• José Hamilton Ribeiro*
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indio-cultura- (Foto: Haroldo Castro)

Um dos homens mais educados que conheci — esse homem chamava-se João Príncipe. Alto, quase sempre de chapéu, os pés limpos em cima de chinelos de dedo, João Príncipe era chamado de “gentleman” até por pessoas que não sabiam o que isso quer dizer. Educado, fino, de certa maneira até sofisticado — tudo isso sem ser sabujo ou lambão — João Príncipe seria homem de destaque mesmo em condomínios urbanos. No entanto, era um índio, vivia no mato, sua casa de pau trançado e coberta de  baguaçu, num ponto afastado da aldeia mestra de sua triba, a tribo dos kadiuéu. Os kadiuéu, da linha direta dos Guaicurus, são os índios cavaleiros do Pantanal, os únicos índios do Brasilzão amazônico a entender — e usar — o cavalo.

jose.hamilton.ribeiro (Foto: Kenji Honda)

José Hamilton Ribeiro (Foto: Kenji Honda)

Índio brasileiro comum, quando via cavalo, ia atrás para matar, acreditando tratar-se de algum tipo diferente de anta. Os kadiuéu, ao contrário, cedo perceberam que o cavalo podia ser valiosa arma de guerra e de conquista. Tornaram-se cavaleiros — e criadores. Assim, chegaram a ter, no começo do século 19, 8 mil cavalos mansos de sela, muitos amestrados.

Dentre as muitas lembranças que tenho dos kadiuéu. das vezes em que estive na aldeia para lavantar informações para o livro que escrevi sobre eles, uma das maiores foi ter conhecido João Príncipe. Beneficiado por um poder de memória que talvez só fosse inferior ao aço de sua inteligência, João Príncipe, por vários turnos capitão-geral dos kadiuéu, era a memória viva do seu povo e guardião da história, da arte e da cultura kadiuéu. Boa parte dos fatos e passagens do meu livro foi referenciada nas conversas com João Príncipe e com a síntese que ele produzia do jeito kadiuéu de ser e de pensar.

E a trama central da história — um “plano de vingança” contra a “peste branca” (outro nome para a nossa civilização…) — se baseia também na relação dos kadiuéu com o cavalo e com a busca da alegria, da felicidade e da “formosura de viver”. Assim que o livro ficou pronto, planejei uma viagem ao território dos kadiuéu, nos contrafortes da Serra da Bodoquena, a área mais nobre do Mato Grosso do Sul.

Queria mostrá-lo a João Príncipe, queria ver sua reação ao folhear as páginas e vibrar — tenho certeza que ele vibraria! — com os desenhos e ilustrações sobre motivos de pintura e de “caligrafia” dos Kadiuéu.

Foi então que soube de sua morte. Picado de cobra no mato, João Príncipe negou-se a receber medicina dos brancos. Achou que resolveria tudo com remédio de índio. Do enredo do livro fazer parte personagens de pura criação — como Kadinho, o jovem kadiuéu criado com os brancos e que volta à aldeia com a ideia da vingança — ao lado de pessoas que viveram de verdade. João Príncipe é um dos poucos que está no livro como era, de carne, osso, miolo — e chapéu. Apesar de serem poucas as linhas a ele dedicadas, sua presença cresce nas páginas e no livro inteiro. Tenho impressão que a qualquer hora ele cresce, sai do livro “e vem conversar comigo…”

*Publicado originalmente em outubro de 1995, na edição 120 da revista Globo Rural.

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