Eleições

Dilma x Aécio: A eleição que divide o Brasil

Dilma x Aécio: A eleição que divide o Brasil

A disputa presidencial é a mais virulenta dos últimos 25 anos. Os dois candidatos deveriam abandonar as agressões mútuas e lembrar que há um país a governar

FLÁVIA TAVARES, GUILHERME EVELIN E MARCELO BORTOLOTI COM ALBERTO BOMBIG, LEOPOLDO MATEUS, RODRIGO TURRER, RUAN DE SOUSA GABRIEL E TIAGO MALI
21/10/2014 - 15h04 - Atualizado 21/10/2014 15h04
A eleição que divide o Brasil (Foto: Adriana Spaca/Brazil Photo Press/Estadão  Conteúdo e Nelson Antoine/Frame/Folhapress)

É uma mudança histórica. O país irá às urnas no domingo, dia 26 de outubro, cindido ao meio entre eleitores da presidente Dilma Rousseff (PT) e do senador Aécio Neves (PSDB), na disputa mais virulenta dos últimos 25 anos. Nunca houve situação igual. Em 1989, na primeira eleição presidencial depois da redemocratização, a disputa entre Fernando Collor e Luiz Inácio Lula da Silva foi igualmente acirrada. Mas não havia a divisão geográfica, entre Norte e Sul, nem a socioeconômica, entre mais ricos e mais pobres, como há agora. Como agravante, os dois primeiros debates do segundo turno, na semana passada, entre Dilma e Aécio, descambaram para o território do vale-tudo, da violência verbal e da desqualificação do adversário, de uma forma como nunca fora registrada nas disputas presidenciais anteriores entre petistas e tucanos. No primeiro debate, na TV Bandeirantes, ao se referir ao escândalo de corrupção na Petrobras, Aécio falou em “mar de lama”, uma evocação, talvez involuntária, mas funesta, das denúncias de Carlos Lacerda que levaram ao suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 1954. No debate do SBT, Dilma insinuou que Aécio estava “drogado” ou “bêbado”, ao mencionar um episódio de 2011, em que, detido numa blitz de trânsito no Rio de Janeiro, ele se recusou a se submeter ao bafômetro.

O conflito é a essência da prática política. Numa democracia, a disputa pelo poder entre grupos concorrentes passa pelo debate de ideias antagônicas sobre como governar melhor. Mas tem também uma dimensão moral, que se resume na seguinte ideia: um lado está certo, o outro está errado. Essa dimensão moral da política é menos permeada pela razão que pelos sentimentos. Eles se manifestam, muitas vezes, como indignação, raiva e até ódio. Somados, viram intolerância. Quando a intolerância subjuga o argumento, resta apenas o bate-boca. Quando dois candidatos à Presidência da República se entregam a um bate-boca em que a disputa eleitoral vira uma competição para ver quem desqualifica mais o outro, há dois problemas. Primeiro, os líderes políticos deixam de exercer seu papel educador. Segundo, sobram como lastro da disputa política as mágoas e os ressentimentos. Eles explodiram como nunca nesta eleição. Têm desfeito sociedades, separado amigos e dividido famílias.

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O advogado Rodrigo Forlani, de 32 anos, passou boa parte da infância e adolescência em São Paulo com a prima de primeiro grau Fernanda. Os dois têm apenas três anos de diferença de idade. Suas famílias chegaram a morar no mesmo prédio, no bairro da Aclimação, em São Paulo, período em que a cumplicidade entre eles resvalava naquela inconsequência deliciosa da meninice. “Ela cabulava as aulas de inglês e se escondia na minha casa”, diz Rodrigo. Ao rememorar a relação com a prima, a nostalgia logo cede lugar à mágoa. “Como é que essa pessoa faz isso comigo hoje?” Rodrigo se refere à briga que tiveram dias antes do primeiro turno da eleição. Bastou ambos terem diferentes posições políticas. E, sobretudo, não saberem lidar com essa diferença.
 

rodrigo forlani (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
rodrigo forlani - VOTA EM DILMA
32 anos, advogado
O advogado Rodrigo Forlani, de São Paulo, brigou com a prima Fernanda, que mora em Londres, depois de ter declarado preferência por Dilma. Os dois cresceram juntos. Rodrigo diz que, por causa da discussão, cogita não ir, neste ano, ao jantar de Natal da família, anti-PT. Ele diz sentir o mesmo isolamento de quando assumiu ser homossexual. “Votar no PT é a nova aberração do momento. Pelo menos em São Paulo é assim”, diz ele

Depois de concluir a faculdade, Fernanda se mudou para Londres, onde construiu sua família e vive até hoje. Os dois continuaram a se falar pelas redes sociais e se encontravam todo ano nas festas de Natal e Réveillon. Neste Natal, deverá ser diferente. “Considero seriamente não participar do Natal em família desta vez”, diz Rodrigo. A briga começou quando Rodrigo defendeu uma conhecida de ambos no Facebook. A garota declarara voto em Dilma Rousseff. Justificara sua escolha com notícias sobre a redução da miséria e o aumento da distribuição de renda nos governos petistas. Foi achincalhada nos comentários. Rodrigo interveio, e Fernanda não se conteve. Chamou Rodrigo para uma conversa virtual privada.

“Não acredito que você vai votar no PT, achando que será a solução da desigualdade social. Sério, primo, você é inteligente demais para fazer isso. Sorry, mas seus comentários são medíocres”, disse Fernanda. Rodrigo respondeu que a prima ofendia sua inteligência e sua liberdade de fazer escolhas. “Hitler também conseguiu ‘brain wash a lot of blind people’”, respondeu Fernanda. (“Hitler também conseguiu fazer lavagem cerebral em muitas pessoas cegas”, em tradução livre). Por fim, Fernanda ainda sugeriu que talvez Rodrigo nem sequer fosse da família Forlani. Ele se indignou. “É um absurdo questionar até minha origem... A pior consequência é que o Natal está chegando, e não sei como será. Todo mundo vai se doer por causa dessa briga, vai tomar o partido dela. Ninguém entende minha posição”, diz Rodrigo. A família dele vota em Aécio – ou melhor, quer se ver livre de Dilma.

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Depois do episódio com a prima, Rodrigo escreveu um pequeno texto também no Facebook no dia do primeiro turno. Levou dois dias ruminando o ocorrido e, então, desabafou publicamente. “Uma coisa é debater de forma saudável e produtiva, pois demonstra o interesse de todos pela política. Outra coisa é impor que todos pensem como você, usando argumentos baixos, com agressões gratuitas e desproporcionais. Isso tem nome: intolerância política.” Ao tentar destrinchar o que teme que aconteça no fim do ano, Rodrigo só encontrou um termo de comparação. “É como aconteceu anos atrás, quando minha família descobriu que sou gay. Votar no PT é a nova aberração do momento. Pelo menos, aqui em São Paulo é assim.” Rodrigo lembra que assumiu sua homossexualidade para os parentes quando tinha 19 anos. Sua mãe ficou um ano sem falar com ele. Num encontro familiar em que mãe e filho ainda estavam rompidos, os demais familiares demonstravam dó. “Eles sentiam pena de mim. Hoje, sou uma voz dissonante. Estou sozinho. É um sentimento de solidão, como foi naquela ocasião”, diz Rodrigo. Procurada por ÉPOCA, Fernanda ficou indignada ao saber que o primo relatara a discussão que tiveram. “É um absurdo ele expor nossas divergências políticas dessa maneira. Ele se diz ofendido, talvez com razão, pela forma como coloquei minha opinião, mas também fui ofendida e chamada de classista com ‘papo de elite’”, disse Fernanda, por e-mail.
 

As divisões do Brasil  (Foto: Época)

Por que atingimos tal ponto, em que a intolerância política pode desintegrar um laço afetivo? Nos Estados Unidos, onde o conflito entre republicanos e democratas é radical, e a polarização política ainda mais profunda que a brasileira, o professor de psicologia social Jonathan Haidt, da Universidade de Nova York, publicou sobre o tema o livro The righteous mind – Why good people are divided by politics and religion (numa tradução livre, A mente justa – Por que boas pessoas são separadas pela política e pela religião). Segundo Haidt, é da natureza humana a necessidade de formar grupos, tribos. Seres humanos se unem em torno de uma ideia ou de uma necessidade comum. Quando se sentem ameaçados por uma ideia ou necessidade contrária, não costumam reagir civilizadamente, de modo racional e sereno. Reagem com os instintos de defesa, com o chuço da moralidade – a verdade dos fatos pouco importa nesse contexto. Deixamos de reconhecer nosso interlocutor, por mais querido que seja, como uma pessoa. Vira um inimigo. “Formar grupos é socialmente saudável. Mas, quando o outro lado não é adversário, mas inimigo, os fins passam a justificar os meios, você pode fazer qualquer coisa para derrotá-lo”, diz Haidt.

Encontrar um meio-termo, um ponto de concordância, torna-se impossível. O diálogo se dá entre surdos. Na verdade, não há diálogo: há gritaria. A tendência, então, é demonizar o outro e suas ideias. Ao fim, temos o impulso de nos aproximar apenas de nossos iguais, de nos isolar do convívio de quem pensa e vive diferente. Só temos contato com outros pontos de vista pela internet – ambiente em que proliferam mentiras e visões distorcidas da realidade. “A sociedade está cada vez mais dividida, até geograficamente. Ricos vivem próximos e convivem apenas com ricos. As pessoas escolheram se segregar umas das outras e, assim, perdem a oportunidade de se expor a outras ideias e pessoas de quem elas poderiam gostar e que poderiam respeitar”, diz Haidt, no livro.
 

Os Estados que poderão decidir a eleição (Foto: Época)

A individualização, em detrimento da vida coletiva, é uma característica de nossa era, em que a conversação pública se faz cada vez mais por meio das redes sociais e da internet. O confronto entre Rodrigo e sua prima foi virtual, assim como muitos outros dos dias de hoje. Nas redes, a comunicação é rápida, feita na base do impulso, não da reflexão. Isso favorece que se destilem os instintos mais primitivos. O mineiro Pedro Alvarenga, de 21 anos, estudante de cinema no Rio de Janeiro, sentiu esse lado negativo das redes na disputa eleitoral. “A rede social é muito imediata, as pessoas não pensam antes de postar qualquer coisa, apenas reproduzem um discurso de ódio ou preconceito”, diz. Por causa de comentários políticos radicais ou preconceituosos com nordestinos, ele excluiu oito amigos de seu Facebook. “Se não aceito na minha relação amigos com esse tipo de comportamento, também não aceitarei virtualmente”, diz.

Num país como o Brasil, com grandes desigualdades sociais, vida comunitária débil, graves problemas na educação e um histórico de debates políticos pouco elevados, o efeito deletério do discurso empobrecido das redes sociais pode ser ainda maior que em países em estágio civilizatório mais avançado. Estrela da internet, o ator, escritor e roteirista Gregório Duvivier, de 28 anos, um dos fundadores do site Porta dos Fundos e colunista da Folha de S.Paulo, teve uma pequena prova disso, dias depois de ter publicado um texto em que declarou voto em Dilma. Na quarta-feira passada, ele foi abordado pelo frequentador de um restaurante no Leblon, bairro do Rio de Janeiro onde mora. O homem o chamou de “esquerda caviar” e disse que iria embora para não agredi-lo. “Sempre tratamos de temas polêmicos no Porta dos Fundos, mas nunca vi esse tipo de reação raivosa. Já tive processo, xingamento, mas ameaça de agressão física é a primeira vez”, diz Duvivier. “Existe uma falta de costume em lidar com a democracia no Brasil, não estamos acostumados a ouvir a opinião do outro.” Depois de Duvivier ter divulgado na internet a ameaça de agressão, o ator Dado Dolabella, também pela internet, o xingou de “marginal”.
 

gregório duvivier  (Foto: Daryan Dornelles/ Ed. Globo)
gregório duvivier - Vota em Dilma
28 anos, ator, escritor e roteirista
Estrela do site Porta dos Fundos, Duvivier sofreu uma ameaça de agressão física num restaurante do Rio de Janeiro, depois de escrever um texto em que declarou voto em Dilma. “Já sofri processo, xingamento, mas nunca vi esse tipo de reação raivosa”, diz ele

Claro que o fenômeno é apartidário. A intolerância também se volta contra partidários de Aécio. O campus da PUC do Rio de Janeiro virou o palco de um embate acirrado, em que os estudantes a favor de Aécio passaram a ser alvo de xingamentos de colegas com preferências pelo PT. “Quando estamos panfletando, sempre chega algum aluno para nos chamar de coxinhas e dizer que tem nojo da elite burguesa”, diz o estudante de Direito Pedro Duarte Junior, de 23 anos, eleitor de Aécio. Para ele, manifestantes de esquerda, que sempre tiveram hegemonia dentro da universidade, não aceitam que seu espaço seja dividido com outro grupo. Os estudantes pró-Aécio da PUC do Rio convocaram, via Facebook, um ato de manifestação a favor dele, em que todos os simpatizantes irão à faculdade vestidos de azul. O evento obteve a adesão de mais de 1.000 pessoas. Todos confirmaram a participação pelo Facebook. Incomodados com a repercussão do movimento, os adeptos de Dilma marcaram para o mesmo dia uma manifestação pró-PT, em que devem ir vestidos de vermelho. Mais de 500 confirmaram. Embora tenha havido um acordo para evitar baderna, o receio agora é que os dois eventos terminem em conflito. “Agora, os dois lados têm chance de ganhar, e ninguém quer recuar nem um pouco”, diz Pedro.

pedro duarte (Foto: Stefano Martini/ÉPOCA)
pedro duarte - VOTA EM AÉCIO
23 anos, estudante de direito
Pedro passou a ser alvo de ofensas no campus da PUC do Rio de Janeiro, depois de organizar um evento de apoio à candidatura do PSDB. Para ele, a esquerda não aceita perder a hegemonia de que sempre gozou na universidade. “Agora, os dois lados têm chance de ganhar, e ninguém recua nem um pouco”, afirma

A política de confrontação pode ser suficiente para ganhar uma eleição. Mas enfraquece o país como um todo. Bem ao lado do Brasil, a Argentina nos oferece um exemplo de como a polarização política radical pode ajudar a levar um país à ruína econômica, depois de ter sido uma das nações mais ricas do mundo no início do século XX. A polarização foi uma herança deixada pelo líder populista Juan Domingo Perón, que governou o país entre 1946 e 1955 e de 1973 a 1974. Perón dividiu o país entre os pobres, seus seguidores, e uma elite, que passou a ser acusada de ser “antipovo”. Essa divisão política perdura até hoje (leia mais no quadro abaixo). Autor de um livro de história política comparada do Brasil e da Argentina, o historiador Boris Fausto vê hoje algumas aproximações assustadoras entre Brasil e Argentina. “Depois da redemocratização do país, havia um consenso básico no Brasil, sobre como os problemas deveriam ser enfrentados, com alternância de poder”, diz Fausto, amigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Esse cenário hoje mudou. Há uma luta frontal, em que o adversário passou a ser tratado como um inimigo ou um monstro neoliberal.”

Os efeitos nocivos da polarização (Foto: AP, AFP, Reuters (2))

Felizmente, diz Fausto, há muitas diferenças também entre Argentina e Brasil. Temos uma sociedade mais diversificada e heterogênea que os “hermanos”. Depois de quase três décadas da Constituição de 1988, o país se dotou de uma estrutura institucional sólida. Ela permite que as diferenças sejam dirimidas democraticamente. Nossos líderes políticos que poderiam ser acusados de populismo, como Getúlio Vargas ou Lula, tiveram um perfil mais conciliador do que Perón. Mesmo nos momentos de exacerbação política da nossa história, como no conflito entre getulistas e antigetulistas ou no período pós-1964, nós, brasileiros, com nossas raízes lusitanas, africanas e indígenas, tendemos a ser menos briguentos que os argentinos, ítalo-espanhóis de sangue quente.

william vorhees (Foto: Stefano Martini/ÉPOCA)
william vorhees - Turma do “deixa-disso”
50 anos, preparador físico
Vorhees é frequentador de uma turma de artistas e esportistas que se reúnem na Praia do Arpoador, no Rio. Para evitar conflitos na praia e no botequim, eles baixaram uma norma: não discutir política nesses encontros. “As discussões políticas na internet se tornaram um veneno. As pessoas foram longe demais”, diz Vorhees

Por causa disso, nesta reta final, tanto Dilma quanto Aécio deveriam se mirar na malemolência do carioca William Vorhees, preparador físico de 50 anos. Ele percebeu o aumento de hostilidade entre amigos que há décadas frequentam a mesma praia no Rio de Janeiro. As discussões políticas que começavam nas redes sociais se transformavam em bate-boca na areia. “Sempre convivemos com ideias de direita e de esquerda. O que era para ser uma discussão democrática foi virando uma coisa autoritária. Por causa das brigas, muitas amizades estavam se desfazendo”, diz. Para evitar conflitos maiores, a turma formada por artistas, esportistas e frequentadores da Praia do Arpoador, na Zona Sul do Rio, estabeleceu como norma a proibição de falar sobre política no grupo. “As discussões políticas na internet se tornaram um veneno. Nesta eleição, foi muito forte. As pessoas foram longe demais”, diz William. “Até o botequim aonde íamos depois da praia começou a perder movimento. Decidimos que ninguém fala mais de política ali.” É um bom exemplo para Dilma e Aécio. Eles devem lembrar que, depois de abertas as urnas, ainda existirá um país para governar.








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