• A. J. Oliveira
Atualizado em
Moradores locais pensaram se tratar de um asteroide ou disco voador (Foto: reprodução)

Moradores locais pensaram se tratar de um asteroide ou disco voador (Foto: reprodução)

Já quase não havia mais luz do Sol sobre o estado do Acre no final da tarde do último sábado (27) quando, às 18:32 hora local (21:32 no horário de Brasília), uma imensa bola de fogo cruzou os céus da região. O brilhante meteoro também foi avistado a partir de localidades em Rondônia enquanto se deslocava na direção do Peru — moradores de cidades como Rio Branco, Feijó, Tarauacá e Cruzeiro do Sul ficaram assustados.

Muitos pensaram ser um asteroide em rota de colisão com a Terra ou um avião em apuros prestes a se espatifar. Conspiracionistas logo falaram em óvni e partidários da ufologia cogitaram se tratar de um disco voador. Só faltou alguém dizer que era Bruno Borges, o menino do Acre, alçando voo para encontrar o ídolo Giordano Bruno lá no céu.

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Mas, como de costume, a realidade jogou um balde de água fria na fertilidade da imaginação humana: a bola de fogo foi apenas a reentrada de lixo espacial na atmosfera terrestre. "Já está confirmado, não se tem mais dúvida nenhuma de que foi um pedaço de foguete russo", afirma o astrônomo Marcelo De Cicco em entrevista à GALILEU.

Especialista em meteoros, ele realiza estudos sobre o tema no Observatório Nacional e com cientistas cidadãos no projeto Exoss, do qual é coordenador. Ao saber do bólido no Acre, De Cicco e equipe madrugaram de sábado para domingo em um esforço coletivo para coletar evidências e analisar registros de testemunhas oculares do fenômeno.

Do Cazaquistão ao Acre
Os pesquisadores ficaram até as quatro horas da manhã cruzando dados de sites estrangeiros confiáveis que catalogam em tempo real as informações sobre a órbita de objetos espaciais. Esses serviços oferecem previsões de horário e local do planeta em que os detritos vão reentrar na atmosfera, mas como o lixo espacial costuma orbitar em baixas altitudes, sofre muita perturbação e os dados oscilam demais — leva tempo até se tornarem mais precisos.

Demorou, mas a confirmação foi possível após a atualização dos sites. “Não só o horário estava batendo com os vídeos dos bólidos, como também a região de reentrada batia certinho”, diz De Cicco. “Aí matamos a charada, seria muita coincidência ter na mesma hora e local a reentrada de um satélite indo na mesma direção de um bólido enorme fazendo rastro no céu. É uma probabilidade quase menor que ganhar na Mega Sena.”

O objeto flamejante avistado na fronteira do Acre com o Peru era o pedaço de um foguete russo lançado no final de dezembro de 2017 do Cosmódromo de Baikonur, no Cazaquistão.  O veículo levou ao espaço o primeiro satélite angolano, AngoSat 1, cujo objetivo é prover todo o continente africano com transmissões de TV e telecomunicações.

Normalmente, controladores de missão direcionam a reentrada desses detritos ao oceano ou regiões desabitadas, mas uma eventual negligência ou erro de cálculo costuma resultar em casos como o do Acre. Moradores da região peruana de Puno, às margens do Lago Titicaca, localizaram uma enorme bola de ferro de 40 quilos e quase três metros de diâmetro — é uma parte do tanque do foguete. “Se isso cai na casa de alguém, pode causar danos à propriedade e até matar gente”, alerta De Cicco.

Um problemão astronômico
De acordo com o jurista José Monserrat Filho, especialista em direito espacial internacional, a questão do lixo em órbita é um dos maiores perigos atuais quando o tema são as atividades conduzidas no espaço. “Esse assunto nunca foi atacado com a seriedade que merece, interesses econômicos e comerciais sempre falaram mais alto”, afirma.

Ou seja: os países ricos, maiores responsáveis pelo emporcalhamento dos arredores da Terra, não estão muito preocupados em limpar a sujeira que deixaram lá em cima. Estimativa da Agência Espacial Europeia de janeiro de 2017 relata que os 5,2 mil lançamentos de foguete realizados desde o início da Era Espacial, em 1957, resultaram em quase 800 mil detritos maiores que um centímetro orbitando nosso planeta.

Além dos riscos que os pedaços de maiores proporções oferecem quando atingem a superfície, eles também são perigosos no espaço, já que podem colidir com satélites ou espaçonaves, destruindo-os. E o pior: isso provoca um efeito cascata, aumentando exponencialmente os fragmentos na órbita terrestre baixa. É o chamado Efeito Kessler.

“O problema fundamental do lixo espacial é que até hoje não se chegou a uma legislação firme sobre essa matéria”, explica Monserrat. O jurista esclarece que o único documento que regula a área é um tratado da ONU de 1972: o texto detalha os procedimentos para definir quem paga o pato em caso de acidentes envolvendo objetos espaciais. Todo o processo é feito pela via diplomática.

Se o tanque que atingiu o Peru tivesse destruído o telhado de uma casa em Puno, por exemplo, o morador deveria notificar as autoridades peruanas. Estas, por sua vez, teriam de se dirigir ao governo da Rússia, que só então responsabilizaria a fabricante do foguete e a faria pagar pelo estrago. “Na realidade, esse negócio nunca foi acionado”, explica Monserrat. Mas os foguetes não param de subir, e cada vez mais — não dá para contar com a sorte. É preciso estudar meios de limpar, ou ao menos reduzir, o lixo espacial.

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