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Brasil

Em apenas três semanas, mais de cem feminicídios ou tentativas do crime são registrados no país

Sessenta e oito casos terminaram em morte; a maioria dos episódios ocorre no fim de semana
Especialista afirma que alto índice de feminicídios é reação contra 'transformações sociais' Foto: Ivo Gonzalez / Agênca O Globo/12-11-2014
Especialista afirma que alto índice de feminicídios é reação contra 'transformações sociais' Foto: Ivo Gonzalez / Agênca O Globo/12-11-2014

RIO — Sexta-feira, São Fernando, oeste do Rio Grande do Norte. Danielle Medeiros, de 32 anos, leva de seu companheiro um tiro na cabeça. Após o crime, ele enrola o corpo da mulher em um lençol e a enterra numa cova rasa no quintal da casa onde moravam. No dia seguinte, deixa os filhos, de 5 e 12 anos, na casa da avó e sai para jogar futebol com os amigos. À noite, questionado sobre o sumiço de Danielle, confessa o assassinato.

O crime no interior potiguar é um entre os 107 casos de feminicídio registrados desde o início do ano. São, em média, cinco ocorrências por dia. Sessenta e oito terminaram em morte; as outras 39 foram tentativas. É uma tragédia nacional — há episódios conhecidos em 94 cidades, distribuídas em 21 estados.

O levantamento é assinado por Jefferson Nascimento, doutor em Direito Internacional pela USP, com base no noticiário nacional. É possível, portanto, que o problema seja muito mais comum. Mas a crueldade empregada contra as vítimas está presente em todos os casos.

— A violência é tamanha que se tem a impressão de que, para o agressor, a vítima não é um ser humano — afirma Nascimento. — A mulher é vista como um componente social que pode ser descartado por qualquer razão fútil. Aí vemos um homem que afogou a companheira no vaso sanitário, outro que matou a golpes de machado, um terceiro que baleou e foi jogar futebol.

os números pelo país
Em 2019, foram registrados
107 casos (cerca de cinco por dia)
Desses episódios,
68 foram consumados e 39 tentados
Houve ocorrências em pelo menos 94 cidades e 21 estados
Quando os crimes foram praticados
dia
Crimes
9
Segunda
Mais de
55%
ocorreram
entre sexta e domingo
17
Terça
5
Quarta
17
Quinta
17
Sexta
26
Sábado
16
Domingo
Como os crimes foram praticados
Como
Crimes
22%
dos casos envolveram algum disparo de arma de fogo
Faca/Instrumento
40
cortante
33
Agressão
23
Arma de Fogo
7
N/A
3
Atropelamento
1
Carbonizada
Por quem foi cometido
Sete em cada
10 ocorrências
Quem
Crimes
Ex-companheiro/
74
Companheiro
69%
possuem o companheiro ou um ex como principal suspeito do crime
17
N/A
Terceiro acusado
13
de estupro/assédio
2
Ódio conta a mulher
1
Outros
os números pelo país
Em 2019, foram registrados
107 casos (cerca de cinco por dia)
Desses episódios,
68 foram consumados e
39 tentados
Houve ocorrências em pelo menos
94 cidades e 21 estados
Quando os crimes
foram praticados
Mais de
55%
ocorreram
entre sexta e domingo
dia
Crimes
9
Segunda
17
Terça
5
Quarta
17
Quinta
17
Sexta
26
Sábado
16
Domingo
Como os crimes
foram praticados
22%
dos casos envolveram algum disparo de arma de fogo
Como
Crimes
Faca/Instrumento
40
cortante
33
Agressão
23
Arma de Fogo
7
N/A
3
Atropelamento
1
Carbonizada
Por quem foi cometido
Sete em cada
10 ocorrências
69%
possuem o companheiro ou um ex como principal suspeito do crime
Quem
Crimes
Ex-companheiro/
74
Companheiro
17
N/A
Terceiro acusado
13
de estupro/assédio
2
Ódio conta a mulher
1
Outros

Segundo levantamento feito pelo GLOBO com base nos dados compilados por Nascimento, mais da metade dos episódios (55%) ocorreram entre sexta-feira e domingo, enquanto os demais foram registrados de segunda a quinta-feira. Uma hipótese aventada pelo especialista é a de que casais separados têm mais contato no fim de semana, por causa de seus filhos ou por encontrarem amigos em comum.

Golpe à masculinidade

Para Bila Sorj, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ, o elevado índice de homicídios atenta contra a “masculinidade tradicional”.

— Nas últimas décadas, os homens não se transformaram na mesma proporção que as mulheres. Há uma diferença cada vez maior na forma como eles e elas pensam o mundo — explica. — As mulheres ganharam autonomia para fazer suas próprias escolhas e valorizar sua individualidade. Querem que o casamento seja uma relação negociada, e não a palavra final do marido. O feminicídio é resultado da incapacidade dos homens de aceitar uma nova cultura.

O assassinato, diz Sorj, não costuma ser o primeiro conflito agressivo de um casal. Trata-se da etapa final de um ciclo de violência que não foi interrompido mesmo após a sanção, em 2006, da Lei Maria da Penha. A socióloga avalia que, com o texto, as mulheres deixaram de aceitar passivamente os confrontos — muitas pedem ações protetivas contra seus companheiros.

No entanto, Jolúzia Batista, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), indica que há cada vez menos ligações entre a legislação e a realidade. Prova disso é o gradual desmantelamento do projeto Casa da Mulher Brasileira, criado em 2015 pela então presidente Dilma Rousseff. O programa, que disponibiliza serviços como apoio psicossocial, contato com órgãos judiciais e cuidado das crianças, sofreu cortes orçamentários no governo de Michel Temer.

— Alguns estados nem sequer tiveram o programa; em outros, essas casas estão fechadas ou em uma situação muito precária — descreve Batista. — Eram centros que ajudavam as mulheres a deixar o local em que sofriam violência e a ter uma renda econômica para que seu sustento não dependesse de um agressor.

Jolúzia Batista diz acreditar que as mulheres, mesmo conscientes sobre sua vulnerabilidade ao feminicídio, ainda têm dificuldades de transmitir a sensação de perigo.

— Há muitos equívocos no atendimento às vítimas nas delegacias. Alguns inspetores e delegados recusam-se a registrar boletins de ocorrência por considerar que os relatos não têm importância — acusa. — Ignoram que o feminicídio é um crime hediondo, definindo-o apenas como um assunto passional que deve ser resolvido pela família.

Para a especialista do Cfemea, a sociedade parece cada vez mais disposta a ouvir discursos conservadores, onde as mulheres são vistas como pessoas que não se comportam nem buscam reconciliação com o companheiro.

O decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro que flexibiliza as regras para o posse de armas também preocupa as analistas.

— É uma medida de restauração do poder patriarcal. As mulheres não vão comprar armas para defender seus filhos, elas não serão as clientes da indústria armamentista. É uma forma de facilitar o feminicídio — destaca Sorj.

— As pesquisas mostram que as mulheres são as maiores vítimas de mortes por arma dentro de casa — acrescenta Batista. — Há 1.000% de chances de termos mais casos de violência.

*Estagiário, sob supervisão de Eduardo Graça