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Cultura Música

Aos 70, Joyce regrava seu primeiro disco, de 1968, e declara: 'Sou uma compositora sem estilo’

Combativa desde os anos 1980, cantora acha ‘criminosa’ a omissão da autoria de músicas na internet hoje
Joyce Moreno, em estúdio para regravar disco de 1968 Foto: Bárbara Lopes / Agência O Globo
Joyce Moreno, em estúdio para regravar disco de 1968 Foto: Bárbara Lopes / Agência O Globo

RIO — Joyce Moreno fez 70 anos, mas ninguém diz. Não só na aparência, muito favorecida por um jeito displicente, tranquilo e decidido, mas também no entusiasmo com que vive sua história. Uma história de 50 anos de música e de algumas lutas, mas ganhas.

Em 1983, foi banida pelas gravadoras por ter processado uma delas. O disco independente que gravou como alternativa abriu uma porta que a tornou presença permanente em shows no Japão nos últimos 30 anos.

Feminina e feminista “à brasileira”, Joyce está casada há 40 anos com o baterista Tutty Moreno. As quatro filhas (duas dela, uma dele e uma dos dois), assim como os netos, mexem quase todos com música. Algumas comemorações de aniversário já aconteceram, como o depoimento no Museu da Imagem e do Som. Já o livro de memórias, “Fotografei você na minha Rolleiflex”, ganha reedição aumentada, volumoso como um “álbum duplo” e com um acréscimo no título: “Remix”. Seu show com Alfredo Del-Penho, interpretando Sidney Miller, vai sair em CD. E o seu primeiro disco, “Joyce”, de 1968, será todo regravado por uma cantora melhor: ela mesma.

Por que regravar hoje um disco lançado em 1968?

Em primeiro lugar, acho a que as canções não perderam o prazo de validade: são tão boas hoje quanto há 50 anos. A cantora é que é diferente. Aquela, jovem, começando, tinha muito a aprender. Naquele tempo, mulher compositora era coisa rara. Por isso, houve um consenso: metade do disco seria de músicas minhas, metade de convidados: Francis Hime, Marcos Valle, Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Toninho Horta e Jards Macalé. Uma geração abençoada produzindo até hoje. Alguns vão participar do disco comigo.

“Fico injuriada quando dizem que o Brasil é só samba e futebol. Músicos como Tom Jobim são, como diz Caetano, os que velam pela alegria do mundo. No momento que vivemos hoje, é muito importante”

Joyce
Cantora e compositora

Sobre os que cantam e fazem a música da moda. Gosta deles?

Não posso elogiar nem malhar. Eles não estão no meu horizonte. Recebo muita coisa de artistas novos que fazem a música que eu faço. São ótimos, mas não estão na mídia. Em Belo Horizonte, em Recife, em São Paulo, no Rio, em todos estes lugares há cenas espetaculares. Meu tempo, como compositora e cantora, é pouco. Por isso, tenho que escolher muito o que vou ouvir.

Você se sente melhor compondo ou cantando?

Compor, cantar, tocar violão, tudo isso são ferramentas. Uso essas ferramentas pra me expressar. O objetivo é servir à música. Não é pra ganhar dinheiro, pra ficar famosa. Há o efeito colateral disso, que é fazer feliz a quem me ouve. Acho muito legal dar alegria pras pessoas. Na Finlândia me disseram: “Quando saio muito cedo para trabalhar o sol ainda não apareceu, boto seu disco pra tocar e me sinto melhor.” Na Inglaterra, um casalzinho investiu num hotel, perdeu quase tudo e veio me dizer que minha música os fez menos tristes. E não falo só de mim. Veja Tom Jobim. Daqui a séculos as pessoas ainda se sentirão mais felizes ouvindo sua música.

A música de Tom é a que melhor representa o Brasil?

Fico injuriada quando dizem que o Brasil é só samba e futebol. Músicos como Tom Jobim são, como diz Caetano, os que velam pela alegria do mundo. No momento que vivemos hoje, é muito importante.

Você acredita, mesmo, que essa música vai permanecer?

Sim, como um clássico. Como o jazz e o cancioneiro americano, George Gershwin, Cole Porter e os que vieram depois. Veja Bach, Mozart. Quando começaram, não eram clássicos. O tempo os transformou em clássicos. É no cancioneiro brasileiro do século XX, no americano, no da América espanhola, principalmente em Cuba, que estão os clássicos que permanecerão.

Lá nos EUA, todas as novidades são bem vindas, mas Gershwin e Porter nunca perdem seu lugar. Por quê?

É o que Villa-Lobos já dizia nos anos 30, 40: a educação musical é indispensável. Tentei fazer isso por aqui por três temporadas, no programa da MultiRio “Os pequenos notáveis”, que criei e apresentava com Alfredo Del-Penho, que contava para crianças a história de nossos compositores, o pequeno Pixinguinha, o pequeno Noel, a pequena Dona Ivone, a pequena Dolores...

“Com a substituição do CD por novas mídias estamos assistindo a uma mudança na civilização. A propósito, um dos problemas das novas mídias da música é a criminosa omissão dos nomes dos compositores. Já nos pagam muito pouco e, ainda por cima, nos escondem”

Joyce
Cantora e compositora

E o que o jazz significa para você?

Significa muito. Assim como a bossa nova significou e, antes dela, Noel, Garoto. Tudo isso é música de formação. Sou filha da bossa nova e neta de Ismael Silva e do samba dos anos 30. As pessoas costuma me associar a este ou aquele tipo de música, bossa nova, Clube da Esquina, jazz, música minha saindo lá fora numa coletânea da Tropicália. Millôr Fernandes, um dos meus primeiros incentivadores, brincou um dia que era “um escritor sem estilo”. Acho que eu sou uma compositora sem estilo.

E sua longa relação com o Japão?

O Japão é praticamente a casa, a família. São mais de três décadas trabalhando lá, direto. Minha ligação com os japoneses é um mistério, como todas as ligações. Não sei explicar a simpatia deles pela minha música. Eu estava num momento muito difícil aqui no Brasil. Entre 1982 e 83, fui praticamente banida de nossas gravadoras.

Banimento não seria um termo forte?

Não, foi exatamente o que aconteceu. Depois do sucesso de “Clareana”, “Feminina” e outras canções minhas, nenhuma gravadora me queria. Soube depois o porquê: eu havia processado a Odeon por ter, sem minha autorização, usado arranjos e vocais de apoio de meu disco como playback de outra cantora. Diante disso, fiz um disco independente, “Tardes cariocas”, que foi parar no Japão. Os japoneses adoraram e fui convidada a participar do Festival Yamaha em 1985. Desde então, se há coisa certa em minha vida, é que todo ano tenho de voltar ao Japão.

Quando você começou, as relações artista-gravadora eram outras. Como é que uma jovem cantora grava um disco hoje?

Sei que o meu caso é especial. Há uma demanda pelos meus discos não só no Japão, mas também na Europa e nos EUA. Por isso, gravo muito. Para uma cantora jovem do tipo de música que eu faço, é muito difícil.

E o fim do CD?

Com a substituição do CD por novas mídias estamos assistindo a uma mudança na civilização. A propósito, um dos problemas das novas mídias da música é a criminosa omissão dos nomes dos compositores. Já nos pagam muito pouco e, ainda por cima, nos escondem.