Cultura

Casa do Jongo pode fechar as portas em janeiro

Patrimônio imaterial do Rio, o Jongo da Serrinha perdeu patrocínios importantes, como o da prefeitura e da Petrobras
Casa do Jongo, que foi inaugurada em 2015 Foto: Custódio Coimbra / O Globo
Casa do Jongo, que foi inaugurada em 2015 Foto: Custódio Coimbra / O Globo

RIO — A prefeitura do Rio e a Secretaria Municipal de Cultura (SMC) interromperam, em outubro, uma longeva e contínua política de patrocínio de um dos mais importantes patrimônios imateriais da cidade, o Jongo da Serrinha — tombado em 2005 pelo Iphan por seu trabalho de 50 anos dedicados à preservação do jongo como Patrimônio Imaterial do Sudeste.

“Esse é o último núcleo de jongo da cidade. Essa Casa é uma referência da cultura negra, um patrimônio imaterial vivo. A prefeitura fala em investir no Museu da Escravidão e Liberdade, mas essa importância não se dá na prática”

Dyonne Boy
Diretora da Casa do Jongo

Desde a sua consolidação como ONG, em 2000, a Associação Grupo Cultural Jongo da Serrinha teve diferentes vínculos com a prefeitura, mas neste ano os repasses foram cancelados após 17 anos. Agora, a Casa do Jongo, como é conhecida, pode fechar as portas em janeiro caso a situação não se reverta.

As tentativas da ONG de estabelecer um novo acordo, com valor de R$ 400 mil, foram iniciadas em março. Após diferentes contatos e solicitações de documentos, o projeto recebeu a negativa final em outubro, através de um e-mail enviado pela SMC.

— Tentamos diferentes reuniões com a secretária (Nilcemar Nogueira) , mas nunca fomos recebidos por ela. Tivemos uma reunião com uma assessora, em março, enviamos documentos e, oito meses depois, recebemos um e-mail, em que nos disseram que não tinham verba  — conta Dyonne Boy, uma das diretoras da casa.

— Esse é o último núcleo de jongo da cidade. Essa Casa é uma referência da cultura negra, um patrimônio imaterial vivo. A prefeitura fala em investir no MEL (Museu da Escravidão e Liberdade), e, quando entramos no site da SMC, há destaque para o patrimônio imaterial, mas essa importância não se dá na prática. Falta política para o patrimônio imaterial da cidade. Realizamos um projeto de continuidade que agora está sob risco.

Segundo Dyonne, a Casa tem custos mensais que chegam a R$ 50 mil, conta com 23 funcionários fixos, entre professores e diretores, que realizam uma série de ações sociais e atendem a 400 alunos, com aulas de disciplinas esportivas, culturais e artísticas. Em 2017, o Jongo contou com um único patrocínio, de R$ 140 mil, vindo da TV Globo, através da Lei do ISS (mecanismo municipal de patrocínio via renúncia fiscal).

— Está encaminhado um trâmite para renovar o patrocínio da Globo para 2018, através do ISS, mas a prefeitura só deverá liberar essa verba a partir de abril. Até lá não temos condição de continuar — diz ela.

'ROLO COMPRESSOR NAS INICIATIVAS CULTURAIS'

Além de perder o apoio da prefeitura, a ONG também perdeu, em 2017, outro patrocínio continuado, o da Petrobras, que apoiou o projeto entre 2012 e 2016.

— Nosso trabalho é muito amplo e atende desde crianças até a terceira idade. Fazemos desde campanhas de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis até aquilo que é nosso fim, que é a preservação da memória e do patrimônio do jongo — diz Dyonne. — Todas as nossas ações justificam um investimento público, mas o que há hoje, com essa prefeitura do Crivella, é uma perseguição a projetos de cultura popular e de matriz africana. Estão passando um rolo compressor nessas expressões culturais.

O Jongo da Serrinha funciona desde 2015 na Casa do Jongo, localizada no Morro da Serrinha, em Madureira. O espaço é um imóvel que foi adquirido pela prefeitura, em 2013, e que foi cedido para a instituição por 12 anos.

Dois anos após a compra, o prefeito Eduardo Paes (PMDB) investiu cerca de R$ 2,5 milhões para reformar e abrir a Casa, que foi inaugurada em novembro de 2015.

No ano seguinte, a Casa funcionou com cerca de R$ 600 mil, com verbas obtidas junto na prefeitura, no governo do estado e na Petrobras. Também em 2016, a ONG foi contemplada no Programa de Fomento à Cultura Carioca com um projeto de circulação da peça "Jongo mamulengo", mas, como até hoje o edital não foi pago aos contemplados, o Jongo ficou sem receber os R$ 80 mil referentes ao projeto, que seria realizado pago neste ano.

Agora, com apenas R$ 140 mil, os professores só receberam quatro salários ao longo do ano e recentemente lançaram uma campanha de arrecadação de recursos para pagar as contas do espaço.

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— Cada pessoa do projeto está pessoalmente endividada por essa situação. Bancos não emprestam dinheiro para ONG, então a solução, no começo, foi pedir empréstimos individuais, mas, como os juros são altos, fomos nos endividando. Decidimos, então, lançar uma campanha de crowdfunding e é com ela que estamos pagando contas de luz, telefone, contador — diz Dyonne. — Mesmo com tudo isso, mantivemos a Casa aberta ao longo do ano todo, enviamos nossos relatórios mensais para a SMC, já que o prédio é da secretaria, mas agora não temos como seguir.

OUTRO LADO

Procurada pelo GLOBO, a Secretaria Municipal de Cultura informou que o decreto municipal nº 42737, de 1º de janeiro de 2017, em seu artigo 27, afirma que "os projetos culturais executados" pela SMC que recebam incentivo fiscal via Lei do ISS "não poderão ser contemplados com recursos do orçamento de outras fontes" e que, "uma vez que a Casa do Jongo já está incentivada pela Lei do ISS, a SMC não pode aportar recursos diretos de patrocínio na referida instituição".

A Casa do Jongo informou que conhece o decreto, porém afirma que o caso não se aplica:

— Esse decreto afirma que um mesmo projeto não poderia ser incentivado pelo ISS e por fomento direto, mas o mesmo CNPJ pode ser patrocinado por essas duas vias, contanto que sejam projetos diferentes, como é o nosso caso. Nós temos diversos projetos. Isso é apenas uma desculpa.

Também procurada pelo GLOBO, a Petrobras informou por nota que ações de "Patrimônio Imaterial" deixaram de fazer parte de suas prioridades neste ano, o que deve se manter em 2018. Leia a nota na íntegra:

"Em 2017 a Petrobras readequou sua carteira de projetos e adotou novas linhas de atuação. As ações de patrocínio cultural passaram a ser focadas em audiovisual, música e artes cênicas. O projeto em questão estava enquadrado na categoria 'Patrimônio Imaterial', que deixou de fazer parte das diretrizes do programa de patrocínio cultural da Petrobras. A Petrobras não pretende revisar suas linhas de atuação para 2018."