Exclusivo para Assinantes
Cultura

Affonso Romano de Sant'Anna: os 65 anos de uma poesia única

A pedido do colunista Afonso Borges, poeta escolhe para O GLOBO alguns de seus melhores trabalhos
O poeta Affonso Romano de Sant'Anna Foto: Daniel Mordzinski / Divulgação
O poeta Affonso Romano de Sant'Anna Foto: Daniel Mordzinski / Divulgação

RIO - Poeta desde sempre, Affonso Romano de Sant’Anna completa, em 2018, 65 anos de estreia tipográfica: foi em 1953 que ele publicou seus primeiros textos —críticas de cinema e teatro —, na imprensa de Juiz de Fora, cidade onde vivia. Ele andava, então, pelos 16 anos de idade.

Mineiro de Belo Horizonte, onde nasceu em 1937, Affonso tinha se mudado, criança, para Juiz de Fora, e ali fez, em bibliotecas públicas, sua descoberta da literatura. Não tardou a encaixar em jornais da cidade suas primeiras críticas. Aos 18, de volta a Belo Horizonte, foi estudar Letras na UFMG, formando-se em 1962 —mesmo ano de sua estreia em livro, com os ensaios de “O desemprego do poeta”.

No ano seguinte, ao lado de Affonso Ávila, dos poetas concretos de São Paulo, Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, e de toda uma fornada de jovens escritores (entre os quais um curitibano de 18 anos, Paulo Leminski), participou, na capital mineira, da histórica Semana Nacional de Poesia de Vanguarda. Evento este que guarda o folclore no qual Leminski teria vindo a pé de sua cidade natal até Belo Horizonte.

Sua terceira e definitiva cidade viria a ser o Rio de Janeiro, para onde se mudou em 1970, quando casou-se com a escritora Marina Colasanti. De lá para cá, Affonso conseguiu a mágica de fazer da sua obra um presente contínuo. De fato, talvez não haja poema seu, antigo ou recente, que não remeta ao contemporâneo e, por que não dizer, ao futuro. Seus mais de 60 livros ligam as pontas de um sólido itinerário nos terrenos da poesia, da crônica, do ensaio e da crítica.

Moram neste mineiro-carioca, hoje aos 81 anos, todos os sentimentos do mundo. Sua literatura, única, faz companhia à de seus melhores pares — em especial, Carlos Drummond de Andrade, a cuja obra, aliás, dedicou um estudo fundamental, “Drummond, o gauche no tempo”.

O poema “Que país é este”, publicado em 1980, em página inteira no “Jornal do Brasil”, é um marco na história da literatura em imprensa. O impacto foi tão grande que a frase, dita pelo então governador de Minas, Francelino Pereira, transformou-se no ícone da chamada “Geração 80”, quando virou refrão da música na voz de Renato Russo, da Legião Urbana. Neste aspecto, Affonso Romano estabeleceu com o público uma relação direta entre política e poesia, na trincheira armada no espaço que pertenceu a Carlos Drummond de Andrade.

Ao dar-se conta da passagem dos 65 anos da estreia de Affonso Romano de Sant’Anna em letra de fôrma, este colunista concluiu que o melhor a fazer para assinalar a marca seria publicar sua poesia — e pediu a Marina Colasanti que pinçasse na obra do companheiro cinco poemas de sua especial preferência.

Mesmo adoentado, Affonso escolheu quatro poemas e delegou a mim a escolha de mais um para fechar a seleção. Ao lado, vão dois (os outros estão no site do jornal), a comprovar, se necessário fosse, o vigor poético de Affonso Romano de Sant’Anna nos mais diversos momentos de sua longa e fecunda trajetória.

* Afonso Borges é escritor, jornalista e blogueiro do GLOBO

Arte-Final

Não basta um grande amor

para fazer poemas.

E o amor dos artistas, não se enganem,

não é mais belo

que o amor da gente.

O grande amante é aquele que silente

se aplica a escrever com o corpo

o que seu corpo deseja e sente.

Uma coisa é a letra,

e outra o ato,

– quem toma uma por outra

confunde e mente.

O duplo

Debaixo de minha mesa

tem sempre um cão faminto

- que me alimenta a tristeza.

Debaixo de minha cama

tem sempre um fantasma vivo

- que perturba quem me ama.

Debaixo de minha pele

alguém me olha esquisito

- pensando que eu sou ele.

Debaixo de minha escrita

há sangue em lugar de tinta

- e alguém calado que grita.

Assombros

Às vezes, pequenos grandes terremotos

ocorrem do lado esquerdo do meu peito.

Fora, não se dão conta os desatentos.

Entre a aorta e a omoplata rolam

alquebrados sentimentos.

Entre as vértebras e as costelas

há vários emsagamentos

Os mais íntimos

já me viram remexendo escombros.

Em mim há algo imóvel e soterrado

em permanente assombro.

Preparando a casa

Meu amigo visita sua cova

como quem vai

à casa de campo

plantar rosas.

Há algum tempo

comprou sua casa de terra.

Plantou árvores ao redor

e de quando em quando vai lá

como se vivo

pudesse ali fazer

Oo que só o morto fará.

De vez em quando vai ver

como sua morte floresce.

Olha, pensa, ajeita uma coisa e outra,

depois volta à agitação da vida:

ama, come, faz projetos,

pois já botou sua morte no lugar que ela merece.

Textamento

Minha mãe teve dúvidas

se eu deveria nascer ou não.

Pensou em me abortar.

Nasci. E, de alguma maneira, dei certo.

Cedo aprendi com os animais domésticos

e com os legumes da horta

que a morte é estranhamente cotidiana.

Amei, sim, amei

na medida do meu descompassado desejo.

E já ia envelhecendo

quando aprendi a me comunicar com os cães.

Não posso me queixar.

Vencidas as dificuldades iniciais,

os limites do quintal, a inveja

e os jogos na boca da noite,

descobri modos de me expressar.

Algumas palavras íntimas

tornaram-se públicas

e nisto encontrei satisfação.