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Após quatro semanas de protestos, Chile mudará Constituição herdada da ditadura

Acordo amplo entre direita e esquerda marca para abril plebiscito sobre formato da Constituinte; atual Carta não consagra direitos sociais
Membros de todos os partidos políticos chilenos exceto o PC participam do anúncio do acordo que abre caminho para uma nova Constituição no Chile Foto: Reprodução
Membros de todos os partidos políticos chilenos exceto o PC participam do anúncio do acordo que abre caminho para uma nova Constituição no Chile Foto: Reprodução

SANTIAGO — Um mês depois da eclosão de protestos por avanços sociais, congressistas do Chile concluíram um acordo que vai dar início ao processo para a redação de uma nova Constituição , uma das principais demandas das manifestações que tomam as ruas do país. O acerto só foi obtido às 2h30 da madrugada desta sexta-feira, após uma autêntica maratona de negociações entre representantes de quase todas as siglas do Parlamento, da direita à esquerda.

O principal ponto do acordo é um plebiscito, que será realizado em abril e terá algumas opções, começando pela pergunta principal: se a população quer ou não mudar a Carta Magna, redigida em 1980, durante a ditadura de Augusto Pinochet, e que não consagra direitos sociais à saúde, educação e previdência. Depois, o eleitor, caso concorde com a mudança, decidirá quem formará a Constituinte, se uma convenção mista, com 50% de atuais congressistas e 50% de novos integrantes, ou se através de uma Assembleia Constituinte exclusiva a ser eleita.

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O quórum para acordos constitucionais será de dois terços dos deputados constituintes. A Constituição deverá partir do zero, isto é, a Carta atual não será considerada como base. Houve controvérsia antes do acordo sobre este ponto — a União Democrática Independente (UDI), partido de direita que faz parte da coalizão do presidente Sebastián Piñera, queria que, em casos onde não houvesse a maioria de dois terços, os artigos constitucionais atuais fossem mantidos. A proposta acabou derrotada em favor da chamada "folha em branco". Ao fim do processo constituinte, a nova Constituição será submetida a um referendo.

Os mercados financeiros reagiram bem ao acordo, com um aumento de 8,09% nas ações da Bolsa local — que haviam caído 13% desde o início dos protestos — e o peso se valorizou, depois de queda recorde na quarta-feira.

Os partidos do governo (além da UDI, a Renovação Nacional, de Piñera,  e o Evolução Política) a princípio eram contra a possibilidade de uma assembleia exclusiva. Eles aceitaram esta possibilidade na negociação  em troca do alto quórum de dois terços, proporção que nenhuma coalizão política conseguiu ter no Parlamento desde 1990. Todos os partidos participaram do acordo, exceto o comunista (PCCh), que, após uma reunião na terça-feira, se afastou das negociações, dizendo-se contrário ao quórum de dois terços, que permitiria que uma minoria bloqueasse os debates constituintes.

No entanto, a Frente Ampla, coalizão de esquerda formada em 2017 e que ficou em terceiro na eleição presidencial daquele ano, com 20% dos votos, participou do acordo. Os próprios dirigentes do PCCh, mais tarde, disseram que apoiarão o processo e participarão dele.

A eleição dos membros do órgão constituinte acontecerá em outubro de 2020, sob o sistema de sufrágio universal obrigatório — uma diferença em relação ao sistema eleitoral atual do Chile, onde o voto é facultativo e a participação eleitoral foi de menos de 50% nas duas últimas eleições nacionais.

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A Assembleia Constituinte, que será desfeita após a aprovação da Carta, ficará reunida por até nove meses, prazo prorrogável uma só vez, por um período de três meses. Os quóruns exigidos para acordos não poderão ser alterados, e o mandato dos eleitos será exclusivamente relativo à nova Constituição. Pessoas que atualmente ocupam cargos públicos ou eletivos, como deputados e ministros, deverão interromper suas funções para dedicar-se exclusivamente à Constituinte.

O primeiro dos 12 pontos do acordo fala da necessidade do restabelecimento da ordem pública, em meio a atos de violência registrados em todo o país que já deixaram ao menos 20 mortos, e do respeito aos direitos humanos, em referência a denúncias de violações cometidas por agentes do Estado. “As partes que assinam este acordo garantem seu compromisso com a restauração da paz e da ordem pública no Chile e o pleno respeito aos direitos humanos e às instituições democráticas em vigor”, diz o texto.

Amplo acordo

Ao anunciar o acordo, o presidente do Senado, Jaime Quintana, do Partido pela Democracia (PPD), de centro-esquerda, disse que a nova Constituição representa um amplo esforço de todas as partes do espectro político.

— Assumimos a responsabilidade com uma resposta da política com maiúscula, da boa política — afirmou. — Não era nada fácil. Este é um acordo que vai desde a Frente Ampla até a UDI. Se tivessem me perguntado 24 horas antes, eu diria que era impossível.

Quintana também disse que queria  "homenagear aqueles que passaram momentos difíceis, vítimas de todas as partes. Houve pessoas que morreram, que foram afetadas em seus direitos essenciais".

O governo celebrou o acordo para a nova Constituição, chamado de Acordo pela Paz e uma Nova Constituição. Após o anúncio, a porta-voz Karla Rubilar, e os ministros do Interior, Gonzalo Blumel, e da secretaria de Governo, Felipe Ward, que formaram o comitê representando o governo na negociação, prometeram que a sociedade civil terá participação ativa na elaboração do novo marco constitucional.

— [A nova Constituição] é um primeiro passo fundamental para começar a construir nosso novo pacto social. Na nova casa de todos, a cidadania terá um papel de protagonismo, participará ativamente de nossa Carta fundamental — disse Blumel. — Foram tempos difíceis, de sofrimento, mas também de esperança. Aprendemos e concordamos que este acordo nos permitirá encontrar e criar um país melhor, mais inclusivo.

Ward, por sua vez, disse que o governo demonstrou boa vontade política ao aceitar mudar a Constituição.

— Provavelmente teria sido mais fácil optar pela força. O presidente decidiu optar pela paz. E provavelmente era esta a decisão que queria a sociedade — disse.

A popularidade de Piñera derreteu desde o começo dos protestos, chegando a uma baixa histórica de 9,1%, sobretudo depois que ele decretou estado de emergência, em 19 de outubro. Isso ajuda a explicar a mudança de ideia do presidente, que a princípio era contrário a uma reforma constitucional e cujo partido barrou uma iniciativa nessa linha apresentada pela ex-presidente Michelle Bachelet em seu segundo mandato (2014-2018).

O plano incluía propostas como a inviolabilidade dos direitos humanos, a consagração do direito à saúde e à educação e a igualdade salarial para homens e mulheres. Contudo, após o acirramento dos protestos, Piñera cedeu, aceitando a ideia de uma nova Carta, porém ainda contrário a uma Assembleia Constituinte. Seus opositores, por sua vez, exigiam participação popular ampla, que dizem que dará legitimidade ao novo texto.

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A atual carta recebeu dezenas de emendas desde que foi redigida, em 1980, sob a ditadura. No atual documento, áreas como educação, saúde e Previdência ficam sob encargo do mercado e não do Estado, ponto de severas críticas na sociedade local.