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Paulo Mendes Campos

Paulo Mendes Campos, na capicua 69-96, onde o amor começa

"O resto da vida é aprendizado intensivo para o anonimato, o olvido", Paulo Mendes Campos, aos 60 anos, referindo-se à sua estréia como poeta, em Belo Horizonte, aos 18, aclamado pela crítica. (*) 

PMC

A frase, honesta demais, amarga, é uma espécie de premonição. PMC até hoje não tem o reconhecimento devido. Dia 28 de fevereiro é o aniversário deste poeta e cronista belorizontino que repousa no Cemitério do Bonfim, na capital mineira, em túmulo modesto e pouco frequentado. Nasceu ha 96 anos. E morreu cedo, aos 69. 

E inspirado nesta capicua, 96-69, onde mesmo o inverso é carregado de melancolia e sarcasmo, tomei a liberdade (ou transgressão) poética de aplicar o contrário em um de seus poemas em prosa mais bonitos, "O Amor Acaba”, que é uma peça imperativa de beleza, de achados bem colocados e incomuns. Mas porque logo o amor que acaba? Sempre me perguntava após cada uma das mil vezes que já o li. Por que tanta e imensa tristeza, agasalhada de trágica beleza? Como ficaria o poema caso o amor, ao invés de acabar, começasse? Ou a beleza está reservada para a tristeza, como dizia o amigo de Paulo, Vinícius de Moraes? Publico, em seguida, o poema original. Leiam e comparem. Será que o inverso guarda a mesma beleza? Vamos lá: 

O Amor Começa 

O amor começa. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; começa em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde iniciou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e começa o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha começado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e começa o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes começa o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode começar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode começar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor começa na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e começa; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor começa; uma carta que chegou antes, e o amor começa; na descontrolada fantasia da libido; às vezes começa na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes começa em ouro e diamante, dispersado entre astros; e começa nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e começa no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e começa depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não começa e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor começa como se fora melhor nunca ter existido; mas pode começar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e começa o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor começa; a qualquer hora o amor começa; por qualquer motivo o amor começa; para acabar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor começa.

Aqui, o original, “O Amor Acaba”

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

(*) Extraído do livro ”O Desatino da Rapaziada", de Humberto Werneck. 

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