Exclusivo para Assinantes
Rio Home

Jovens são recrutados por facções e deixam de morar sob marquises e nas praças no Centro do Rio

Vinte e cinco anos depois da Chacina da Candelária, o perfil do menino de rua da região mudou
A Igreja da Candelária, perto de onde oito jovens foram mortos em 1993: poucos adolescentes dormem hoje na região Foto: Marcelo Régua
A Igreja da Candelária, perto de onde oito jovens foram mortos em 1993: poucos adolescentes dormem hoje na região Foto: Marcelo Régua

RIO — No pequeno trecho de calçada, no início da noite, um adolescente de 15 anos está enrolado num cobertor. A cada pessoa que passa, ele pede um real. Há muita gente circulando àquela hora no Centro. Ele não está sozinho. Três amigos — de 19, 20 e 25 anos — estão ali juntos, amontoados sobre pedaços de papelão. Todos aparentam estar drogados. Mais adiante, um senhor dorme, também protegido por um cobertor. Uma cena que se repete diante de cada prédio da rua. Ao fundo, a Igreja da Candelária já estava iluminada.

Vinte e cinco anos depois da Chacina da Candelária, como ficou conhecida a morte de oito jovens — o mais novo tinha 11 anos e o mais velho, 19 —, a cena de adolescentes dormindo sob marquises e nas praças do Centro é cada vez mais rara. O pivete da música de Chico Buarque e Francis Hime, que vende chiclete e capricha na flanela, ficou no passado. O menino de rua não cheira mais cola. Ele fuma crack e, na maioria das vezes, é vítima do abandono do poder público, da família e da exploração de um traficante.

LEIA MAIS:

Vigília marca 25 anos da chacina da Candelária

Acervo O GLOBO: Há 25 anos, PMs mataram 8 moradores de rua, 6 deles menores, na Candelária.

FAMÍLIAS EM VEZ DE GRUPOS

Na madrugada de 23 de julho de 1993, policiais militares que estavam em dois carros abriram fogo em direção aos jovens que dormiam nos arredores da Candelária. Por ali, viviam pelo menos 70 crianças e adolescentes. Três PMs foram condenados pelo crime, mas já estão soltos. Na semana passada, uma equipe do GLOBO voltou ao local do massacre e só encontrou adultos dormindo no local. Em outros pontos do Centro, também quase não são vistos adolescentes morando nas ruas. Eles continuam na região, mas só durante o dia, quando praticam assaltos e consomem drogas. O mais comum são famílias inteiras sob as marquises, muitas delas com crianças.

A defensora pública Rachel Gonçalves Silva, coordenadora de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública, disse que o perfil do infrator que vive nas ruas do Rio mudou nos últimos 25 anos:

— Hoje, o adolescente está sendo recrutado muito cedo pelo tráfico na favela. Por isso, não vai morar nas ruas. Muitos ficam presos ao traficante por causa de dívidas com drogas e precisam roubar para pagar. São vítimas do bandido e do Estado. Infelizmente, ainda não temos pesquisas sobre isso, mas, nas nossas conversas com os adolescentes nas instituições, eles atribuem ao tráfico a responsabilidade pela mudança em suas vidas.

Segundo Rachel Silva, 12 adolescentes do Rio estão hoje no Programa de Proteção à Criança e ao Adolescente Ameaçado de Morte, financiado pelo governo federal. São jovens que se envolveram com o tráfico e foram ameaçados quando tentaram deixar o mundo do crime. Muitos, que não receberam ajuda, foram mortos.

— Pelos relatos que nós ouvimos, normalmente, o adolescente que comete o ato análogo ao roubo tem um histórico de passagem pelo tráfico. Ou seja: ele chega e diz para o traficante que quer sair, mas é obrigado a roubar para pagar a dívida contraída. Então, temos um novo perfil: viraram soldados do traficante e acabam sendo explorados. Para sair, eles precisam entrar no programa de proteção, ser retirados do estado e deixar tudo para trás — disse.

A educadora Yvonne Bezerra de Mello, de 71 anos, foi a primeira pessoa a chegar à Igreja da Candelária no dia da chacina. Ela trabalhava com os jovens que viviam naquela região do Centro, e um dos sobreviventes telefonou para a sua casa naquela noite.

— Eu não tenho dúvidas em dizer que o morador de favela está sendo cooptado pelo tráfico cada vez mais cedo. Alguns são recrutados aos 12 anos. Já vi casos de crianças com 10 anos entrando para o tráfico — disse Yvonne, que há 20 anos fundou e hoje coordena o projeto Uerê, na Favela da Maré, que atende cerca de 400 jovens com bloqueios cognitivos e emocionais devido à violência.

Para a educadora, nesses 25 anos, a situação da infância no Rio só piorou:

— Infelizmente, os governos, a sociedade, as pessoas não aprenderam nada com a chacina. O Rio sempre foi violento, mas não como agora. Estão empurrando essas crianças para a rua e para a marginalidade. Temos uma evasão escolar enorme na cidade. Oito mil crianças deixaram o ensino fundamental este ano. Elas deixaram a escola para fazer o quê? Ir para a marginalidade?

UNICEF CONTRA A MORTE DE JOVENS

Para monitorar o perfil do jovem que vive hoje nas ruas do estado e cobrar apoio das autoridades, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) criou o Comitê para Prevenção de Homicídios de Adolescentes. A iniciativa pretende mobilizar os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, para que sejam criadas políticas públicas que impeçam o assassinato de menores.

Números divulgados pela Defensoria Pública revelam que 335 crianças e adolescentes foram mortos no Estado do Rio, em 2016. No ano anterior, o número foi menor: 278. Um levantamento do Laboratório de Dados do Fogo Cruzado mostra que, este ano, 56 crianças e adolescentes foram baleados na Região Metropolitana, sendo que 25 morreram.

O desembargador Siro Darlan, presidente da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio, era o juiz de menores quando ocorreu a chacina. Segundo ele, hoje o jovem infrator é vítima do tráfico e do Estado, que não tem combatido o aliciamento deles pelos bandidos.

— O Estado tem culpa por certas infrações penais cometidas por indivíduos abandonados à própria sorte, aos quais foram negados direitos mais fundamentais, como saúde e educação — disse ele, que na última sexta-feira acompanhou a vigília na Candelária, organizada por entidades civis e parentes de vítimas da violência, para marcar os 25 anos da chacina, a serem completados amanhã.

PERSONAGENS DA TRAGÉDIA

Elias Amador, músico e regente que tirou dos acordes sua principal lição de vida:

Ele aprendeu a roubar, a cheira cola e a viver nas ruas com apenas 6 anos, quando deixou a casa dos pais, em São Gonçalo, para viver perambulando entre Niterói e o Rio. Chegou a dormir, com outros meninos, diante da Igreja da Candelária. Vinte e cinco anos depois da chacina nas imediações do templo, Elias Alves Amador, de 33 anos, está casado, é pai de dois filhos, e coordena o projeto de música Amar, que atende, no Centro do Rio, a cerca de 40 jovens, entre 7 e 17 anos. Todas são moradoras de comunidades, como os morros de São Carlos, Providência, Mineira, Pinto e Prazeres.

Elias Amador, músico e regente, que tirou dos acordes sua principal lição de vida Foto: Marcelo Régua / O Globo
Elias Amador, músico e regente, que tirou dos acordes sua principal lição de vida Foto: Marcelo Régua / O Globo

— A música e a fé me salvaram. Eu não tenho dúvidas. Foram elas que me resgataram da rua. Hoje, eu estou retribuindo tudo, regendo e ensinando música a crianças carentes, com o perfil muito semelhante ao meu de 25 anos atrás — diz o músico, formado em licenciatura

e música pela Unirio.

O projeto funciona na Igreja Evangélica Fluminense. Para manter as aulas, Elias conta com doações. Não recebe nenhum centavo público.

— Quando vivia nas ruas, fiéis da igreja evangélica vieram, um dia, me oferecer sopa. Aos 13 anos, sem saber ler e escrever, fui acolhido pela instituição Obras Sociais de Fé e Alegria. Minha vida mudou. Aprendi a ler, a escrever e a plantar. Com 19 anos, deixei o projeto. Prestei vestibular nove vezes até ser aprovado. Agora ensino para as crianças o que aprendi.

Adilson Dias, professor e diretor teatral que foi salvo pela arte:

Professor e diretor teatral, Adilson Dias, de 38 anos, foi parar na Igreja da Candelária por uma curiosidade de menino. Aos 9 anos, resolveu ver o que tinha no fim da linha do trem da Central do Brasil. Chegou à gare da Estação Dom Pedro II, nome antigo da Central. Lá, virou engraxate de sapatos e foi ficando.

Adilson Dias, professor e diretor Teatral que foi salvo pela arte Foto: Marcelo Régua / O Globo
Adilson Dias, professor e diretor Teatral que foi salvo pela arte Foto: Marcelo Régua / O Globo

— Eu tinha casa, mãe e pai. Tinha uma família, mas fui parar nas ruas e na Candelária atraído pelo chafariz. Quando a situação ficava tensa nas ruas, eu corria para dentro do Centro Cultural Banco do Brasil. Fiz amizades, conheci várias crianças e alguns meninos que morreram. Entrava no CCBB para beber água gelada e ficava encantado com aquela cúpula — lembra Adilson, que era conhecido como Bochecha na época.

O rapaz conta que a arte o salvou. Depois de sofrer uma agressão no Centro, foi viver em frente à Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema. Ele fala emocionado da virada que deu na sua vida.

— O ator Sérgio Britto, meu padrinho, me levou para fazer teatro na CAL (Casa das

Artes de Laranjeiras).

Em 2011, já diretor teatral, ganhou elogios da crítica ao dirigir “A Paixão de Cristo", na Cidade de Deus, na qual Jesus tinha cabelos black power e foi queimado dentro de pneus, como na tortura feita por traficantes, conhecida como “micro-ondas”.

— A arte me salva e me protege. Quando olho para o passado, eu vejo que é possível sonhar — diz Adilson.

Claudete Costa, coordenadora do Movimento Nacional dos Catadores, que dedicou a vida à reciclagem:

Claudete Costa, hoje com 38 anos e mãe de dois filhos, saiu de São Paulo para morar em Vassouras, no Estado do Rio, com o pai, a mãe e os irmãos. Ela estava com 8 anos.

— A gente tinha uma ótima vida, até meu pai agredir minha mãe. Deixamos tudo para trás e viemos morar na cidade do Rio. Na rua. Ficamos sob uma marquise na Rua Uruguaiana. Minha mãe catava papelão, e a gente ajudava. Ficamos ali, sem casa, por mais de quatro anos. Foi nessa época que eu conheci os meninos que viviam na Candelária — conta Claudete.

Claudete Costa, coordenadora do Movimento Nacional dos Catadores, que dedicou a vida à reciclagem Foto: Marcelo Regua / O Globo
Claudete Costa, coordenadora do Movimento Nacional dos Catadores, que dedicou a vida à reciclagem Foto: Marcelo Regua / O Globo

Uma mulher, que se tornou amiga de sua mãe, levou a família toda para morar num quarto alugado em Queimados, na Baixada Fluminense.

— A gente foi morar lá, mas ficava a semana toda dormindo nas ruas do Centro. Eu vivia fugindo para encontrar os meninos na Candelária. Conheci o Bochecha e vários outros garotos. Quando a chacina aconteceu, eu estava de castigo, trabalhando com minha mãe próximo à Praça Quinze — lembra.

A experiência com a mãe acabou virando profissão. Claudete, que era conhecida entre os meninos de rua como Beiçola, há 28 anos vive da reciclagem de material que recolhe das ruas. Foi eleita coordenadora estadual do Movimento Nacional dos Catadores, com representação em todos os municípios do Rio:

— O lixo me salvou. É o que eu costumo dizer. E ainda hoje me ajuda a sobreviver e a cuidar da minha família.