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A literatura de Carolina Maria de Jesus: do ‘Quarto de despejo’ para o mundo

Livro revê trajetória da catadora de lixo, que completaria 100 anos em 2014, e a repercussão internacional de sua obra

Carolina Maria de Jesus (à direita) lançou em 1960 o livro ‘Quarto de despejo: diário de uma favelada’, que a revelou para o mundo
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Divulgação
Carolina Maria de Jesus (à direita) lançou em 1960 o livro ‘Quarto de despejo: diário de uma favelada’, que a revelou para o mundo Foto: Divulgação

RIO - Para uma escritora que viveu rotulada como “mulher, negra e favelada”, mãe solteira sem muita escolaridade, que tinha nos lixões do entorno da favela do Canindé, em São Paulo, onde morava, os meios de sustentar a família e a base de sua produção literária (ela levava para o barraco livros e cadernos que encontrava no lixo), pode-se dizer que Carolina Maria de Jesus (1914-1977) teve uma trajetória excepcional. Sua vida de escritora, apesar das muitas contradições do seu temperamento, fez dela um fenômeno editorial e midiático, algo contrastante com sua atividade de catadora de papel das ruas de São Paulo. Incomodada por ser vista por todos como “mendiga e suja”, dizia que, embora andasse suja, não era mendiga: “Mendigos pedem dinheiro; eu peço livros”.

Desde que apareceu para o mundo das letras com seu livro “Quarto de despejo”, no início da década de 1960 (precedido das reveladoras reportagens do jornalista Audálio Dantas), Carolina Maria de Jesus vem sendo alvo de diversos estudos no Brasil e no exterior. Esses estudos giram em torno da sua turbulenta vida de favelada e da sua extensa obra, que engloba autobiografia, memorialismo, poesias, contos, provérbios e romances. Publicou ainda “Casa de alvenaria”, “Journal de Bitita“ (póstumo, 1982, França) e “Meu estranho diário” (também póstumo, 1996, organizado por José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M. Levine), o que nos dá uma ideia dos muitos inéditos deixados pela escritora, traduzida para dezenas de idiomas, como o romeno, russo, japonês, inglês, sueco e alemão.

ELOGIOS DE CLARICE E ALBERTO MORAVIA

Sobre ela foram realizados alguns bons trabalhos, como o ensaio “Cinderela negra” (1994), de José Carlos Meihy e Robert Levine, e as biografias “Muito bem” (2007), de Eliana Moura de Castro e Marília Novais de Mata Machado, e “Uma escritora improvável” (2009), de Joel Rufino dos Santos. A melhor análise do fenômeno que foi essa escritora, cujo centenário de nascimento ocorre este ano, está em “A vida escrita de Carolina Maria de Jesus”, excelente estudo da pesquisadora Elzira Divina Perpétua, da Universidade Federal de Ouro Preto.

O trabalho de Perpétua é fruto de anos de dedicação à obra da escritora mineira, nascida em Sacramento, que se tornou conhecida a partir do primeiro livro, “Quarto de despejo”, seu diário com pormenores da vida numa favela brasileira. Falava de fome, miséria, abandono, violência, aguçando a curiosidade pública e o espanto geral da sociedade, numa época de grandes transformações — aqui com o advento da inauguração de Brasília, lá fora pelas radicais mudanças econômicas e geopolíticas.

Elzira Perpétua sabe captar, em “A vida escrita”, toda a efervescência desse contexto, situando a escritora favelada (ou a favelada escritora) no panorama da literatura, da política, da economia e da cultura do país. Ao mesmo tempo, trabalha com os textos dos diários, analisando o mundo em torno da autora, seus sonhos e aspirações, seus projetos pessoais. Revela, com base no pensamento da catadora, o comportamento de Carolina com os filhos e seu relacionamento com os vizinhos. Pontos altos de alegria se mesclam com picos de tristeza e depressão, na manifestação suicida, na desesperança por se sentir impotente e derrotada.

Mas em “A vida escrita” é a primeira parte do estudo, que aborda a produção e recepção do livro “Quarto de despejo”, que chama a atenção, especialmente no capítulo em que Perpétua trata das traduções da obra no exterior. É curioso observar que nos países onde “Quarto de despejo” apareceu, o título da obra ganhou conotações estranhíssimas, como “Lixo”, na Dinamarca; “Depósito”, na França; “Favela”, em Cuba; “Diário da miséria”, na Alemanha; “Além da compaixão”, no Reino Unido. No Japão, a obra foi batizada de “Karonina nikki”, ou “O Diário de Carolina”. Já na edição americana, o livro da escritora brasileira foi denominado de “Filha da escuridão” (Child of the dark).

Na Itália, Alberto Moravia, importante nome da literatura europeia, encontrou na obra de Carolina a palavra “de uma profundidade shakespeariana”. E, entre nós, uma Clarice Lispector ansiosa (na lembrança de Nélida Piñon) disse para Carolina, quando a conheceu numa sessão de autógrafos numa livraria carioca, que a escritora do Canindé escrevia de verdade ou escrevia a verdade, reforçando o poder de sua escrita.

O impacto de “Quarto de despejo” catapultou o sucesso de Carolina de Jesus para além das nossas fronteiras e dela mesma. Quando morreu, em 1977, morando em um sítio de sua propriedade, chegou a dizer que era melhor ter continuado a viver na favela. Em verdade, nunca lhe saíram da curtida pele os efeitos de sua pobre vida, como catadora de papel e intelectual da miséria.

*Uelinton Farias Alves é jornalista e escritor, e trabalha atualmente numa biografia sobre Carolina Maria de Jesus