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Por Renato Alves e Fernando Salla, Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo


 — Foto: Wagner Magalhães/G1

— Foto: Wagner Magalhães/G1

O ano de 2020 já contabiliza, em seus seis primeiros meses, 3.251 pessoas mortas em intervenções que envolviam policiais. Deste total, 3% são policiais (103) e 97% são cidadãos comuns (3.148). A título de comparação, nos seis primeiros meses de 2019, tais intervenções provocaram 3.017 mortos: 83 policiais e 2.934 cidadãos comuns. Neste sentido, o cenário, que em 2019 já era bastante preocupante, tanto para policiais como para cidadãos comuns, torna-se, em 2020, ainda mais crônico.

As mortes produzidas por policiais atingem, ainda que de forma desigual, tanto policiais como cidadãos comuns. Ambas as mortes são parte de um fenômeno. Isto é, são parte de uma mesma equação em que matar e morrer são fatores associados que constantemente interagem entre si.

Para análise destes fatores, é preciso, logo de saída, registrar que o alarmante não está apenas na elevação do número de mortos produzidos pela ação policial. Fato que já seria, em si, um problema. Contudo, esta questão é ainda mais grave quando se considera que estes números vêm de patamares já escandalosamente altos e que continuam escalando.

Para dimensionar o tamanho deste absurdo: considerando os dados apenas dos primeiros semestres, ações envolvendo polícias mataram, em média, em 2019, 16 cidadãos comuns por dia, subindo para 17 em 2020. Entre os policiais, estas mesmas ações vitimaram, em 2019, em média, 1 policial a cada 52 horas, passando para 1 policial a cada 42 horas em 2020.

Desagregados, os números mostram que a maioria dos cidadãos comuns são mortos por policiais em serviço. No primeiro semestre de 2020, 95% das mortes provocadas pela polícia deram-se nestas circunstâncias. Em comparação com o mesmo período do ano anterior, este número não apresenta variação. Por outro lado, as mortes causadas por policiais fora de serviço permaneceram praticamente estáveis nos mesmos períodos de 2019 e 2020.

Quando se observa a distribuição das mortes pelas unidades da federação, percebe-se que a quantidade de pessoas mortas pela polícia varia enormemente entre os diferentes estados brasileiros: indo de 3, em Rondônia, a 775, no Rio de Janeiro.

Além da disparidade entre os extremos, chama particular atenção que os cinco estados que mais concentram este tipo de morte respondem, em conjunto, por aproximadamente 71% (2.240) do total de pessoas mortas pela da polícia (3.148): Rio de Janeiro (775), São Paulo (514), Bahia (512), Pará (259) e Paraná (180). Em relação ao ano de 2019, estes cinco estados permanecem os mesmos, apontando, apesar das variações, para a recorrência do problema ao longo do tempo.

Apesar de calamitosos e assustadores, os dados relacionados ao primeiro semestre de 2020 eram de certa forma esperados, pois dão continuidade à escalada do uso da força letal por parte dos agentes do estado a que já vínhamos assistindo em 2019.

Esperava-se, com a ocorrência de alguns eventos bastante atípicos ocorridos ao longo do primeiro semestre de 2020, como os 13 dias de paralisação dos policiais do Ceará ou mesmo as políticas de isolamento social adotadas em vários estados em função da Covid-19, que o número de pessoas mortas pela polícia em ações oficiais diminuísse. Mas, ao contrário do que se esperava, estes números não só subiram em seu computo geral como também se elevaram na maioria das unidades da federação. Dos 26 estados em que se é possível monitorar este tipo de morte, 19 apresentaram elevação (73%).

Ainda comparando as variações entre 2019 e 2020 por estados, destacam-se particularmente a forte aceleração apresentada pelos estados de Mato Grosso, onde o número de pessoas mortas pela polícia passa de 25 para 53 (+112%), Sergipe, passando de 59 para 107 (+81%), e Bahia, passando de 361 para 512 (+42%).

Por outro lado, as mais fortes quedas estão nos estados de Rondônia, saindo de 10 para 3 (-70%), Mato Grosso do Sul, de 33 para 17 (-48%), e Piauí, de 30 para 17 (-43%).

Quando se consideram as taxas por 100 mil habitantes, algumas surpresas se apontam. Amapá continua liderando o ranking, sendo o estado onde a população mais é morta pela polícia. As grandes surpresas são Sergipe, que passa, em 2020, de 4º para o 2º lugar, e a Bahia, que passa do 5º para o 4º lugar. Na outra ponta, entre os estados em que a relação entre número de mortos pela polícia pelo total da população é menor está Rondônia, que teve forte queda no número de mortos pela polícia nos primeiros seis meses de 2020.

Os dados de 2020 do Monitor da Violência trazem ainda uma grande inovação. Pela primeira vez, é possível ter acesso a alguns dados da raça/cor das pessoas mortas em ações oficiais da polícia. Apesar de estas informações serem disponíveis apenas para 15 (Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins) dos 26 estados com dados disponíveis, estas informações não deixam de representar um grande avanço.

Por estes dados, é possível perceber que, no geral, pretos e pardos (75,5%) são mais mortos pela polícia que brancos (24,5%). Contudo, é interessante observar que, nos estados do Sul, como Santa Catarina e Rio Grande do Sul, os brancos são a maioria entre o total de mortos pela polícia

Vale aqui ressalvar que as proporções aqui apresentadas podem, em parte, ser explicadas pela composição da população presentes naqueles estados. Apesar de sugerirem, estes dados sozinhos não permitem dizer que a polícia mata mais pessoas de raça/cor que de outra. Para isso, seriam necessários outros cálculos, como, por exemplo, a proporção de mortos pela polícia em relação aos grupos populacionais desagregados por raça/cor.

É também necessário estabelecer mais algumas considerações sobre o número de policiais mortos. Apesar de ser bem inferior ao número de cidadãos comuns mortos pela polícia, o número de policiais mortos é também bastante preocupante. No ano de 2020, 103 policias foram mortos, sendo que 31 morreram em serviço e 72 fora de serviço. Dos 83 policiais mortos em 2019, 23 morreram em serviço e 60 fora de serviço. A ascensão destes números sugere que, em 2020, o risco de morte para os policiais vem sendo maior do que fora em 2019, degradando ainda mais suas condições de vida e de trabalho.

Tanto em 2019 como em 2020 São Paulo e Rio de Janeiro foram os estados em que mais policiais morreram fora de serviço. Em parte, estas mortes fora de serviço podem ser explicadas pela necessidade de os policiais utilizarem seus horários de folga para fazerem “bicos” para complementar seus salários.

O número de policiais mortos é bastante preocupante. Apenas a título de comparação, em todas as polícias estadunidenses, morreram 48 policiais ao longo do ano de 2019. No Brasil, em um semestre, o número de policiais mortos é praticamente o dobro do número total de policiais mortos em um ano nos Estados Unidos.

Por outro lado, as polícias americanas mataram, durante o primeiro semestre de 2020, 597 pessoas em ações oficiais. Neste mesmo período, as polícias brasileiras mataram, só em serviços similares, 3.007 pessoas, isto é, 5 vezes mais que a polícia americana.

Quando se observam estes dados, percebe-se que a letalidade policial não apenas produz grande número de mortes entre cidadãos comuns, mas vitima também a própria polícia. Assim, como diz um coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo, “a polícia que mais mata é também a polícia que mais morre”.

Por fim, vale destacar a não recente ótica de guerra. A guerra ao crime, aos criminosos e ao tráfico de drogas são atualmente o que em outras épocas foi a guerra ao jogo, à vadiagem, à prostituição. Forma-se, assim, um imaginário de enfrentamento a um inimigo que, ao longo tempo, tem as mesmas feições (negros, pobres, precarizados em geral que, não raras vezes pelas diferentes formas de violência estatal, são apartados de direitos básicos e fundamentais), assumindo, a cada tempo, os mais diferentes aspectos e rótulos.

A lógica acionada é da guerra onde não cabe a moldura dos controles democráticos e dos limites impostos pelas leis. A narrativa apresentada pelos policiais é a de que o inimigo (criminoso/suspeito) está sempre bem armado e enfrenta a polícia com poder de fogo e risco para os policiais.

Como temos visto, esse argumento da guerra cada vez mais tem sido acionado para “suspender” a validade dos dispositivos legais que os operadores com frequência apontam como entraves para lidar com a criminalidade. Neste contexto, impõe-se o “matar ou morrer”. Na lógica do “matar ou morrer”, tanto as circunstâncias como o próprio viver estão permanentemente em risco. Ainda que uns percam mais que os outros, neste contexto, a maioria perde, pois ninguém está seguro, sejam eles cidadãos comuns ou os próprios policiais.

Renato Alves e Fernando Salla são pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP)

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