Cultura

Não deixe o samba falir -- como as escolas se viram no Carnaval da crise

Não deixe o samba falir -- como as escolas se viram no Carnaval da crise

Em tempo de recessão brava, as escolas de samba apostam na criativida de e nos enredos clássicos, como o romance Iracema ou A divina comédia

RODRIGO CAPELO E LUÍS LIMA
25/02/2017 - 10h02 - Atualizado 28/02/2017 16h12
Barracão da Imperatriz Leopoldinense do Rio.Sem patrocinio,a escola banca o desfile com menos recursos este ano (Foto: Pedro Farina/ÉPOCA)

O Belo Monstro rouba as terras dos seus filhos, devora as matas e seca os rios. O trecho do samba-enredo de 2017 da Imperatriz Leopoldinense, o melhor do Carnaval deste ano, faz alusão clara à construção da Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. A melodia, cheia de sofisticação harmônica, lembra os grandes clássicos da Sapucaí. O desfile homenageia o Xingu e os povos indígenas da região. Também critica os ruralistas: o roteiro inclui uma ala fantasiada de borrifadores de pesticida. A escola resistiu a pressões políticas. “Não mudamos uma vírgula, mesmo após os ataques do setor agrícola”, diz Wagner Araújo, vice-presidente financeiro da escola. A escola não conta com um único patrocinador para o desfile de 2017, um indicador sério da profundidade da recessão. Estatais como a Petrobras, histórica apoiadora do evento, deixaram de investir em escolas de samba. O crescimento do Carnaval de rua, sobretudo em São Paulo, divide o destino do dinheiro de grandes empresas. A festa das escolas de samba acontece de qualquer modo na Sapucaí e no Anhembi, mas com diferenças. Algumas, talvez, para melhor.

Se o roteiro se desenvolver de forma feliz, a falta de dinheiro ajudará a festa a se apoiar mais no entusiasmo genuíno e na criatividade de organizadores, foliões e comunidades envolvidas – fatores que ficaram um pouco esquecidos no período de crescimento econômico iniciado em meados da década passada, e que hoje é só uma saudosa lembrança. Em 2012, a Porto da Pedra, no Rio de Janeiro, chegou a ponto de compor um enredo para contar a história do iogurte. A Comissão de Frente representava lactobacilos, as bactérias que ajudam na digestão. Um tigre fofo, símbolo da escola, amamentava seus tigrinhos. A ideia não saiu das mentes de carnavalescos, mas de publicitários contratados pela Danone. Em 2013, a Vila Isabel levou à Avenida flores, em homenagem a produtores rurais num enredo pago pela Basf. Patrocinada pela Eletrobras, a Mangueira já envergonhou seus adeptos com o verso a energia do samba é o combustível do amor. Em 2015, a campeã Beija-Flor homenageou a Guiné Equatorial, governada sob a ditadura de Teodoro Obiang há quatro décadas, em troca de R$ 10 milhões. O dinheiro, segundo a escola, não veio do próprio governo de Obiang, mas sim de empreiteiras que tinham obras no país africano, como Queiroz Galvão e Odebrecht, ambas encurraladas pela Operação Lava Jato. Situações assim tiraram dos sambistas autonomia para compor e resultaram em enredos desanimadores.

Neste ano, vários enredos cariocas parecem vindos de desfiles do passado. A Beija-Flor conta o romance Iracema, de José de Alencar. A Portela falará dos rios, com direito a um protesto contra o desastre de Mariana. O Salgueiro narrará A divina comédia, de Dante. A criatividade deve compensar a falta de dinheiro.

>> Na crise, Odebrecht e governo estadual do Rio empurram as contas do Maracanã um para o outro

As grandes escolas de samba costumam depender de patrocínio para fechar as contas no azul e foram prejudicadas pelos tempos de crise econômica, com empresas e governos em contenção de despesas. “Sentimos uma disposição menor para investir, desde o ano passado”, diz Fábio Pavão, presidente do Conselho Deliberativo da Portela, escola carioca com mais títulos de campeã. “Se antes tínhamos cotas de patrocínio de cerca de R$ 500 mil, hoje elas ficam em torno de R$ 100 mil”, afirma.

Desfile da Vila Isabel em 2013,apoiado pela Basf,gigante do agronegócio.Este ano,ficou mais difícil conseguir esse tipo de patrocínio (Foto:  Sergio Moraes / Reuters)

Em São Paulo, nem as escolas que conseguiram algum tipo de apoio estão conseguindo fechar a conta. A Nenê de Vila Matilde, segunda mais vitoriosa da cidade, vai homenagear Curitiba em seu desfile de 2017. Tanto a escola quanto a prefeitura de Curitiba afirmam a ÉPOCA que não houve repasse de dinheiro público do município para a aquisição do samba-enredo. “A prefeitura ajudou na articulação com possíveis patrocinadores locais”, diz, em nota, a Secretaria de Turismo de Curitiba. Isso explica o apoio da Serra Verde Express, uma empresa de trens turísticos que opera em Curitiba, à Nenê. A prefeitura não paga diretamente à agremiação, mas faz lobby por ela.

>> O primeiro volume de "Uma história do samba" conta as origens do ritmo

Apesar disso, Rinaldo José Andrade, o Mantega, presidente da Nenê, diz que a poucos dias do desfile no Sambódromo ainda estava em busca de patrocínios para pagar a festa. O dirigente afirma que os preços dos insumos importados pela escola disparou – aí entram itens como colas e uma infinidade de peças de plástico, metal e madeira que vêm de países como a China e custam em dólar, moeda que ficou mais cara em relação ao real. E a inflação manteve-se acima de 8% ao ano até setembro. Mantega calcula que os gastos da equipe aumentaram mais de um terço em 2016 na comparação com 2015, enquanto as receitas diminuíram. O buraco nas contas vira dívida e a escola tem de se virar no resto do ano para levantar dinheiro, com feijoadas, festas e eventos, a fim de pagar o Carnaval que passou. Essa situação não se restringe à Nenê. A maior parte das escolas vive assim atualmente.

>> Petrobras reduz plano de investimento e independência dos executivos

Três receitas formam a base da arrecadação de uma escola de samba, que fica em torno de R$ 6,5 milhões para cada integrante do Grupo Especial no Rio de Janeiro em 2017: a venda dos direitos de transmissão para a TV, os repasses feitos pela prefeitura e a venda de ingressos para o desfile. No total, a prefeitura do Rio pretende destinar este ano, à organização do desfile do Grupo Especial, R$ 56 milhões, R$ 1,6 milhão a menos em relação ao ano passado (parte vai diretamente para cada uma das 12 escolas e parte para a organização e infra-estrutura do desfile). O preço da entrada está congelado há cinco anos, segundo a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) do Rio. A inflação corroeu o poder de compra desse dinheiro. “Acaba sendo a menor parcela, mesmo com o Sambódromo lotado”, diz Araújo, da Imperatriz.

Os patrocínios são incertos – tanto para conseguir quanto para receber depois de conseguir. “Assumimos o compromisso da parceria, contratual ou verbal, e damos andamento. Lançamos uma sinopse, os compositores fazem o samba, montamos protótipo, as fantasias e ferragem do carro”, diz o vice-presidente da Imperatriz. “Daí o parceiro vem e diz: infelizmente, não posso cumprir o acordado. Ou não fala nada. O que resta fazer? Seguir adiante. O Carnaval tem de acontecer.” 

Até pouco tempo atrás, a saída relativamente segura para as escolas era barganhar patrocínios estatais. A Petrobras desembolsou R$ 12 milhões por ano com eventos carnavalescos em 2014 e 2015. O Camarote da Cidade do desfile das escolas de samba de São Paulo também recebeu, em 2014, mais R$ 100 mil. O contexto mudou depois que a petroleira foi atingida pelos desdobramentos da Operação Lava Jato, que investiga o uso da estatal para contratar prestadores de serviço, com superfaturamento, em troca de propina a políticos e executivos. Pedro Parente, atual presidente da estatal, montou um plano de austeridade. Isso implica cortar gastos – e investimentos supérfluos, como o Carnaval, sumiram. A Petrobras ainda colocou R$ 2,4 milhões em 2016 no desfile do Rio. Agora, acabou. “Além de questões orçamentárias, a companhia está readequando sua carteira de projetos à luz de uma revisão de seus programas de patrocínio”, informa a empresa, em nota.

>> Sabrina Sato chega a gastar R$ 150 mil em fantasias de Carnaval

O financiamento estatal também ocorre por meio da Lei Rouanet, do Ministério da Cultura. A lei permite a empresas abaterem de impostos devidos ao governo o mesmo valor que investem em patrocínio cultural. Roberto Freire (PPS), ministro da Cultura, defende o uso do mecanismo para o Carnaval. “Os desfiles têm a expressão cultural brasileira. Não tem como você reconhecer o Brasil sem pensar nas escolas de samba”, disse Freire a ÉPOCA. “É uma expressão artístico-cultural, então cabe o incentivo que a Rouanet pode ofertar.” Mas os números mostram que o efeito da Rouanet nas agremiações é limitadíssimo.

ÉPOCA requisitou ao Ministério da Cultura os dados sobre as 20 escolas mais vezes vencedoras – as dez mais de São Paulo e as dez mais do Rio de Janeiro. Do total, 11 apresentaram ao órgão projetos de captação pela Lei Rouanet para a festa deste ano. Dessas, nove agremiações foram adiante no procedimento e conseguiram que seus projetos fossem  aprovados. O ministério permitiu a elas que recolhessem R$ 22,3 milhões com patrocinadores que, depois, poderiam abater esse valor de impostos. Mas, até 15 de fevereiro, apenas R$ 1,3 milhão, ou 6% do valor aprovado pelo ministério, foram captados, por apenas três das escolas – Mocidade Alegre, Rosas de Ouro e X-9 Paulistana, todas de São Paulo. Conseguiram aprovação do MinC mas não captaram nenhum patrocínio as seguintes escolas: Beija-Flor, Portela, Unidos da Tijuca e Vila Isabel, do Rio de Janeiro; e Nenê de Vila Matilde e Vai-Vai, de São Paulo.

>> Acidente no desfile da Unidos da Tijuca deixa feridos no Carnaval carioca  

>> Pezão diz não ter tempo para acompanhar desdobramentos da prisão de Eike Batista

Os desfiles nos Sambódromos também passaram a sofrer com a concorrência de patrocínios do Carnaval de rua, um fenômeno que se acentuou em 2017. A prefeitura de São Paulo recebeu 495 inscrições de blocos de rua em 2017, um aumento de 62% em relação a 2016. O número supera os 452 blocos registrados no Rio de Janeiro (que tem hoje 53 blocos a menos que em 2016). João Doria, eleito em primeiro turno na eleição de 2016 para governar a cidade, cortou parte do valor que o município gasta diretamente com a infraestrutura para o Carnaval, tanto com o Sambódromo quanto nas ruas. Enquanto seu antecessor Fernando Haddad gastou R$ 11,3 milhões em 2016 nessa rubrica, o novo prefeito baixou em 70% o valor, para R$ 3,5 milhões em 2017. Em paralelo, Doria abriu um chamamento público e contratou a Dream Factory, uma empresa de entretenimento, para captar patrocínios para o Carnaval. Boa parte ficou fora do Anhembi. A Skol, cerveja da Ambev, e a Caixa aderiram e vão bancar a infraestrutura para a festa na cidade, estimada pela prefeitura em R$ 15 milhões. Em troca, as empresas vão expor suas marcas em meio aos blocos carnavalescos.

O que o novo prefeito João Doria tem a ver com as finanças das escolas de samba do Rio? Tudo. A Ambev deixou de patrocinar o Carnaval carioca na Marquês da Sapucaí para investir nas ruas de São Paulo. A Caixa fez o mesmo movimento. O banco estatal investiu R$ 1,25 milhão em 2015 num patrocínio à Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo (LigaSP). Em 2017, mudou de direção e escolheu o Carnaval de rua paulistano. “As grandes marcas não deixaram de investir no Carnaval. Só passaram a usar o dinheiro de forma mais estratégica”, diz Antonio Carlos Morim, professor da pós-graduação na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) do Rio e especialista no setor de cervejas. “O folião está em mais canais, notadamente, nas ruas. Faz sentido espalhar o investimento.”

No caso do Rio, as escolas de samba ainda trabalham sob influência política dos bicheiros, o que vira um potencial complicador na hora de convencer patrocinadores. “Nem todas as empresas estão dispostas a associar sua marca à imagem de um bicheiro”, diz Aloy Jupiara, jurado do Estandarte de Ouro e autor do livro Os porões da contravenção (Record, 2015). Ele conta que a própria Liesa, que faz o regulamento e vende os ingressos, foi fundada por bicheiros. “As decisões atuais ainda passam pelo crivo deles”, diz. Anísio da Beija-Flor e Ailton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, são bicheiros que ganharam projeção por suas histórias nas escolas Beija-Flor e Vila Isabel, respectivamente. Eles chegaram a ser presos durante a Operação Furacão, da Polícia Federal, que desarticulou uma quadrilha especializada em comprar sentenças judiciais em favor da máfia dos bingos e dos caça-níqueis. Foram soltos após decisão do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Apesar de o contexto ser pior para as agremiações em 2017 do que foi em outros Carnavais, há quem se destaque por fazer mais com menos. A Unidos da Tijuca encontrou uma saída para, desde 2011, ter sempre patrocinadores nos desfiles. A escola criou o Departamento de Patrocínio e Marketing, que busca equilibrar sambas-enredos entre relevância cultural e viabilidade econômica. Antes de decidir o tema, a empresa faz pesquisas de opinião. Neste ano, o enredo sobre a influência do negro na música americana – com direito a uma ala com 150 homens e mulheres vestidos de Beyoncé – ajudou a atrair os aportes de empresas americanas, como Coca-Cola, a rede hoteleira Marriot e a companhia aérea Delta, além do apoio institucional do governo americano. “É uma grande bobagem a dicotomia entre patrocínio e liberdade autoral. É possível ter as duas coisas”, afirma Bruno Tenório, diretor de Patrocínio e Marketing da escola. Ainda que deixe o folião saudosista com o coração na mão, é um sinal de que, com profissionalismo, é possível tirar as escolas de samba dos prejuízos e das dívidas.








especiais