Política

Ditadura perseguiu até bailes black no Rio de Janeiro

Militares suspeitavam que artistas e DJs queriam implantar regime de segregação racial

Dom Filó, da equipe Soul Grand Prix, foi levado encapuzado ao DOI-Codi, na Tijuca, em 1976: “Perguntavam onde estava o US$ 1 milhão”
Foto: Agência O Globo / Gustavo Miranda/17-06-2015
Dom Filó, da equipe Soul Grand Prix, foi levado encapuzado ao DOI-Codi, na Tijuca, em 1976: “Perguntavam onde estava o US$ 1 milhão” Foto: Agência O Globo / Gustavo Miranda/17-06-2015

RIO — Seria cômico, não fosse trágico. E brutal. Depois de perseguir, exilar, torturar e matar opositores políticos, a ditadura militar direcionou seu aparato de investigação a grupos sociais e movimentos culturais, entre eles os bailes black. Os eventos reuniam multidões nos subúrbios cariocas, para dançar ao som de ícones da soul music, como James Brown.

A Comissão Estadual da Verdade do Rio (CEV-RJ) encontrou documentos que provam como, a serviço do governo, investigadores assombraram artistas e produtores, pela suspeita de que um revolucionário americano estaria no Brasil recrutando militantes para implementar no país um regime de segregação racial. Um relatório da Polícia Federal no Rio Grande do Sul, de agosto de 1978, chega a recomendar o uso da Lei de Segurança Nacional contra “tentativas subversivas de exploração de antagonismos raciais”.

O ponto de partida dos historiadores da CEV-RJ foi um informe de fevereiro de 1975, enviado pelo I Exército aos órgãos de informação, incluindo o Departamento da Ordem Política e Social (Dops) do antigo Estado da Guanabara. O assunto indicado não deixou dúvida: “Black power” (poder negro, em tradução literal), expressão de forte conotação política relacionada ao movimento dos negros americanos pelos direitos civis.

O texto alertava para a formação de “um grupo de jovens negros de nível intelectual acima da média, com pretensões de criar no Brasil um clima de luta racial”. Os militantes seriam liderados por um negro americano, que receberia dinheiro do exterior, e agiria na Portela, tradicional escola de samba carioca. O Informe 17/75-B também mencionava supostas metas do grupo: “Sequestrar filhos de industriais brancos; criar um bairro só de negros; criar ambiente de aversão aos brancos”.

— Nos primeiros dez anos da ditadura, os militares se concentraram em neutralizar membros do governo Jango e aniquilar militantes de esquerda. A partir de 1975, a repressão se estendeu a outros grupos historicamente discriminados, como negros, indígenas, camponeses e pobres. A produção de documentos sobre os bailes black começou assim — diz João Ricardo Dornelles, membro da CEV-RJ e coordenador da pesquisa no Arquivo Nacional e no Arquivo Público do Rio.

As investigações começaram sob recomendação de que fossem conduzidas por “sindicante altamente reservado e discreto”. Para os pesquisadores, trata-se de um eufemismo para sugerir que um agente negro se infiltrasse nos bailes.

No início de abril de 1975, documento da equipe de sindicância avisava que, até ali, nada do revolucionário estrangeiro: “Tudo indica (que a suspeita), tenha um fundo de verdade. Porém, não se conseguiu apurar algo positivo”. Piada. Só que o comando recomendou mais 15 dias de diligências para informações detalhadas e, se possível, qualificação dos envolvidos.

A denúncia infundada embasou a perseguição aos organizadores dos bailes. Relatórios seguintes identificavam nomes de equipes de som, como Black Power e Soul Grand Prix, e de seus integrantes. Os textos traziam descrições detalhadas de público presente, preço de ingressos e até expressões usadas pelos frequentadores. Ao 2º Encontro dos Blacks, no Portelão, compareceram seis mil “pessoas de cor”, segundo o documento da Seção de Buscas Ostensivas. Pela primeira vez, os historiadores encontrariam referências à cor da pele dos investigados.

Os responsáveis pelos bailes foram fichados e interrogados. Em 1976, Asfilófio de Oliveira Filho, o Dom Filó, da Soul Grand Prix, foi capturado perto do Renascença Clube, na saída da Noite do Shaft. Encapuzado, foi lançado num carro. Terminou numa sala úmida, com a visão ofuscada por uma luz forte. Passou a madrugada sob tortura psicológica, sem saber onde estava. A descrição do ambiente coincide com depoimentos de presos políticos que passaram pelo DOI-Codi, cuja sede ficava no Quartel do 1º Batalhão da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca.

— As vozes perguntavam onde estava o US$ 1 milhão. Mas aquilo não existia — lembra Dom Filó, deixado horas depois no Lins de Vasconcelos.

Gerson King Combo, apresentado como “líder do movimento black”, foi levado do Aeroporto Santos Dumont para a sede da PF, na Praça Mauá. Voltava de show em Recife. Prestou depoimento por três horas.

— O movimento nunca foi político. Fui paraquedista, tinha noção dos cacetes que os presos políticos tomavam. A gente queria se divertir e aumentar a autoestima dos negros. Nos shows, eu recitava mandamentos black: dançar, cumprimentar, falar, amar, curtir — conta.

VESTIDOS À MODA BLACK

Os informes também faziam referência a artistas como Tony Tornado, que chegou a sair do país nos anos 1970, e aos DJs Big Boy, Monsier Limá e Ademir Lemos, os três já falecidos. Rômulo Costa, da equipe Furacão 2000, é citado em documento do Ministério da Aeronáutica como um dos organizadores do 1º Encontro Nacional dos Blacks, em setembro de 1977, no Ginásio do Madureira. O relatório diz que cerca de 15 mil jovens negros lotaram o estádio vestidos à moda black: “cabelos cheios, calças ‘boquinhas’, camisas extravagantes, sapatos de sola, saltos altos e cores berrantes, turbantes indianos e cumprimentando-se com punhos cerrados”.

— O texto retrata o notório preconceito racial. Não fazíamos nada para competir ou nos distinguir dos brancos. Fazíamos porque gostávamos e nos identificávamos com a cultura black americana na música e na maneira de vestir — diz Costa.

As investigações se estenderam a São Paulo e ao Rio Grande do Sul. É do escritório gaúcho da PF o último documento achado pela CEV-RJ. O relatório criminalizava o movimento black, cujo objetivo seria pregar entre jovens negros “o preconceito racial, a discórdia e o desentendimento nocivo à comunidade brasileira”. O americano subversivo jamais foi encontrado. Cômico, não fosse trágico.