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Política

Pensões de filhas de militares superam R$ 5 bilhões

Benefício para maiores de idade foi extinto em 2000, mas Exército afirma que ele será pago pelo menos até 2060
Sede do Comando Militar do Leste Foto: Renee Rocha / Agência O Globo
Sede do Comando Militar do Leste Foto: Renee Rocha / Agência O Globo

BRASÍLIA — Em tempos de rombo nas contas públicas e intensos debates sobre a necessidade de uma reforma na Previdência , as Forças Armadas ainda resistem em apresentar dados detalhados sobre um dos benefícios mais polêmicos: as pensões pagas às filhas de militares mortos, muitas delas casadas e em idade produtiva. As poucas informações disponíveis mostram um gasto superior a R$ 5 bilhões por ano, mais do que toda a receita previdenciária das três forças em 2017. Embora o benefício tenha sido extinto no fim de 2000, ele ainda poderá ser pago nas décadas seguintes. O Exército estima que, pelo menos até 2060, haverá filhas de militares com direito a pensão. Hoje, elas somam mais de 110 mil.

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O GLOBO tenta desde fevereiro do ano passado, via Lei de Acesso à Informação, obter a relação das pensionistas e outros detalhes, como valor, data em que o benefício foi concedido e data de nascimento da beneficiária. Mas tanto o Ministério da Defesa quanto as Forças Armadas vêm alegando diferentes razões para negar os pedidos, que vão da intimidade das pensionistas às dificuldades técnicas de levantar o material.

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Apenas a Aeronáutica repassou dados, ainda assim, parciais. Sem listar os nomes das pensionistas, informou que o benefício é pago a mais de 20 mil mulheres, das quais 11.178 são casadas e 8.892 são solteiras. Além disso, 64 acumulam mais de uma pensão. É o caso por exemplo de quem, além de filha, é viúva de militar.

Exército e Marinha não informaram dado algum. Posteriormente, por meio da assessoria de imprensa, repassaram informações gerais. Segundo a Marinha, há 22.829 pensionistas filhas de militares, das quais 10.780 são casadas e 12.049 solteiras. Do total, 345 recebem mais de uma pensão. Mas, assim como a Aeronáutica, não divulgou valores. Já o Exército afirmou ter gasto R$ 407,1 milhões em abril com pensões de 67.625 filhas de militares, o que dá mais de R$ 5 bilhões por ano. Todas as receitas previdenciárias das três forças ao longo de 2017 — destinadas ao pagamento desse e de outros benefícios — ficaram em R$ 3,342 bilhões.

O primeiro pedido do GLOBO pela Lei de Acesso foi feito em fevereiro de 2017 ao Ministério da Defesa. Em março, a pasta alegou que a relação nominal era uma informação pessoal relativa à “intimidade, vida privada, honra e imagem”, havendo necessidade de consentimento das pensionistas. Após recurso do GLOBO, comunicou em abril que o Portal da Transparência, no qual são divulgadas informações sem a necessidade de solicitação de um cidadão, tem apenas dados do pessoal da ativa; não das pensionistas. Mas não disse que a legislação não proíbe a divulgação dessas informações quando pedidas. Também alegou que os dados solicitados não estão reunidos em nenhum relatório da pasta, requerendo a produção de um levantamento.

Dias depois, em resposta a novo recurso, o Ministério da Defesa informou que não é obrigado a atender pedidos “que exijam trabalhos adicionais de análise, interpretação ou consolidação de dados e informações, ou serviço de produção ou tratamento de dados que não seja de competência do órgão ou entidade”. O GLOBO recorreu de novo, desta vez à Controladoria Geral da União, que refutou o argumento de que o pedido viola a intimidade das pensionistas. Mas negou o recurso por outro motivo: as informações teriam que ser solicitadas a cada uma das três Forças Armadas. Assim, em dezembro, foram feitos três pedidos separadamente. Todas as forças alegaram dificuldades técnicas para levantar os dados, e a Aeronáutica também usou o argumento da intimidade das pensionistas.

Quantas são as pensionistas filhas de militares
12.049
solteiras
10.780
casadas
8.892
solteiras
11.078
casadas
67.625
22.829
20.070
Marinha
Aeronáutica
Exército
(não distingue solteiras e casadas)
Acúmulo de pensões
(uma mesma mulher que é filha e viúva de militar)
345
Recebem mais de uma pensão da Marinha
Recebem mais de uma pensão da Aeronáutica
64
*Exército não informou dados
Valores
R$ 407,1 milhões
R$ 41,026 bilhões
R$ 3,342 bilhões
gastos pelo Exército no mês de abril com pensões de filhas de militares, o que dá mais de R$ 5 bilhões por ano (Marinha e Aeronáutica não informaram valores, mas mais da metade das pensionistas estão concentradas no Exército)
despesa das Forças Armadas com previdência em 2017 (inclui também outros benefícios, como aposentadorias e pensões por viuvez)
receita previdenciária das Forças Armadas em 2017
R$ 37,684 bilhões
déficit previdenciário das Forças Armadas em 2017
Quantas são as pensionistas filhas de militares
Não distingue
solteiras
e casadas
Exército*
67.625
Marinha
10.780 são casadas
12.049 são solteiras
22.829
Aeronáutica
11.178 casadas
8.892 solteiras
20.070
*não distingue solteiras e casadas
Acúmulo de pensões
(uma mesma mulher que é filha e viúva de militar)
recebem mais de uma
pensão da Marinha
345
recebem mais de uma
pensão da Aeronáutica
64
*Exército não informou dados
Valores
R$ 407,1 milhões
gastos pelo Exército no mês de abril com pensões de filhas de militares, o que dá mais de R$ 5 bilhões por ano (Marinha e Aeronáutica não informaram valores, mas mais da metade das pensionistas estão concentradas no Exército)
R$ 41,026 bilhões
despesa das Forças Armadas com previdência em 2017 (inclui também outros benefícios, como aposentadorias e pensões por viuvez)
R$ 3,342 bilhões
receita previdenciária das Forças Armadas em 2017
R$ 37,684 bilhões
déficit previdenciário das Forças Armadas em 2017

O economista Gil Castello Branco, da organização não governamental Associação Contas Abertas, criticou as justificativas do Ministério da Defesa e das Forças Armadas:

— Qual seria a diferença de não haver violação (da intimidade) na divulgação dos salários e haver na divulgação dos pensionistas? Em ambos os casos são recursos públicos, dos impostos, taxas, e tem que haver absoluta transparência. Essa justificativa é descabida — afirmou Castello Branco. — Essas informações tinham que ser claras. Até porque o valor é significativo hoje em dia dentro do orçamento da União. O país tem um rombo fiscal previsto para este ano de R$ 159 bilhões.

A concessão do benefício passou por várias fases. Uma lei de 1960 permitia a pensão “aos filhos de qualquer condição, exclusive os maiores do sexo masculino”. Em outras palavras, podia até ser casada. Em 1991, a lei foi modificada e passou a permitir apenas filhas solteiras. Mas, em 1993, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou essa alteração inconstitucional, e as casadas voltaram a ter o benefício. No fim de 2000, a lei foi mudada novamente extinguindo o benefício a partir daquele ano. A pensão só poderia ser paga a filhos ou enteados até os 21 anos ou até 24, se estudantes universitários. Mas um militar que entrou em uma das Forças Armadas em 2000 ou antes ainda poderá garantir esse benefício à sua filha quando morrer, mesmo que isso ocorra somente daqui a algumas décadas, desde que pague uma contribuição adicional de 1,5%.

DÉFICIT DA PREVIDÊNCIA

Assim, segundo o Exército, em 2060 ainda haverá pagamento de pensões a filhas de militares. Ainda de acordo com a instituição, entre 2010 e 2016, houve uma redução de 15,6% nos valores com pensão militar. Se incluídos todos os gastos previdenciários — inclusive aposentadorias — de Exército, Marinha e Aeronáutica, a despesa total de 2017 foi de R$ 41,026 bilhões. Como a receita foi bem menor, o déficit chegou a R$ 37,684 bilhões, com a diferença sendo coberta pelo Tesouro. Proporcionalmente, é um rombo maior do que entre os servidores civis federais e muito acima do que o registrado entre os trabalhadores atendidos pelo INSS.

O economista Paulo Taffner, especialista em Previdência, destaca que os problemas na previdência não são exclusivos dos militares. Ele avalia que a alíquota adicional de 1,5% exigida de quem entrou numa das três forças até 2000 para que o benefício seja pago futuramente às suas filhas é baixo e deveria aumentar, tanto para militares quanto para civis.

— Não tudo de uma vez, mas um aumento progressivo — diz Taffner, que também critica o acúmulo de pensões: — Isso é uma disfunção do nosso sistema previdenciário. O Brasil é o único país do mundo que permite acúmulo de benefício.

O GLOBO perguntou às três forças, via assessorias de imprensa, sobre a possibilidade de mudar a lei para impedir o pagamento de benefícios às filhas de quem ingressou na carreira militar até 2000, mas ainda está vivo. Apenas o Exército se manifestou: “É um processo que se encontra em fase de transição, como ocorreu com outras carreiras, mas cuja tendência é a diminuição progressiva até que não haja mais pagamento de novas pensões para as filhas maiores. Nesse passo, com espeque (apoio) nos princípios republicanos da legalidade e do direito adquirido, é incontroverso que as concessões de pensões militares são processadas à luz do regime jurídico vigente.”