Por Laís Modelli, G1


Filhos de pacientes de hanseníase internados na colônia Lauro de Souza Lima, interior de São Paulo, aguardando em cestos para serem enviados a orfanatos. — Foto: Acervo/Jaime Prado

A amazonense Valdenora Cruz foi diagnosticada com hanseníase aos 8 anos, nos anos de 1970. No dia seguinte, foi enviada ao Hospital Colônia Antônio Aleixo, em Manaus, um dos 40 leprosários que já funcionaram no Brasil e onde viviam isolados os pacientes da doença. Igual aos demais internos, Valdenora era obrigada a trabalhar. “Comecei limpando, fazendo serviços gerais, varrendo rua”.

Quando fez 14 anos, foi treinada pelas freiras do hospital da colônia a fazer partos. Aos 15, já conduzia os procedimentos sozinha. “As freiras me orientavam a arrumar o bebê assim que ele nascesse e a entregá-lo para os carros, que estavam esperando na porta da colônia”, lembra. “Os carros” eram veículos com representantes do Estado, que buscavam os recém-nascidos e os levavam para orfanatos e educandários.

A estimativa é de que, no mínimo, cerca 40 mil crianças tenham sido afastadas dos pais que estavam internados compulsoriamente. No caso das meninas, muitas delas receberam o nome de "Maura Regina", em homenagem a uma artista e deputada que lutou contra os leprosários (veja abaixo a história de uma dessas "Maura Regina").

“As mães sequer podiam ver os filhos”, afirma Valdenora. “Foi um crime o que o Estado brasileiro cometeu contra essas pessoas. Tem que ser reparado".

Além de uma indenização financeira, os filhos separados lutam na Justiça para que os leprosários - terrenos que reproduziam cidades, com cadeias, escolas e até cemitérios - ainda existentes no Brasil sejam transformados em museus sobre a hanseníase. Isolados da sociedade, pacientes da doença eram presos ali; pessoas saudáveis eram proibidas de entrar.

LUTA POR REPARAÇÃO

Desde 2017, o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) move na Justiça uma Ação Civil Pública contra o Estado. O Morhan pede que o governo reconheça a responsabilidade na alienação dessas famílias e no isolamento compulsório dos pacientes, além de uma indenização aos filhos separados ainda vivos.

Este ano, depois de a juíza que cuida do caso tentar extinguir a ação exigindo que todos os filhos separados no país assinassem uma autorização, o Ministério Público Federal (MPF) emitiu um parecer pedindo o andamento do processo.

“Demos um parecer favorável ao andamento da ação porque entendemos que a Lei 610 provocou uma grave violação de direitos humanos ao separar os filhos, causando danos irreparáveis”, afirmou a procuradora Fernanda Domingos, durante uma audiência pública com os filhos separados realizada no dia 13, em São Paulo.

A Lei 610, outorgada em 1949, regulamentou a política pública que permitia o Estado isolar compulsoriamente os pacientes de hanseníase em estabelecimentos afastados das cidade, conhecidos como leprosários, e mandar aos orfanatos os filhos que nascessem nesses locais.

“O Estado brasileiro não supervisionou a condição dessas crianças [separadas dos pais], que ficaram sem amparo e sofreram outras violações nos estabelecimentos que tinham o dever de ampará-las” - Fernanda Domingos, procuradora

O único dado sobre os filhos separados pela antiga política de combate à hanseníase é da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. É do órgão a estimativa de que 40 mil bebês tenham nascido nos 40 leprosários que existiram até 1986, ano em que esses estabelecimentos foram extintos.

Segundo o advogado do Movimento, Pedro Pulzatto Peruzzo, “não existe nenhum dado consolidado [sobre filhos separados em razão da hanseníase]”. Por isso, não há como a Justiça exigir que se nomeie os atingidos quando nem mesmo o Estado sabe quantas pessoas foram afetadas.

O Movimento defende que a política de combate à hanseníase do século 20 foi um dos maiores casos de alienação parental ocorrido no Brasil com o aval do Estado.

As "Maura Regina" escondidas

Maria Teresa Oliveira, de 63 anos, segura sua certidão de nascimento verdadeira. Por meio do documento, descobriu que nasceu na Colônia de Santo Ângelo, SP. e que seu nome verdadeiro era Maura Regina. — Foto: Laís Modelli/G1

Peruzzo conta que, desde que entrou com a Ação Civil Pública, quase todos os dias aparecem novos casos de pessoas que cresceram em orfanatos e descobriram na fase adulta que eram filhos de hansenianos. Em muitos casos, essas pessoas apresentam mais de uma certidão de nascimento.

Este é o caso da assistente social Maria Teresa Oliveira, de 63 anos. Adotada aos 4 meses, ela descobriu somente aos 47 anos que nasceu na Colônia de Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, e que seu nome de batismo era Maura Regina.

“Pesquisei se existiam pessoas com a mesma história que a minha e descobri que existem muitas ‘Maura Regina’ da minha idade. Cheguei a ver uma foto com mais de 100 mulheres, todas batizadas como Maura Regina, em homenagem à Conceição da Costa Neves”, conta Teresa.

Maura Regina era o nome artística da primeira deputada federal mulher de São Paulo, Maria da Conceição da Costa Neves. Ela foi a primeira ativista pública em defesa das vítimas da hanseníase, tendo criado na década de 40 Associação Paulista de Assistência ao Doente da Lepra. Antes de entrar para a política, Conceição foi atriz da Companhia Procópio Ferreira durante os anos 30 e se apresentava com o nome artístico de Maura Regina.

Mais que uma homenagem à deputada, batizar as meninas nascidas nos leprosários como “Maura Regina” era uma tática das pacientes para tentarem localizar suas filhas mandadas a orfanatos quando saíssem das colônias. Porém, igual a Teresa, muitas filhas tiveram uma segunda certidão de nascimento emitida com outro nome, com o objetivo de apagar o passado dessas crianças.

A assistente social nunca chegou a conhecer os pais biológicos, já que seu pai se matou no leprosário em 1956, ano em que Teresa nasceu, e a mãe fugiu do leprosário em 1988, dizendo que iria procurar pelas três filhas. Ela nunca mais foi encontrada.

'Vou morrer logo, filha'

Aldenice Vieira Lima, de 63 anos, separada da mãe quando tinha 15 dias de vida. — Foto: Laís Modelli/G1

Além dos filhos recém-nascidos, a política pública de combate à hanseníase que vigorou no século 20 também separou crianças e adolescentes.

Este foi o caso da comerciante cearense Aldenice Vieira Lima, de 63 anos, que teve a mãe internada compulsoriamente quando tinha apenas 15 dias de vida.

Logo após o parto, a mãe de Aldenice começou a se queixar de dores e dormência no corpo e foi ao médico. Ela foi diagnosticada com hanseníase e internada imediatamente na Colônia de Antônio Diogo, em Redenção, a 55 km de Fortaleza.

Apesar de ter pai e avós vivos, o Estado tentou enviar a Aldenice à adoção. “Minha mãe não aceitou e mandou me levarem para a minha avó paterna”, conta a comerciante, que foi criada pela avó até os 12 anos e por uma tia até os 18.

Quando completou a maioridade, Aldenice se mudou para Fortaleza para ficar próxima da mãe e tentar ter algum convívio. “Minha mãe foi internada quando eu nasci e nunca mais conseguiu sair da colônia. Quando eu pude, comecei a visitá-la. Um dia, ela me disse: ‘eu vou morrer logo, filha. Não aceito a dor de ter sido separada de vocês [os filhos] e não aguento mais esse desprezo’. Logo depois ela morreu, com 55 anos”.

Apesar de ter sido criada pelos familiares, Aldenice afirma que sofreu muito preconceito dentro de casa. “Meu pai me visitava na casa da minha tia. Como ele ainda era casado com minha mãe e também a visitava, minha tia permitia que ele se sentasse em um determinado banquinho apenas. Quando meu pai ia embora, eu tinha que ferver uma panela de água e escaldar o banquinho”.

Aldenice também lembra de uma vez em que, depois de fazer um exame de pele de rotina, a tia mandou ferver suas roupas e deixá-las três dias no sol. “O tecido não aguentou e rasgou. Eu adorava aquela roupa. Chorei tanto, não por terem estragado a roupa, mas pela atitude. Foi ali que eu comecei a entender o que era o preconceito [contra a hanseníase]”, conta, emocionada.

Já adulta, a comerciante descobriu, por meio de um irmão mais velho, que a família queimou o seu enxoval de nascimento. "Quando minha mãe foi internada, mandou entregar na casa dessa minha tia meu enxoval. Meu irmão me contou que lembra da nossa tia jogando tudo no quintal da casa e colocando fogo. Eu não tenho uma lembrança de infância da minha mãe, foi tudo destruído”, conta.

Além da mãe, a irmã mais velha de Aldenice também foi diagnosticada com hanseníase e enviada à Colônia de Antônio Diogo. A menina ficou internada até a idade adulta e se casou com um ex-paciente do leprosário, que conheceu durante o isolamento. “Acho que por tudo o que minha irmã viu lá, eles nunca quiseram ter filhos”, opina.

Uma geração de surdos

“De cada 10 filhos que nasciam no leprosário, 7 morriam. Os que sobreviviam, eram mandados aos educandários. Lá, passaram fome, agressão física e violência sexual”, afirma o médico Getúlio Ferreira de Moraes, diretor da Casa de Saúde de Santa Izabel, de Betim, Minas Gerais.

A Colônia de Santa Izabel foi uma das maiores do país. Somente em 1937, o lugar recebeu 3.886 pacientes internados compulsoriamente. Fundada em 1921, a instituição funcionou como um leprosário até 1986.

Há 4 anos, Moraes localiza e entrevista filhos que nasceram em Santa Izabel para dimensionar os danos sofridos por eles. O médico já entrevistou 150 filhos.

Um dos relatos que mais chamou atenção foi o de uma senhora, que foi violentada durante toda a adolescência por três homens, a partir dos 9 anos. “Eles [os agressores] davam cola de sapateiro para ela cheirar e a violentavam de todas as formas. Recentemente, eu consegui uma cirurgia plástica porque ela não tinha vagina, mas o que chamamos de cloaca: era tudo emendado”.

O médico destaca que o pior caso que tem conhecimento até agora em Minas Gerais aconteceu com as crianças que foram mandadas a um educandário em Araguari. “Eu me assustei com os filhos de Araguari. Por causa dos tapas que os meninos recebiam nos ouvidos toda a hora, temos uma geração de homens surdos que cresceram ali”.

Recentemente, o médico localizou filhos que foram separados em 1986, ano

que a lei que permitia a segregação deixou de existir. “Já existia [em 1986] tratamento para a hanseníase e todo mundo sabia que a doença não se pegava pelo simples contato, mas o Estado continuou separando e maltratando esses filhos”, denuncia.

Os relatos colhidos por Moraes estão sendo usados pelo Morhan para servir de base para possíveis políticas públicas de assistência médica e social aos filhos separados. “A maioria dos entrevistados não sabe ler ou escrever. Quase todos têm depressão e não conseguiram construir laços afetivos para fora dos orfanatos”, conta o médico.

O que querem os filhos segregados pela política pública de combate à hanseníase, de 1923 a 1986:

  • Reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro no isolamento forçado dos pacientes e na separação compulsória dos filhos
  • Divulgação de todos os dados existentes em registros do Estado referente aos filhos separados
  • Pagamento de indenização em prestações mensais aos filhos que foram separados
  • Criação e implementação no Sistema Único de Saúde (SUS) de atendimentos psicológico e psiquiátrico para filhos separados que assim desejarem e necessitarem
  • Adoção de uma política pública de eliminação da hanseníase com ampla divulgação nos meios de comunicação
  • Criação de 5 centros de memória, um em cada região do Brasil, em homenagem aos filhos separados
  • Tombamento dos 29 educandários que ainda existem no país
  • Inclusão, por meio do Ministério da Educação, da história dos filhos separados na formação dos profissionais de Saúde e de Justiça nas universidades públicas

Por meio de um cadastro autodeclaratório, o Morhan já identificou 12 mil filhos separados ainda vivos.

Cresce o número de casos de Hanseníase no País

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Hanseníase: Brasil é 2º país em notificações

Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil é o segundo país no mundo que mais registra novos casos de hanseníase. Para Moraes, contudo, "a sociedade rejeita tanto a doença, que considera que ela acabou.”

“Quase 30 mil pessoas adoecem por causa de hanseníase a cada ano no Brasil. Dessas, quase 3 mil são crianças. Eu conheço pacientes infantis que já estão com as mãos em garra”, afirma o médico. "Mãos em garra" é um termo usado para descrever a fase aguda da doença, capaz de destruir as pontas dos dedos e outras extremidades do corpo, como cotovelo e nariz.

  • A hanseníase é uma doença crônica e uma das mais antigas da História, com registros que datam de 600 a.C.
  • Contagiosa, a enfermidade é causada pelo bacilo Mycobacterium leprae, capaz de infectar grande número de indivíduos.
  • Porém, é necessário um longo período de exposição ao bacilo para contrair a hanseníase. Por isso, uma pequena parcela da população infectada realmente adoece.
  • Até hoje, a notificação e investigação da hanseníase são obrigatórias.
  • O termo "lepra" e seus adjetivos é proibido no Brasil desde 1976 devido o preconceito social.

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