ele.

Objetos ritualísticos usados em terreiro na Zona Sul de SP — Foto: Fábio Tito/G1

Segundo o advogado, o papel do estado, pelo que determina a Constituição, é o de assegurar que todos os segmentos religiosos possam se manifestar em clima de harmonia e paz. "O estado acaba sendo cúmplice na propagação dessas violências em um país como o nosso, que tem uma riquíssima geografia de identidade cultural".

Hédio criticou o primeiro pronunciamento de Jair Bolsonaro (PSL) que citou versículos da Bíblia sagrada no domingo (28), logo após ser eleito.

"Nós somos uma diversidade, somos um país plural inclusive do ponto de vista religioso. O primeiro mandatário do país ignorar essa diversidade e assumir publicamente que tem compromisso com uma religião, significa que ele vai atuar por uma fé apenas e isso é péssimo. A crença ou a descrença são matérias do âmbito privado e da autonomia individual. As autoridades públicas não podem tomar uma atitude que afeta toda a população orientadas com base em normas religiosas e privilegiar um grupo com critérios religiosos, porque aí já não é uma democracia."

A casa de candomblé Ilê Asé Ojú Oyá, localizada em Guaianzes, Zona Leste da capital, foi atacada em março deste ano — Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação

Punição

A impunidade é um dos motivos para que crimes de violência contra adeptos de religiões de matriz africana sigam acontecendo em todo o Brasil, de acordo com Hédio.

"O sistema penal funciona segundo os valores da elite branca e para eles esse tipo de crime não é relevante. Há uma subestimação da gravidade. De acordo com a ONU, 75% dos conflitos armados em curso tem alguma motivação cultural ou religiosa, então é gravíssimo porque esse tipo de violência vulnera a dignidade e compromete a paz", opina.

Hédio relembrou o caso do pastor Sergio von Helder, da Igreja Universal do Reino de Deus, que em 1995 chutou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida durante a apresentação do programa “Palavra de Vida” na Record.

"Não é porque achamos que o intolerante tem de ir para a cadeia, mas é que a impunidade retroalimenta a intolerância. Há uma banalização e uma naturalização contra as religiões afro-brasileiras, coisa que não acontece com as demais religiões. Você se lembra da comoção social quando um pastor chutou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida? Fatos muito mais graves atingem cotidianamente os terreiros e não geram a mesma repercussão", diz Hédio.

Alexandre Cumino posa no altar do Colégio Pena Branca — Foto: Fábio Tito/G1

Em São Paulo, a deputada estadual Leci Brandão tem um Projeto de Lei (226/2017, de 25/04/2017) que tramita na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) que dispõe sobre penalidades administrativas a serem aplicadas pela prática de atos de discriminação por motivo religioso. A multa por reincidência pode chegar a R$ 77 mil.

"Existe uma dificuldade desse projeto ser aprovado porque não é de interesse de todos, mas acredito que com leis mais duras, casos de violência seriam coibidos. Quando a pessoa é obrigada a colocar a mão no bolso, percebe que aquilo não é uma brincadeira. A pessoa xinga e ofende, mas ninguém quer ser processado", opina Elisa.

Já existem leis que punem a intolerância religiosa. Os artigos 1º e 20 da Lei nº 9459, de 13 de maio de 1997 dizem que prática, indução ou incitação de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional é passível de reclusão de um a três anos e multa.

Também há o artigo 208 do código penal e o artigo 5º da Constituição, que diz que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

Para Hédio, o problema é a interpretação para o cumprimento das leis. "Nós temos boas leis para o enfrentamento da intolerância, o problema é a interpretação que o sistema penal dá a essas leis. Um dos desafios do período temeroso que vamos enfrentar é garantir uma interpretação dessas leis para que elas sirvam, de fato, para punição."

Altar do Colégio Pena Branca, na Zona Sul de SP — Foto: Fábio Tito/G1

Sacrifício animal é julgado no STF

Uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) questiona uma lei do Rio Grande do Sul que, em 2006, autorizou o sacrifício de animais em cultos de religiões cuja matriz seja africana. O julgamento foi suspenso no dia 9 de agosto após dois votos serem apresentados.

Na ocasião, os ministros Marco Aurélio Mello e Edson Fachin votaram a favor da prática. Alexandre de Moraes pediu vista, ou seja, mais tempo para analisar o caso. Ainda não há data para uma nova votação.

Para o Ministério Público do estado, a lei não pode dar tratamento privilegiado a um grupo religioso.

"Inúmeras outras expressões religiosas valem-se de sacrifícios animais, como a dos judeus e dos muçulmanos, razão pela qual a discriminação em favor apenas dos afro-brasileiros atinge frontalmente o princípio da igualdade, com assento constitucional", argumentou o MP.

Colégio Pena Branca, na Zona Sul de SP — Foto: Fábio Tito/G1

Para Cumino, há sacrifício animal em outra religiões, como o judaísmo, islamismo e hinduísmo, mas só o candomblé (a umbanda não faz sacrifício animal) é atacado por causa do ato.

"No Judaísmo também tem sacrifício animal, no Velho Testamento da Bíblia Deus explica como fazer. Mas o único sacrifício animal que incomoda é o sacrifício [da religião do] negro? O bicho que você come tem de morrer para você comer. Mas nas religiões africanas, o bicho que você vai comer, você sacrifica ele em ritual para depois você comer. As partes que você não come são entregues em oferenda a uma dividade, isso é lindo, é um ritual. Você não mata bicho a torto e a direito, nenhuma religião faz isso."

Altar do Colégio Pena Branca, na Zona Sul de SP — Foto: Fábio Tito/G1

Para Cumino, a intolerância é advinda do preconceito, que, por sua vez, provém da ignorância, que está disseminada.

"Isso se combate com informação, com esclarecimento e com alguns casos deve-se combater com a Justiça. Os adeptos das religiões afro-brasileiras, a umbanda e o candomblé principalmente, não agridem ninguém. Nós não acreditamos que a nossa religião é melhor do que a religião do outro, nós acreditamos que todas as religiões são importantes. A melhor religião é a que faz de você uma pessoa melhor. Agora como é que eu bato e agrido em nome de Cristo?"

Para o sacerdote, pessoas que cometem crimes em nome de Cristo estão "enganadas".

"Religião é a prática do bem, não importa qual religião. Todas as religiões praticam única e exclusivamente o bem, Isso vale para a religião judaica, cristã, o islã, o budismo, vale para todas as religiões de matriz africana, vale para a umbanda. Quando não for assim, é um engano. Agora, muitas pessoas estão enganadas, né? Há pessoas enganadas no cristianismo, há pessoas enganadas na umbanda, no candomblé, e ateus também. Todos têm o direito de viver como quiser, mas têm o dever de respeitar como o outro quer viver."

Gabriela Beck posa no terreiro, na Zona Leste de SP — Foto: Arquivo Pessoal/Instagram

Saiba como denunciar

Os tipos de violação relacionadas à discriminação religiosa de matriz africana recebidos pelo Disque 100 são:

  • Abuso financeiro e econômico/violência patrimonial
  • Discriminação
  • Negligência
  • Outras violações/outros assuntos relacionados a direitos humanos
  • Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes
  • Violência física
  • Violência institucional
  • Violência psicológica
  • Violência sexual

O Disque 100 funciona diariamente, 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados.

As ligações podem ser feitas de todo o Brasil por meio de discagem gratuita, de qualquer terminal telefônico fixo ou móvel (celular), bastando discar 100.

Em São Paulo capital, também é possível denunciar casos de violência e discriminação religiosa através da ouvidoria na Secretaria de Direitos Humanos pelo telefone 3113-8697 ou procurar a coordenação 3113-9689. As denúncias também podem ser feitas pessoalmente, na Rua Libero Badaró, 119, 9º andar, ou pelo email combateaoracismo@prefeitura.sp.gov.br.

As denúncias recebidas são encaminhadas para o Ministério Público e para o Decradi - Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, onde também é possível denunciar.

Alexandre Cumino posa no Colégio Pena Branca, na Zona Sul de SP — Foto: Fábio Tito/G1

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