Cultura

Escritor maldito dos anos 60, Conde Belamorte morre aos 83

Redescoberto há dois anos pelo músico Armando Lôbo, poeta vivia modestamente em Vila Keneddy e dormia em sarcófago

Belamorte em dois momentos: na revista O Cruzeiro e em visita a cemitério, um de seus hábitos preferidos
Foto: Revista O Cruzeiro & Guito Moreto (25.09.2011 - O Globo)
Belamorte em dois momentos: na revista O Cruzeiro e em visita a cemitério, um de seus hábitos preferidos Foto: Revista O Cruzeiro & Guito Moreto (25.09.2011 - O Globo)

RIO — O escritor mineiro Joviano Martins Soares Filho, o "Conde Belamorte" morreu na tarde de sexta-feira, aos 83 anos, vítima de complicações decorrentes de uma isquemia cerebral. O enterrado será hoje (domingo), no Cemitério do Murundu, em Campo Grande, às 13h. Belamorte foi encontrado morto pela filha, de 12 anos, enquanto dormia, no sarcófago que mantia em casa, na Vila Kennedy.

Famoso nos anos 60 pela obra poética de temática fúnebre, mas também pelo estilo de vida peculiar - estava sempre vestido com uma manta negra, dormia em caixões e frequentava cemitérios - Belamorte teve a obra redescoberta há dois anos pelo compositor e músico pernambucano Armando Lôbo, que gravou uma de suas poesias no disco "Técnicas Modernas de Êxtase" (2011, Delira Música). Em Belo Horizonte, onde o poeta viveu, sua história é uma lenda urbana até hoje - a rede de bares Devassa tem, no cardápio da casa, um dos pratos batizados com o nome "Conde Belamorte", em homenagem ao escritor.

O encontro de Armando Lôbo com Belamorte foi um grande acaso: o músico comprou o livro "A dança dos espectros", de 1963, num sebo do Largo da Carioca.

No prefácio, o autor dedicava o livro à morte, "esta vetusta e invisível senhora, que amo com um amor transcendental, o qual nenhuma mulher ainda se fez digna de merecer". Impressionado pela sofisticação vocabular e estilo parnasiano dos poemas, decidiu investigar se o autor obscuro ainda estava vivo.

Estava. Armando o encontrou vivendo numa casa simples, numa rua curiosamente chamada "Travessa da Paz", em Vila Kennedy, mantida com a aposentadoria de um salário mínimo. O poeta seguia os mesmos hábitos sombrios dos anos 60: de preto dos pés à cabeça, tinha colado na parede de casa inúmeras citações exaltando a morte. Caveiras decoravam as estantes repletas de livros (alguns em alemão, língua que Belamorte falava fluentemente). Não dormia mais num caixão, mas em um sarcófago, construído no canto da sala. Vivia ali com a filha mais nova, Semíramis, então com 9 anos, que pouco estranhava os hábitos do pai (a mãe da menina morava no andar de cima). Além de Semíramis, o poeta tinha outros quatro filhos, de nomes curiosos como Júpiter ou Tucícides. Todos vivem em Belo Horizonte.

— Percebi que o grotesco do Belamorte era apenas parte de um projeto transcendente. Ele era um parnasiano com tons simbolistas, e isso em pleno século XXI — observa Armando, que chegou a negociar com o escritor, que virou seu amigo, a realização de um documentário, projeto que não foi à frente. - A morte de Joviano representa a fusão do homem com a própria metáfora. Só os verdadeiramente humildes logram esse encontro. Salve o poeta.

Joviano publicou o primeiro livro, "Rosas do meu altar", em Belo Horizonte, em 1955, encorajado pelo então governador do estado, Juscelino Kubitschek. Na época, era trompista da banda militar do estado, razão pela qual aproximou-se de Juscelino para mostrar seus poemas. Já flertava com a temática funérea, gosto tomado da infância (a casa dos pais ficava ao lado do cemitério de Nova Lima, e as tumbas serviam de playground). Como a indumentária começou a virar uma obsessão, saiu da banda militar e virou autônomo. Abriu uma barbearia - "Barbearia Belamorte".

Com o codinome "Conde Belamorte", publicou, em 1963, "A dança dos espectros", elogiado por críticos literários e suplementos especializados, que o compararam a Augusto dos Anjos. Nesta época, tornou-se um ídolo marginal ao aparecer em programas de TV de variedades ao lado do médium Chico Xavier e do diretor Zé do Caixão. Casou-se com a modelo italiana Gillida Bettoni, que adotou os mesmos hábitos do marido (inclusive o título informal, tornando-se a "Condessa Belamorte"). A vida curiosa do casal foi relatada em uma série de reportagens publicadas na "Revista Cruzeiro". Mas o casamento não durou muito tempo, e, antes de mudar-se definitivamente para o Rio de Janeiro, onde tinha uma tia, no início dos anos 80, Belamorte casou-se outras vezes. Só voltou a publicar novo livro em 1985, "Tonico Tinhoso, filho do diabo", que considerava sua obra menor (e que hoje não é encontrada por menos de R$ 100 em sebos).

Em reportagem publicada na Revista O Globo de 25 de setembro de 2011, Belamorte declarou: "Senti a necessidade de escrever sobre coisas mais profundas, que fizessem mais sentido para todos, não só para mim. Muitos poetas já celebraram a vida, a beleza, isso fez com que eu me sentisse vulgar. Os temas mais bonitos da música e pintura tem ligação com a morte, que é bela, não é o fim".

Além da obra macabra, Belamorte guardava centenas de poemas eróticos dedicados às mulheres que passaram pela sua "mausoleia", como costumava chamar o sarcófago em que dormia. Textos de nomes sugestivos, como "A desforra de Albanice" ou "Cristina Quebra-Cama".

Belamorte deixou, além dos cinco filhos, 17 pastas repletas de sonetos inéditos.