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Saúde Ciência

Cientistas da rede pública do Rio curam casos neurológicos graves de dengue e chicungunha

Drama de cariocas que perderam movimento de pernas e braços e até a memoria leva a descoberta que pode salvar vidas
A professora Selma Zacman, com seu neto Gael; ela teve dengue, zika e chicungunha e sofreu até conseguir um diagnóstico correto Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo
A professora Selma Zacman, com seu neto Gael; ela teve dengue, zika e chicungunha e sofreu até conseguir um diagnóstico correto Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo

RIO - Faz três verões que a picada do Aedes aegypti roubou a memória de uma professora de História e os movimentos das pernas de uma jovem técnica de floricultura. Neste janeiro, recuperadas graças a uma investigação científica inédita, elas celebram o recomeço de suas vidas. E se tornaram casos fundamentais ao revelar formas de diagnosticar distúrbios neurológicos causados por dengue e chicungunha.

Selma Zalcman, de 65 anos, ensina História para alunos dos ciclos Fundamental e Médio há 33 anos. A pior lição de sua vida aprendeu com o chicungunha. Moradora da Tijuca, ela personifica o sofrimento do carioca com as mazelas transmitidas pelo mosquito. Teve dengue 1 e dengue hemorrágica nos anos 80. Depois veio a zika, em 2015. Por fim, em janeiro de 2016, chicungunha. Sofreu dores intensas nas articulações, mãos travadas, a conhecida “garra” da doença.

Quando começou a perder controle dos movimentos e a manifestar distúrbios cognitivos, nenhum médico acertava o que tinha. Não consideravam que fosse chicungunha o culpado e a doença avançava.

— O sofrimento físico é terrível. Mas o mental, inviável. O chicungunha nos destrói dos pés à cabeça. Não conseguia lembrar das coisas, elaborar o raciocínio, escrevia errado. Entrei em desespero. Não dormia mais. Foi aí que tive a felicidade de ser encaminhada à doutora Marzia — conta.

A especialista em neurologia tropical Marzia Puccioni-Sohler, professora da UFRJ e da UniRio, estuda a dengue desde os primeiros casos nos anos 80, quando se achava que as complicações neurológicas eram muito raras. Hoje, diz ela, se sabe que tanto dengue quanto zika e chicungunha podem atacar o sistema nervoso ou provocar a reação do próprio organismo da pessoa infectada contra os neurônios.

Outras pesquisas feitas no Rio também já mostraram que esses vírus devem ser levados em conta no diagnóstico de complicações no sistema nervoso, como encefalites, mielites e meningites. Mas, agora, no estudo dos casos das duas mulheres, o grupo de Marzia descobriu marcadores para identificá-los.

Para a dengue, a estimativa é que até 21% dos casos tenham problemas neurológicos. Para as demais, não se sabe. A incidência de distúrbios neurológicos no Brasil praticamente não é estudada, observa a cientista. E identificar qualquer um dos vírus é extremamente difícil, pois eles se confundem e têm a capacidade de se esconder em diferentes partes do organismo.

Portadora de anticorpos para os três vírus, Selma representava um quebra-cabeça para os pesquisadores do grupo de Marzia, reunidos graças às redes de pesquisa de zika, dengue e chicungunha da Faperj e do CNPq.

— Sem esses recursos, não teria sido possível diagnosticar esses casos e identificar formas mais precisas de tratar pacientes com distúrbios neurológicos causados por arbovírus — diz Marzia Puccioni. — A ciência salva vidas.

E salvou a de Selma. Tratada no Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, da UNIRIO, ela hoje é gratidão.

— Os médicos foram fabulosos. Triste ver os hospitais universitários em ruínas, sem estrutura, pois as equipes são incríveis.

No caso de Selma, o vírus estava no líquor cefalorraquidiano (líquido do sistema nervoso). Foram levas de análises moleculares e imunológicas até se chegar a um diagnóstico. Identificar o vírus é fundamental para o tratamento, frisa Marzia. E dependendo do estágio da infecção, o método varia. Esses vírus podem causar distúrbios neurológicos meses depois dos primeiros sintomas.

— Em alguns casos, os vírus podem ser achados no soro, em outros, no líquor. Descobrimos alguns marcadores que facilitam esse trabalho e isso é fundamental para prevenir sequelas trazidas pelo tempo sem tratamento adequado. Foi o caso da Selma que permitiu identificar marcadores para o chicungunha — explica a cientista.

Selma ainda trata sequelas e precisará tomar remédios por mais alguns anos. Faz caligrafia em casa para recuperar a “letra de professora” da qual se orgulhava. Das quatro escolas em que trabalhava, está apenas em uma. Mas Marzia se emociona ao saber que, há um mês, a professora ousou fazer um batismo de mergulho.

— Tive muito apoio da família e da escola onde trabalho e a sorte de ser atendida por esses médicos. Mesmo assim, minha vida se divide entre antes e depois da chicungunha. Uma simples picada de mosquito me roubou anos. Penso no sofrimento de tantos outros doentes, desamparados — diz Selma.

Diagnóstico errado

A dengue chegou sem sinais para Emanuela Alves da Silva, que adoeceu em fevereiro de 2016, aos 17 anos. Recém-casada e formada em floricultura, ela tinha se mudado de Croatá da Serra, no Ceará para a Barreira do Vasco, no Rio, há poucos meses. Com o marido, estava cheia de planos de uma nova vida.

Emanuela Alves teve paralisia nas duas pernas após ser contaminada pelo vírus da dengue; diagnóstico errado quase a matou Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo
Emanuela Alves teve paralisia nas duas pernas após ser contaminada pelo vírus da dengue; diagnóstico errado quase a matou Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo

Veio a dengue e mudou tudo. Em pleno carnaval, começou a sentir dormência no pé direito. Depois parou de urinar. Em dias, as duas pernas estavam paralisadas. Não apresentou nenhum dos sintomas da dengue, como dores e febre alta.

Ela lembra que ninguém achava que era dengue. O diagnóstico foi esclerose múltipla. Ao ser transferida para o Gaffrée e Guinle, teve o primeiro contato com Marzia, que desconfiou do diagnóstico e começou a buscar numerosos vírus, bactérias e vermes. O tratamento convencional de sintomas melhorou o estado de Emanuela em maio. Mas, em julho, a doença voltou com força.

— Vomitei dias sem parar. Tive convulsões e fiquei paralisada de novo e, dessa vez, também nos braços. Pensei que ia morrer — lembra a moça.

A investigação liderada por Marzia reuniu pesquisadores de UniRio, UFRJ, Instituto D’Or de Pesquisa (IDOR) e do Hospital Municipal Jesus. Chegaram a identificação do vírus da dengue 1 no soro e a conclusão de que ele causou a primeira crise e, depois, uma reação autoimune que levou à segunda.

Tratada adequadamente, Emanuela recuperou os movimentos. Mas os corticoides a fizeram engordar 27 quilos, uma carga enorme para seu 1,5 metro de altura.

— Ela teve uma neuromielite extremamente grave e ia mesmo morrer, se seu caso não tivesse sido investigado a fundo. Nosso objetivo é desenvolver métodos para facilitar o diagnóstico, o tratamento. Há outras Emanuelas que não têm a mesma sorte — diz Marzia.

Aos 20 anos, Emanuela ainda se tratará por mais alguns anos, mas se recuperou e trabalha como vendedora em São Cristóvão. Ainda sonha com as flores e com um mundo livre da dengue.