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Por Guilherme Frossard — de Belo Horizonte

Como um clássico que teve o incrível placar de 9 a 2 ficou tanto tempo sem ser comentado entre os torcedores de Atlético-MG e Cruzeiro, praticamente entrando em pauta apenas em 2011? Por que ainda há, especialmente na torcida celeste, um rumor de que a partida nunca existiu? Quem foram os heróis atleticanos e quem foi Mário de Castro, autor de dois gols no jogo e dono da melhor média de gols de um jogador na história do Alvinegro? Como, por que, quando e onde o jogo aconteceu? Como a imprensa noticiou a partida na época? O duelo dos arquirrivais de Minas com o placar mais extenso da história completa 90 anos nesta segunda-feira, e o GloboEsporte.com produziu uma reportagem especial para contar tudo isso com detalhes - que você, até agora, provavelmente não conhecia.

Taça do Campeonato Mineiro de 1927, conquistada pelo Atlético-MG, está guardada na sede do clube — Foto: Guilherme Frossard

O JOGO

Em 1927, Atlético-MG e Palestra Itália (fundado em 1921 e que se transformou em Cruzeiro apenas no ano de 1942) disputavam o Campeonato da Cidade, então com 11 clubes. Eram oito de Belo Horizonte, dois de Nova Lima e um de Sabará. A competição foi disputada no formato de pontos corridos, mas tinha duas fases. Na primeira, todos se enfrentaram em turno único. Na segunda, os quatro melhores jogaram entre si, também em turno único, para decidir o campeão. O título estava entre Atlético-MG, Palestra Itália, América-MG e Villa Nova. É válido ressaltar que, na época, o futebol em Belo Horizonte era amador. A profissionalização veio anos depois, já na década de 1930. Os jogadores tinham - ou estudavam para ter - profissões fora do esporte. Isso porque não existia a opção "jogador de futebol" como carreira. Não dava para ganhar a vida jogando bola: era um hobbie. O futebol não dava um centavo sequer aos seus protagonistas.

"Trio maldito" : Jairo, Said e Mário de Castro marcaram oito dos nove gols no jogo — Foto: Reprodução/Site do Atlético-MG

Pois bem: na fase final do estadual, que ainda não era nomeado Campeonato Mineiro, Atlético-MG e Palestra Itália se enfrentaram pela segunda vez na competição. A primeira vez havia sido na fase inicial, com vitória atleticana por 4 a 2. No dia 27 de novembro de 1927, no penúltimo jogo do campeonato, a goleada aconteceu. No campo do América-MG, na Avenida Paraopeba - hoje Augusto de Lima - o Galo derrotou o Palestra por 9 a 2. A escalação do Alvinegro teve Oswaldo "Perigoso", Hugo, Chiquinho, Brant, Franco, Ivo, Said, Jairo, Getulinho, Mário de Castro "Orion" e Getúlio. O Palestra entrou em campo com Geraldo, Porfírio, Rizzo, Para-Raio, Nininho, Osti, Nani, Bengala, Piorra, Ninão e Armandinho. A partida era disputada em dois tempos de 40 minutos, e não 45 como hoje em dia. Os gols atleticanos foram marcados por Getúlio, Mário de Castro (2), Said (3) e Jairo (3). Ninão, com dois gols, descontou para os palestrinos.

Com o resultado, o Atlético-MG - que já tinha vencido o Villa Nova na fase final - garantiu o título. Foi o terceiro caneco estadual do Galo (havia vencido em 1915 e 1926), o primeiro bicampeonato consecutivo, interrompendo a série do decacampeonato mineiro do América-MG, de 1916 a 1925. O Galo jogou a última partida, contra o próprio Coelho, apenas para "cumprir tabela", já que o título estava garantido. Perdeu por 3 a 2 - a única derrota no campeonato.

Taça do Campeonato Mineiro de 1927 — Foto: Guilherme Frossard

O NOTICIÁRIO

A reportagem fez uma pesquisa na Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, em busca de conteúdos jornalísticos da época que comprovam e detalham a partida, o 9 a 2. Foram encontrados registros em quatro jornais: "Correio Mineiro", "Diário de Minas", "Minas Geraes" e "Diário da Manhã". Com o vocabulário característico da época, os periódicos descreveram o jogo com detalhes muito interessantes.

A expectativa

Dois dos quatro jornais que colocaram o jogo em pauta fizeram isso antes mesmo dele acontecer. Quem fez o pré-jogo com mais entusiasmo foi o "Correio Mineiro", que publicou notas diárias desde a quarta-feira da semana da partida, sem falhar nenhum dia. Quarta, quinta, sexta e sábado com notas curtas e convidativas.

"De acordo com a tabella organizada pela Liga Mineira, terá logar domingo próximo, no campo do Barro Preto, o encontro ente os clubs Athletico e Palestra em disputa do campeonato da cidade. Este jogo é o penúltimo, sendo o último disputado entre os clubs Athletico e America, ambos possuidores de quadros magnificos. O encontro do próximo domingo decidirá da sorte do alvi-negro, pois, vencedor o Athletico, este não terá mais dúvida, ficando garantido na leaderança da tabella. Caso sahia vencedor o Palestra, o America fica em boa collocação para o jogo final com o seu antigo rival. Pelo exposto vê-se que os ultimos jogos de campeonato são de máxima importancia. Os tres quadros (Atlético, Palestra e América) que vão disputar o resto do campeonato estão em perfeita forma, não se podendo fazer prognostico sobre quem recahirão os louros da victoria" - transcrição na íntegra, com a ortografia original da época, da nota publicada pelo "Correio Mineiro" na quarta-feira, dia 23 de novembro de 1927. Continuou no dia seguinte.

Nota do "Correio Mineiro" publicada na véspera do jogo — Foto: Reprodução/Correio Mineiro

"Continua despertando grande enthusiasmo nos circulos desportistas da Capital, o encontro de domingo, entre os Clubs Athletico e Palestra, no campo deste, em prosseguimento do campeonato da serie A, da Liga Mineira. (...) Ambos os clubs estão se empenhando em treinos rigorosos, sendo de se esperar uma boa partida domingo" - disse a publicação de quinta do "Correio Mineiro".

"Os concorrentes que são possuidores de esquadras possantes e exercitadas, vão apresentar em campo os seus teams com elementos novos, sendo de se esperar um bom jogo, vista tratar-se de dois rivaes, fortes e leaes. O Palestra, que conta com elementos como Odilon e Osti, para só falar nos novos, está em condições de enfrentar a forte esquadra athleticana, que é um dos melhores conjuntos desta capital" - disse a nota de sexta-feira do "Correio Mineiro".

"E finalmente amanhã, que os apreciadores do futeból vão apreciar uma boa partida entre os quadros dos clubs Athletico e Palestra, no campo deste. (...) A prova dos primeiros quadros (*) será às 15 horas em ponto. As senhoras e senhoritas não pagarão entradas" - publicou o "Correio Mineiro" no sábado, véspera do jogo.

(*) Primeiros quadros eram os times principais. Antes, às 13h, houve um jogo preliminar dos chamados segundos quadros - equivalentes aos times reservas, já que não havia substituição. O Atlético-MG também venceu: por 3 a 2.

Além do "Correio Mineiro", quem também repercutiu a partida antes de a bola rolar foi o "Diário de Minas". O jornal publicou uma nota curta na quarta-feira, dia 23.

Nota esportiva do "Diário de Minas" na semana da partida — Foto: Reprodução/Diário de Minas

"A nossa capital assistirá, domingo próximo, a uma bella partida de futebol, a ser travada entre as galhardas equipes do Club Athletico Mineiro e Sociedade Sportiva Palestra Italia. São bem conhecidos do publico bellorizontino as duas valentes esquadras locaes, para que externemos sobre as mesmas o nosso juizo critico. Diremos apenas que será um jogo empolgante, e pensamos que está dito tudo" - resumiu a curiosa publicação.

A repercussão

Domingo a bola rolou, os gols saíram aos montes, os amantes de futebol em Belo Horizonte compareceram ao campo do América-MG (e não ao campo do Palestra, como diziam as publicações anteriores à partida). Tudo transcorreu na mais perfeita ordem, e a vida seguiu. Segunda-feira, naquela época, não era dia de circulação de jornal. Os periódicos com os informes do clássico foram parar nas mãos dos leitores apenas na terça. O GloboEsporte.com encontrou e separou três publicações do dia 29 de novembro de 1927 para exemplificar a repercussão da goleada.

Começando pelo "Minas Geraes", a publicação foi extensa. Duas colunas praticamente inteiras em letras miúdas contavam os detalhes da partida. O título, curiosamente, não destacou a goleada, e sim o bicampeonato alvinegro: "O Athletico Mineiro levanta, pela segunda vez, o campeonato da cidade". Abaixo alguns trechos da publicação do "Minas Geraes".

"O nosso mundo desportivo teve, anteontem, uma de suas melhores tardes, com o 'match' entre o Club Athletico Mineiro e a S. S. Palestra Italia, para a disputa da semi-final do campeonato da cidade. Jogo de grande responsabilidade para ambos os contendores, o encontro de domingo foi, como se esperava, muito renhido, apresentando lances de grande emoção. As archibancadas e logares adjacentes do 'stadium' do America F. C., onde se verificou a lueta, achavam-se repletos de 'torcedoras', salientando-se o elemento feminino, cuja 'torcida', commandada pelas senhoritas Nenem Alluoto e Horizontina Federiel, respectivamente, rainha e grã-duqueza dos sports de Bello Horizonte, foi das mais calorosas e enthusiasticas. Pela segunda vez, coube ao Club Athletico Mineiro, com o resultado da movimentada pugna de domingo, o titulo de campeão de Bello Horizonte"

Pedaço do jornal "Minas Geraes" - reportagem pós-jogo — Foto: Reprodução/Minas Geraes

A partir daí o jornal começa a descrever o jogo com uma espécie de "lance a lance", na ordem cronológica dos fatos. Por fim, conclui: "Com mais alguns ataques do Athletico, termina o jogo, às 16h50, com o seguinte resultado: Athletico (9), Palestra (2)".

O "Correio Mineiro" - o mesmo que fez reportagens nos quatro dias que antecederam o jogo - publicou uma matéria completa detalhando a conquista do título pelo Atlético-MG. Começou com uma descrição geral do ambiente e do confronto de domingo.

"Em disputa do campeonato da cidade, encontraram-se, domingo, as aguerridas esquadras dos clubes Athletico e Palestra. Tratando-se do penultimo jogo do campeonato do corrente anno, de que era um dos concorrentes o ponteiro da tabella (Atlético-MG), a atenção geral foi despertada para o encontro que se dizia sensacional. E o campo do America, local do embate, apanhou colossal assistencia (torcida), que applaudiu, com delirante enthusiasmo, os jogadores das suas côres predilectas. As gentis e graciosas torcedoras não faltaram à disputa do importante prelio, comparecendo em grande numero ao campo, dando a este animação extraordinaria e agradavel aspecto. A torcida masculina, como sempre, esteve firme no campo do alvi-verde, torcendo pelo clube de sua predilecção. E, não obstante os boatos que correram pela cidade, não se registrou nenhum 'sururu' (briga)" - introduziu o "Correio Mineiro".

Depois disso, o jornal faz uma breve menção ao jogo preliminar, dos times reservas, e emenda com as escalações dos times principais e do árbitro, o Sr. José Avelino. Na sequência, o "Correio Mineiro" faz como o "Minas Geraes" e publica uma espécie de "lance a lance" do jogo, que termina desta forma: "E sem mais nada digno de interesse, o juiz apitou, dando por fim o jogo, às 16h50, com o seguinte resultado: Athletico (9), Palestra (2)".

O "Correio Mineiro" dá sequência à completa cobertura com uma avaliação positiva do árbitro: "O Sr. José Avelino apitou bem a partida, demonstrando, às vezes, desconhecer as novas regras de futeból. De vez em quando, batia, a qualquer pretexto, a bola no centro do campo. Manda a justiça, porém, dizer que o Sr. José Avelino foi um juiz energico e, sobretudo, honesto".

Na sequência há uma avaliação sobre os dois times, com destaques individuais de cada lado, seguida de um texto sobre a comemoração do Atlético-MG e de sua torcida.

Pedaço do jornal "Correio Mineiro" - reportagem pós-jogo — Foto: Reprodução/Correio Mineiro

"Terminando o jogo, a torcida do Athletico, entregou-se às mais expansivas manifestações (...) pela victoria do seu clube. Foram erguidos vivas ao Athletico, ao Dr. Leandro de Moura Costa, presidente do clube vencedor, e ao Correio Mineiro. Às 19 horas, no restaurante Guarany, foi offerecido um jantar aos vencedores do jogo de domingo, tomando parte no ágape aos 22 jogadores triumphadores, e Dr. Moura Costa, e varios athleticanos veteranos. O jantar decorreu em um ambiente de cordialidade, sendo trocados varios brindes" - concluiu a matéria extensa do "Correio Mineiro" sobre o campeão mineiro de 1927.

Por fim, há o registro da extensa matéria do "Diário da Manhã", também publicada no dia 29, terça-feira. O periódico usou o seguinte título: "O Athletico, ante-hontem, obteve linda e facil victoria sobre o Palestra". O subtítulo: "Depois de haverem resistido no primeiro tempo, os palestrinos deixaram-se abater fragarosamente".

"Seria injusto da nossa parte, se não realçassemos a linda victoria do Athletico Mineiro, obtida domingo ultimo, sobre a valorosa esquadra do Palestra Italia. Com a nossa independencia do costume e reconhecida imparcialidade, não podemos deixar de fazer elogiosas referencias à magnifica actuação dos vencedores de ante-hontem, que, souberam durante toda a pugna, se empregar com tenacidade bastante, fazendo-se merecedores da victoria alcançada. (...) A tarde sportiva de ante-hontem, no campo do America, não foi má. Lá estiveram as torcidas dos dois clubs que se encontraram, não faltando o enthusiasmo que sempre provocam as grandes pelejas de football" - disse a publicação do "Diário da Manhã".

Pedaço do jornal "Diário da Manhã" - reportagem pós-jogo — Foto: Reprodução/Diário da Manhã

Antes de entrar no "lance a lance", comum nos três jornais que reportaram a partida na terça-feira seguinte, o "Diário da Manhã" fez um resumo das razões que levaram o Atlético-MG à vitória com larga folga.

"Mais solido e articulado, não foi dificil ao Athletico abater o Palestra Italia, cujo team, além de aparecer integrado com dois elementos secundarios (reservas), desorientou-se por completo, empregando um jogo violento e prejudicial, que lhe valeu a derrota. O team preto e branco deve especialmente a victoria, à magnifica atuação de sua linha atacante, devendo-se accrescentar que tambem alguns jogadores do Palestra collaboraram nesse triumpho, pois tiveram uma marcação defeituosa e auxiliaram mal o ataque, à excepção do centro médio Osti, que, pelo menos, nesse particular, portou-se com alguma habilidade" - resume o "Diário da Manhã".

A RIVALIDADE DA ÉPOCA

O Palestra Itália foi fundado em 1921. O Atlético-MG já existia desde 1908, e o América-MG desde 1912. Galo e Coelho eram os grandes rivais de Belo Horizonte. O duelo entre os dois era chamado de "clássico das multidões". A história começou a mudar justamente com o início da trajetória do Palestra, que rapidamente alcançou relevância e sucesso no cenário estadual, começando, ainda na década de 1920, a aparecer como o principal rival do Atlético-MG - e a tirar um pouco do protagonismo e dos holofotes do América-MG.

Há também um pesquisador que estudou justamente a rivalidade entre Atlético-MG e Palestra Itália (entre 1921 e 1942, quando o Palestra virou Cruzeiro). É Rogério Othon, mestre em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Rogério escreveu a pesquisa "A Lucta dos Titans", com a história da rivalidade entre os dois clubes. O GloboEsporte.com conversou com ele para entender qual era o grau de "concorrência" entre Atlético-MG e Palestra Itália em 1927 (o ano do 9 a 2). Ele explica que o momento marca o início do enfraquecimento do América-MG e a consolidação do Palestra - depois Cruzeiro - como grande força do estado ao lado do Atlético-MG.

Rivalidade entre Galo e Cruzeiro teve início na década de 1920 — Foto: Bruno Cantini / Fickr do Atlético-MG

- É uma rivalidade que nasceu na década de 1920. Sei que há muita discussão entre as duas torcidas sobre esse jogo, mas é verdade: ele aconteceu. Não só aconteceu, como foi um jogo muito importante. Marcou o primeiro bicampeonato do Atlético-MG, e ele seria muito importante, não só por ser o primeiro, mas também por marcar o fim da hegemonia americana depois do decacampeonato (1916-1925). No ano seguinte (ao 9 a 2), 1928, o Palestra Itália chegou com uma pegada mais profissional. Eles tinham sido vice-campeões por seis vezes, de 1922, um ano após a fundação, a 1927. Em 1926 e 1927, o Atlético-MG foi campeão. Em 1928, 1929 e 1930, o Palestra Itália foi, pela primeira vez, campeão mineiro. Não só campeão, mas tricampeão. Ele foi buscar jogadores que atuavam no Palestra Itália de São Paulo, hoje o Palmeiras, trouxe um técnico de fora e conseguiu transformar o Palestra Itália numa equipe imbatível por três anos.

O fortalecimento do Palestra, portanto, era contínuo. Os resultados em campo provavam isso. O América-MG ia perdendo força em Minas Gerais, e a rivalidade entre alvinegros e palestrinos crescia.

- O 9 a 2 é muito importante por isso. Não só o placar elástico, demonstrando a superioridade do Atlético-MG naquele ano, como também a rivalidade que se instauraria entre as duas equipes, marcando o início da decadência do América-MG, que não teria mais os dias de glória tão amplos. Isso foi amplamente divulgado na imprensa da época. Marca uma rivalidade que, em pouco tempo, se tornará centenária, entre o Clube Atlético Mineiro e o Palestra Itália, depois Cruzeiro. Posso afirmar que a rivalidade entre Atlético-MG e Palestra Itália é algo que nasce e se consolida na década de 1920 em função dos seus jogos, da ida dos torcedores aos jogos, em grande quantidade, até da própria violência que existia nas arquibancadas dos estádios da época e, principalmente, dos resultados obtidos tanto por Atlético-MG, quanto por Palestra. O América-MG era tido como a grande equipe no início dos campeonatos, mas foi arrefecendo o seu poderio futebolístico com o passar do tempo - concluiu Rogério.

O PALCO

Hoje em dia, o torcedor da capital mineira é acostumado a ver os jogos no Mineirão e no Independência, estádios com grande capacidade de público e boa estrutura. Em 1927, Belo Horizonte estava engatinhando na infraestrutura do futebol. Até 1923, para se ter ideia, o único estádio gramado da capital mineira era o do Prado Mineiro, que havia sido construído para corridas de cavalo. A década do 9 a 2 coincide com o momento em que os clubes começam a planejar e construir seus próprios estádios. O primeiro foi o América-MG.

Campo onde foi disputado o clássico do 9 a 2 (foto de 1923) — Foto: Reprodução/Enciclopédia do América-MG

Para entender melhor o cenário dos "palcos da bola" de Belo Horizonte, o GloboEsporte.com conversou com o professor Georgino Neto, doutor em Estudos do Lazer pela UFMG e membro do Grupo de Estudos Sobre Futebol e Torcidas (Gefut). Uma das suas pesquisas na área é voltada justamente para os antigos estádios de Belo Horizonte. Com base nela, ele explica.

- É legal a gente fazer uma diferenciação entre campo e estádio. O Atlético tinha um campo onde é o Minascentro hoje, em frente ao Mercado Central. Mas não era um estádio. Era um terreno onde o Atlético treinava, mas não era um campo que a Liga usava para o campeonato da cidade, que depois virou Campeonato Mineiro. Até 1923, o principal estádio usado pela Liga, que era gramado, com arquibancada e geral, era o Prado Mineiro, que foi construído para corridas de cavalo. Mas o pessoal do futebol se apropriou dele quando o Prado faliu. Em 1923, o América pegou o terreno que tinha onde é hoje o Mercado Central, onde tinha um campo, e constriu o estádio, inaugurado em 1923. Seria, naquele momento, o melhor estádio da cidade. Tinha uma capacidade muito maior de público do que o Prado. Maior para a época, claro: eram cinco mil pessoas. Mas naquele mesmo ano de 1923 o Palestra inaugurou o começo do seu estádio, que no momento era chamado de Estadinho do Palestra. Era bem modesto em 1923, depois ele foi reformado e ficou bem maior. Também era na Paraopeba. Esse Estadinho do Palestra era onde, hoje, é o clube social do Cruzeiro, na (avenida) Augusto de Lima. Você tinha esses dois estádios. O Atlético só passou a ter um estádio mesmo em 1929, onde hoje é o Diamond Mall. Esse era o desenho dos estádios na capital na década de 1920.

O clássico do dia 27 de novembro, portanto, como indicam as reportagens dos dias que antecederam o jogo, estava previsto para o "Estadinho do Palestra", mas teve o local alterado devido ao grande apelo e proporção que o evento ganhou. Optaram por jogar no campo do América-MG, o melhor da cidade à época, com estrutura para receber mais torcedores.

MUDANÇA DRÁSTICA

De 27 de novembro de 1927 até 4 dezembro de 2011 (data em que o Cruzeiro goleou o Atlético-MG por 6 a 1, no Brasileirão de 2011) se passaram exatamente 84 anos e sete dias. Nesse período, quase nada se falou sobre o 9 a 2. Por que? O GloboEsporte.com conversou com outro especialista no assunto. Marcelino Rodrigues é professor da Faculdade de Letras da UFMG e tem um amplo estudo sobre as narrativas históricas do futebol mineiro. Ou seja, sobre tudo o que foi contado sobre o futebol no estado desde os primórdios. Ele explica que houve, em relação ao jogo de 1927, uma ressignificação e uma mudança drástica na relevância do jogo a partir de 2011.

Em 2011, o Cruzeiro venceu o Atlético-MG por 6 a 1; atleticanos "resgataram" o 9 a 2 como resposta — Foto: Douglas Magno/Agência Estado

- A história começou a ser falada depois do 6 a 1. Isso porque o passado é sempre reinventado na perspectiva do presente, a partir dos interesses do presente. Os acontecimentos são ressignificados. É o que aconteceu com o 9 a 2. Depois do 6 a 1, o 9 a 2 ganhou um outro significado, uma outra relevância. Começou a ser um acontecimento relevante do passado, que deveria ser lembrado, rememorado, por ter sido a maior goleada. Não há dúvida, aconteceu. Mas o lance sobre as narrativas do passado é isso: o acontecimento em si não é importante por si só. O acontecimento só é importante quando está inserido em uma narrativa, em uma rede de significados. É o que dá sentido a ele, importância, valor. Essa rede, em relação ao 9 a 2, não existia. Só existiu depois do 6 a 1. Ou seja: o passado foi reinventado. O jogo aconteceu, mas, como dizia Nelson Rodrigues: "O fato em si vale pouco ou nada". O jogo em si não vale por si só. Ele vale dentro da história. E a história é o que se conta. A gente sempre reinventa a história a partir dos nossos interesses atuais, da nossa visão de mundo. Toda narrativa está carregada de interesse, de intenção. Do ponto de vista da linguagem, não existe completa imparcialidade. O fato é pouco. O que acontece é pouco. O que a gente entende do passado é muito mais do que o que definitivamente aconteceu. A gente sabe que aquilo está dentro de uma rede. O fato só existe dentro da interpretação.

Na prática, portanto, o 9 a 2 foi "resgatado" da memória em função da rivalidade, em função da necessidade do torcedor atleticano contra-argumentar com o rival na discussão sobre goleadas históricas. O jogo sempre esteve na história dos clubes, mas antes de 2011 não tinha um grande apelo. Passou a ter, a partir do 6 a 1 de 2011 e foi ressignificado, ampliado no contexto da rivalidade.

O TRIO MALDITO E MÁRIO DE CASTRO

Dos nove gols marcados pelo Atlético-MG no clássico do dia 27 de novembro de 1927, oito foram de autoria de um dos integrantes do "Trio Maldito". Eram os três atacantes do Galo: por Said, Jairo e Mário de Castro, todos já falecidos. O último a partir para o "andar de cima'' foi Mário de Castro, em 30 de abril de 1998, aos 92 anos. O GloboEsporte.com visitou a casa da família do histórico artilheiro que, além de fazer dois gols no 9 a 2, marcou outros 193 com a camisa alvinegra. Ele ostenta a melhor média de gols de um atacante na história do clube: 1,95 por partida (195 gols em 100 jogos). Segundo o Atlético-MG, inclusive, é a maior média de gols conhecida entre atletas de futebol do Brasil em todos os tempos.

A casa, que fica no bairro Nova Granada, é recheada de elementos históricos da vida de Mário de Castro. Era doutor! Assim como Jairo, seu parceiro de ataque, cursou medicina em Belo Horizonte. Natural de Formiga, viajou para Belo Horizonte com o intuito de estudar. O futebol entrou no caminho, mas por pouco a história de Mário não teria, como plano de fundo, as cores verde, preto e branco.

Quando formou em medicina, Mário de Castro largou o futebol — Foto: Reprodução/Acervo familiar

- Ele contava que quando veio de Formiga para Belo Horizonte, chuteira era uma coisa muito difícil, não tinha chuteira para vender. Ele ganhou uma chuteira de um amigo, mas veio sem cadarço. Com muita habilidade ele arrumou alguns arames e foi fechando, amarrando a chuteira. E foi jogar no América com essa chuteira. Chegou lá, e o técnico do América começou a pegar no pé dele. “Você não tem nem chuteira, o que veio fazer aqui?”. Ele foi embora, foi jogar no Atlético. Quando ganhou o campeonato de 1927, começou a fazer gol atrás de gol, E o América foi atrás dele. Aí ele negou. “Não. O primeiro lugar que bati foi lá, mas vocês não me quiseram, porque nem chuteira eu tinha”. Ficou uma mágoa - conta Andréa de Castro, dentista e neta do ex-artilheiro.

Família de Mário de Castro: filha (à direita), com as netas do artilheiro — Foto: Guilherme Frossard

O episódio mostra o quão orgulhoso era o doutor Mário de Castro. E não foi só em relação ao América-MG que o orgulho falou mais alto. Mário teve a oportunidade de ser o primeiro jogador de um clube mineiro a disputar uma Copa do Mundo (de 1930) pela Seleção Brasileira. Recusou. Também teve a chance de se profissionalizar e atuar no Fluminense. Não quis. O foco era a medicina.

- Ele foi o primeiro jogador de Minas Gerais a ser convocado para a Seleção. Ia disputar a Copa de 1930, mas não quis ir, porque ia ficar como reserva do Carvalho Leite, que era do Botafogo. Depois fizeram dois jogos para ver qual dos dois era melhor. Nos dois jogos, meu avô marcou cinco gols, o Carvalho Leite marcou três. Mostrou que meu avô, Mário de Castro, era melhor. Também seria um dos primeiros jogadores a ser comprado. O Fluminense esteve em Belo Horizonte querendo comprar o passe dele. Fizeram uma proposta, mas ele estava estudando e focado na medicina. O objetivo era a medicina, era ser médico. Ele fez uma contraproposta absurda. Queria o dobro do que foi proposto e queria ganhar 500 contos de réis por gol. Como fazia muito gol, o Fluminense não aceitou a proposta.

Mário de Castro faleceu em 1998, aos 92 anos — Foto: Reprodução/Acervo familiar

Com base nas histórias, Andréa descreve o falecido avô. Apaixonado por futebol? Muito! Afinal, fazia de graça.

- Eles jogavam de forma amadora. Era um ajudando o outro. O "Trio Maldito" fez muitos jogos, teve muito sucesso. Eles jogavam por amor à camisa. Era puramente por amor, porque não recebiam nada.

Legenda da foto guardada pela família: "Mário de Castro: um supercraque do final dos anos 20, um artilheiro que marcou 195 gols em apenas cinco anos de Atlético e nunca cobrou nada por isso" — Foto: Reprodução/Acervo familiar

As características vão aparecendo conforme o papo - regado a um bom café - também avança. Além de artilheiro, apaixonado e orgulhoso, Mário de Castro, o Orion, também era travesso. Aliás, que papo é esse de Orion? Andréa explica.

Placa do ex-consultório do então médico - e jogador — Foto: Guilherme Frossard

- O apelido dele “Orion” é porque a mãe dele (que ficou em Formiga) não aceitava que jogasse futebol. Um amigo sugeriu: “Vamos colocar seu nome de trás para frente”. Era para ser “Oriam”, mas a torcida não entendia e começou a gritar “Orion”. Era para ser Oriam, que seria Mário de trás para frente. Ele era "danado". Gostava de uma farra. Gostava de uma pinguinha, de uma cerveja. Muitas vezes jogou com uma ressaca grande. E fazia muitos gols assim mesmo! Não tinha concentração, treino, nada. Ia na cara e na coragem. E teve uma média de quase dois gols por jogo. Imagina o que faria hoje com toda a infraestrutura e apoio.

Mas... e o 9 a 2?

A história de Mário de Castro é um território espetacular para o lúdico, para a diversão do apaixonado pelo futebol. Os "causos" são infinitos, mas, voltando ao assunto original, ao assunto que aumenta ainda mais a relevância de Mário de Castro: e o 9 a 2? O que ele falava do jogo? Segundo a família, não falava muito, só quando era "cutucado".

- O meu pai era cruzeirense, sempre brincava com ele. Quando o Cruzeiro ganhava do Atlético, meu avô falava: já ganhei de vocês de muito mais (risos). Sempre frisava isso. Ele marcou dois gols, mas ajudou nos outros gols com passes, jogadas. Ele contribuiu muito - conta Andréa, orgulhosa.

Filha de Mário de Castro, Vanda exibe camisa em homenagem ao pai em frente à imagem dele no painel que homanegeia ídolos do clube na sede administrativa — Foto: Arquivo pessoal

O Atlético-MG tem - e sempre teve - ciência da relevância de Mário de Castro na história da entidade. Prova disso é a imagem dele como a primeira no muro de ídolos na sede do clube no bairro de Lourdes, onde a Sra. Vanda de Castro, filha do ex-goleador, exibe com orgulho uma camisa comemorativa usada por Robinho, em 2017, com o nome do pai (veja na foto acima).

Os ídolos se vão, mas o legado fica. De um lado, vencedor naquela ocasião, o Atlético-MG de Mário de Castro, Jairo, Said e companhia. Do outro, Ninão, Nininho e toda uma geração forte que serviu de base para o crescimento do Palestra, hoje Cruzeiro. As recordações, sempre vivas, ajudam a manter forte o futebol mineiro. Afinal, o clássico já é quase centenário. E vem história por aí...

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