Conrado Hübner

O discreto charme da magistratura

O discreto charme da magistratura

Magistrados não precisam ter vocação para a pobreza. Se respeitassem o teto, já ocupariam o 0,2% mais alto da pirâmide social brasileira

CONRADO HÜBNER
05/03/2018 - 08h00 - Atualizado 05/03/2018 12h43

A magistratura nacional sente sua dignidade ameaçada. Quando perguntados sobre o recebimento de auxílio-moradia, juízes têm reagido de forma variada. Há a ironia passivo-agressiva dos acuados: “Tenho esse ‘estranho’ hábito. Sempre que penso ter o direito a algo, vou à Justiça e peço”, disse Marcelo Bretas; “Eu acho pouco. Recebo e tenho vários imóveis, não só um”, disparou Manoel Pereira Calças, presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo; “Tô nem aí”, esbravejou juiz de Mato Grosso, questionado sobre um contracheque de R$ 500 mil. Há a sinceridade envergonhada: “O auxílio disfarça aumento de salário que está defasado”, confessou José Nalini, ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo; “É um modo de compensar a falta de reajuste”, ensaiou Sergio Moro. Há, por fim, o juiz mosca branca, o tipo raro, que recusou o auxílio para estar em paz com sua consciência. Foi visto pela última vez em Santa Cruz do Sul.

As caricaturas atrapalham o debate. Após mais de 40 meses da decisão liminar do ministro Luiz Fux em 2014, que concedeu auxílio-moradia de R$ 4.300 a juízes de todo o Brasil, o Supremo Tribunal Federal pôs o caso em pauta. As razões que explicam por que o plenário da Corte ficou em silêncio até hoje escapam à esfera pública. Nesse longo intervalo, e com base jurídica precária, mais de R$ 1 bilhão foram gastos. Mesmo que o STF considere ilegal o pagamento, o ressarcimento aos cofres públicos é improvável.

Misturam-se na discussão três tipos de argumento: (i) o institucional, que examina qual é a política salarial adequada para um Judiciário competente e independente, ou seja, que atraia gente preparada, vocacionada e que não se renda às tentações materiais da corrupção; (ii) o moral, que determina o que é um salário justo no contexto da desigualdade brasileira, não em abstrato; e (iii) o jurídico, que olha a lei e verifica quem tem direito a qual remuneração.
Para que o benefício seja legítimo, juízes precisariam ganhar o duelo de razões em pelo menos uma das três frentes. No debate institucional, devem nos convencer de que não podem atrair candidatos capazes e incorruptíveis se não oferecerem, como fazem hoje, renda superior à dos juízes das maiores economias do mundo (como Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra). No debate moral, devem lidar com o fato de que mais de 99% dos brasileiros têm renda menor que magistrados e mais de 90% têm renda menor que essa “ajuda de custo”. Se está defasado, está em relação a quem e a quê?

Há quem evite esses dois debates, mas ainda persista no terceiro. O auxílio seria “imoral, mas legal”. Será? No plano jurídico, o Judiciário precisa sustentar que o pagamento indiscriminado e universal do benefício corresponde a uma interpretação aceitável do Artigo 65, ii, da Lei Orgânica da Magistratura, que originalmente criou o benefício para custear a moradia daqueles juízes alocados em comarcas remotas. Deve também nos persuadir de que “disfarçar reajuste” por via torta é opção legal. Ainda, deve explicar como deixar de pé um benefício que, por ser “indenizatório”, dribla o teto constitucional e o Imposto de Renda numa mesma tacada. Um truque bem melhor que simples reajuste, portanto.

Magistrados não precisam ter vocação para a pobreza. Se respeitassem o teto, já ocupariam o 0,2% mais alto da pirâmide social brasileira. Falta-lhes, historicamente, a vocação para a conversa horizontal e contextualizada, sobretudo no espaço público. A carreira é uma escolha privada de cada juiz; a política salarial, ao contrário, deve estar sujeita ao debate democrático.

Em reação ao que chamam de “campanha difamatória e desmoralizadora”, que enfraqueceria o Judiciário na luta contra a corrupção, juízes têm anunciado greves e marchas ao stf. Para combater a corrupção, contudo, é necessário que apresentem credenciais institucionais acima de qualquer suspeita. Carreiras de Estado não podem ser sequestradas pela queda de braço corporativa, sujeita à lei do mais forte. Antes de nos sensibilizarmos com a dignidade da magistratura, seria importante avaliar a dignidade de seus argumentos.








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