A uma semana do início oficial da Rio 2016, uma novela relacionada
aos Jogos chegava ao fim. E o caso não envolvia Neymar, Bolt, Marta ou a
vinda de algum atleta russo. Havia uma vila, polêmica também, mas não
era a dos atletas. Era a entrega das casas dos moradores que lutaram
para permanecer na Vila Autódromo.
Jornalistas
da Alemanha, EUA e Argentina se juntaram aos brasileiros para cobrir,
nesta sexta-feira, a entrega das chaves às 20 famílias que permaneceram
na comunidade, vizinha ao Parque Olímpico. Foram eles que rejeitaram
ofertas de realocação e indenização da Prefeitura do Rio de Janeiro para
deixar o local. Eram mais de 800 famílias morando às margens da Lagoa
de Jacarepaguá. Tirando as 20 famílias que resistiram, o restante fez
acordo e recebeu indenização ou um apartamento no Parque Carioca, um condomínio popular do programa "Minha Casa, Minha Vida", a cerca de um quilômetro dali
Agora,
a Vila Autódromo mudou de tamanho: são duas calçadas e uma
igreja. À sua volta, onde antes haviam centenas de casas, sobrados e puxadinhos, foram abertos acessos ao Parque Olímpico,
considerado o "centro nervoso" dos Jogos. Após
o término da demolição das antigas casas e da retirada dos contêineres que abrigavam os moradores durante a transição, o local servirá como estacionamento durante
a Olimpíada. Numa segunda fase do projeto de reurbanização da
comunidade, após os Jogos, serão construídas ali duas escolas (com o
desmonte da arena do handebol), um centro comunitário e uma quadra
esportiva.
Abrir a porta de casa para aqueles
moradores tinha gosto de conquistar uma medalha, ainda que ficasse
também a tristeza pelos amigos e parentes que tiveram de deixar a
comunidade, por escolha própria ou pressão. Mas também transparece
orgulho pelos anos de confrontos com o poder público para garantir a
permanência.
- Essa casa tem o sabor da
vitória. Nosso direito de ficar foi respeitado, e nós brigamos pelo
nosso respeito o tempo todo para que isso acontecesse. É uma nova
história, a vida segue e a luta continua. Essa vitória não é só nossa, é
de todo o Rio de Janeiro e de todos que partilharam nosso sofrimento,
nossas tristezas e nossas alegrias também - disse Maria da Penha, 51
anos, moradora da Vila há 22, que virou símbolo da resistência
comunitária após ter o nariz quebrado ao tentar impedir a demolição de
uma casa no ano passado.
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As 20 casas, com aproximadamente 60
metros quadrados cada, dois quartos, sala, cozinha, banheiro e espaço
externo para garagem e quintal, não se comparam ao luxo encontrado na
Vila dos Atletas, a poucos quilômetros de distância. Mesmo mais simples,
também foram entregues com defeitos de acabamento. Algumas casas tinham
a laje selada, com pequenas "barrigas". Outras tinham ainda pedaços de
ferragem largados nos quintais. Muitas tinham esquadrias de janelas
desreguladas. A maioria tinha a grama queimada. A casa de Maria da Penha e Luiz Cláudio da Silva, seu
marido, tinha a pedra do box partida, uma tomada que não funcionava e um
desnível entre a entrada do quintal e a calçada.
- Após morarmos
na casa que vamos ver se tem um problema maior. Tem vários (pequenos
problemas), tudo porque foi feito na correria, feito em cima da hora,
querem deixar tudo pronto para a Olimpíada, a gente já sabe qual é o
processo, fica mal feito mesmo. Não é uma casa excelente, nem ótima, mas
é uma casa onde dá para construir nossa vida. É uma nova história. Não
tinha o espaço que a gente tinha antes, os meus pés de árvores, espaço
para criar meus animais, mas é uma nova vida, a gente vai se adaptando.
Vamos tentar fazer uma nova história com nossos vizinhos, sempre no
espírito de ajudar um ao outro - diz Luiz Cláudio, 53, que ainda lembra
de quando assistia às corridas de Stock Car no antigo Autódromo de
Jacarepaguá do alto de sua casa, que chegou a ter três andares.
Bruno Manso de Oliveira, no entanto, destoava do grupo. O marinheiro de
30 anos de idade, há 20 anos na comunidade, saiu do emprego para
defender sua casa e acompanhar um filho com necessidades especiais. Ele e
o pai, Delmo de Oliveira, morador mais antigo da favela, há 30 anos no
local, seguem numa casa ameaçada de remoção. Delmo alega ter sido
retirado da lista do reassentamento sem ser consultado e entrou na
Justiça para ser incluído novamente. Bruno deveria receber a casa número
1 da Rua Nelson Piquet, mas viu um vazamento de água no banheiro, pinos
quebrados nas janelas, ferragem exposta e mais defeitos de acabamento.
- Não tem como aceitar a casa desta forma. Eu não vou aceitar. Eu quero
um laudo técnico de um perito judicial para me respaldar. Quero tudo
certinho, senão, não vou entrar na minha casa. Essa poeirada toda de
obra não poderia afetar as casas. Saí com meu filho quase morrendo no
colo, caminhões tampando a estrada, foi um transtorno só. Sei que todo
mundo sofreu, mas eu sofri demais. Estou meio desorientado com tudo isso
que está acontecendo. Vejo muitas pessoas no "oba oba" e foi o que
aconteceu no Minha Casa, Minha Vida com meus vizinhos que foram pra lá.
Hoje tem piso soltando, teto vazando, eles não receberam o documento da
casa, só têm a chave, e aí não têm como brigar. O que respalda eles como
donos? - reclamou Bruno, que não estava mais presente ao final da
vistoria, quando foram distribuídas as chaves e manuais de proprietário.
Engenheiro
responsável pelo construção das casas e Secretário Municipal de
Concessões e Parceiras Público-Privadas, Jorge Arraes acompanhou as
vistorias e garantiu que, na sua maioria, os problemas eram de rejunte e
de regulagem das esquadrias, e que uma equipe da construtora
permaneceria de plantão nos próximos dias para resolvê-los. Também
prometeu que os moradores receberão um título de propriedade, e que eles
não estarão mais ameaçados de remoção mesmo após a Olimpíada.
-
Tem um projeto de urbanização desta área que proíbe a ampliação de
outras edificações. Nenhum incorporador imobiliário poderá construir
nesta área. Nós apresentamos um projeto para eles de urbanizar a área, e
se estamos entregando a eles o título de propriedade, seria um
contrassenso tentar retirá-los depois da Olimpíada. Aqueles que por
opção quiserem sair, porque querem vender a casa, direito de qualquer
um, eles sairão se quiserem. Nós não vamos tirar ninguém daqui. Se era
para ter tirado alguém daqui, seria antes da Olimpíada, não depois -
disse Arraes.
O secretário também desmentiu a reclamação de
muitos moradores de que, apesar do argumento de que a remoção de algumas
casas era necessária para recuperação da lagoa, teria havido
aterramento no local, e explicou a drenagem que impedirá o alagamento
da área, construída 1,5m abaixo do resto do bairro.
- Uma coisa é a drenagem do Parque Olímpico,
outra coisa é a drenagem dessa rua e a cota do rio. Nós assinamos um
compromisso com eles de monitoramento das cotas. A gente ligou a
drenagem desta rua na drenagem do parque, estamos jogando a drenagem
desta rua para o parque. Nós chamamos tecnicamente de "greide" (perfil longitudinal de uma estrada, que dá as alturas dos diversos pontos do seu eixo), lá tem um
greide mais alto, mas a tubulação que está no subsolo, esta daqui está
drenando para lá, a de lá está mais baixa. Não tem nada a ver com a
altura do aterro.
sentimento dividido em relação à olimpíada
No dia 2 de outubro de 2009, Delmo de Oliveira reuniu a família e foi
para a praia de Copacabana torcer pela escolha do Rio como cidade sede
da Olimpíada de 2016. Em meio à comemoração, vislumbrou uma oportunidade
de mudança do país. Mal sabia ele que a sua vida e a de seus vizinhos
seria diretamente impactada. Na Vila Autódromo, havia insatisfeitos e
satisfeitos com as consequências dos Jogos. Quando as remoções
começaram, Delmo e alguns vizinhos procuraram o Comitê Olímpico
Internacional para consultar se havia alguma exigência da entidade. Ele
acredita que não havia necessidade de remover tantas pessoas. Para o
metalúrgico, a Olimpíada no Rio é uma festa luxuosa oferecida por quem
não tem condições.
-
Parece que falta comida na geladeira, mas a gente vai dar uma festa com
caviar. A escola não tem material didático e os professores não são
pagos. Não tem saúde e segurança. A Olimpíada não foi feita pra gente. O
preço dos ingressos não é para nós. Além do mais, estamos sempre
ocupados trabalhando. Até hoje eu não vi nada de bom. Tem uma promessa
para melhorar o trânsito da cidade. Quando veio o Pan surgiu o H1N1.
Veio a Copa e surgiu a chikungunya e a zika. A gente tem que se
preocupar é com qual doença virá agora - disse.
Niro
de Almeida quis sair da Vila Autódromo. Pensou em pedir uma indenização
para abrir um negócio. Mas a esposa quis ficar. Há 17 anos na
comunidade, o pedreiro gostou da casa nova, segundo ele com um quintal
maior do que a anterior. Para ele, ficar é melhor do que ir para o Parque
Carioca e ter problemas na documentação. Não pretende se envolver com a Olimpíada e já
espera as obras dos prédios que subirão depois do fim dos Jogos.
- Não vou esquentar a cabeça com a Olimpíada. Quando ela começar é o
seguinte: eles dentro do quintal deles, e eu dentro do meu. Aí depois
tem Paralimpíada, e quando acabar vai ficar tudo calmo. Vão fazer uns
prédios, vai ter muita obra. O importante é ganhar a minha casa com um
terreno que gostei. Tem gente que está crescendo o olho. Ganhou casa que
e já está vendendo. Se quiser remover a minha (nova casa), que comecem
outra indenização. Política e pilantragem está tudo misturado - disse.
Julio Cesar da Silva se arrependeu de ter aceitado a
mudança para o Parque Carioca. Com o atraso nos repasses da prefeitura,
ele tem dificuldades para pagar as prestações do apartamento. Diz que a
prefeitura permitiria que ele vendesse o apartamento, o que não
aconteceu. Ele não culpa a Olimpíada por isso. Arrumou até um bico no
Parque Olímpico, montando um estande.
- A Olimpíada está abrindo portas de emprego. Não julgo a
Olimpíada pelo o que aconteceu na comunidade. O poder público usou isso
para se apropriar do terreno. O que fizeram aqui foi muita covardia. A comunidade foi
acabando. Não tinha ônibus, foram cortando os recursos das pessoas.
Pressão psicológica. Chegou a hora que não tinha jeito. Quando chegou a proposta, disseram que eu
poderia vender o apartamento. Eu soube que não poderia quando estava lá.
Muita gente entrou na justiça querendo o documento para poder vender.
Eu não quero ficar lá. Já tiveram dois homicídios lá. Isso não acontecia
aqui.
Sogra de Julio, Sueli Ferreira Campos aproveitou a obra para faturar.
Cozinha para os operários da obra. Ela teme que, por conta da
valorização da área, a pressão para tirá-los continue após a Olimpíada.
Ela não esconde a frustração com o que perdeu por conta do evento.
- Pra mim, a Olimpíada foi uma m...! A casa que me deram é menor do que eu tinha.
A
assessoria da prefeitura esclareceu que "as regras do programa Minha
Casa, Minha Vida determinam que os reassentados, beneficiários da Faixa I
do programa, não podem comercializar ou alugar a residência antes de
terminar o prazo do financiamento, que é de 10 anos. Os imóveis do Minha
Casa, Minha Vida, destinados a reassentamentos de famílias - que é o
caso dos moradores da Vila Autódromo que foram para o Parque Carioca –
têm suas prestações pagas pelo governo em forma de subsídio. Todas estas
informações estão no contrato assinado pelos beneficiários."
Entenda o caso
A Vila Autódromo começou a se formar como uma
colônia de pescadores nos anos 1960. Com a construção do Autódromo de
Jacarepaguá, muitos operários ficaram por lá. Nos anos 1990, o governo
estadual concedeu aos moradores o uso da área por 99 anos. As tentativas
de remoção começaram também naquela década, com o então prefeito Cesar
Maia.
Em 2014, alegando a
necessidade de ampliar os acessos ao Parque Olímpico e recuperar a faixa
marginal da Lagoa de Jacarepaguá, a Prefeitura iniciou a remoção das
cerca de 800 casas da comunidade. O processo também incluiu casarões na
beira da Lagoa de Jacarepaguá. Aos moradores, foram oferecidas
indenizações ou apartamentos no Parque Carioca. Boa parte aceitou. Quem
quis permanecer, precisou resistir à pressão.
Durante
as obras, moradores denunciaram que serviços básicos foram cortados.
Moradores que resistiam às ordens de despejo e demolições das casas
entraram em confronto com a Guarda Municipal. Paralelo a isso, o
prefeito Eduardo Paes dizia que quem quisesse poderia ficar. Um projeto
de reurbanização da UFF e da UFRJ, premiado da Alemanha, foi proposto
pelos moradores. Por fim, os que resistiram entraram em acordo e foram
para o Parque Carioca.
Nota da prefeitura
"Na preparação da cidade para os Jogos Olímpicos, a única comunidade
impactada por obras relacionadas às instalações esportivas foi a Vila
Autódromo, vizinha ao Parque Olímpico. Ainda assim, apenas parte dos
reassentamentos de famílias foi feita para permitir a abertura de vias
de acesso e de serviço do parque. Uma parcela dos reassentamentos teve
como razão garantir a proteção das faixas marginais da Lagoa de
Jacarepaguá e do rio Pavuninha, áreas de proteção ambiental que estavam
ocupadas. E uma parte significativa de moradores optou espontaneamente
por sair.
Em 2009, moravam na Vila Autódromo 824 famílias.
Para a realização das obras de construção de via de acesso e recuperação
ambiental da faixa marginal da Lagoa, 275 famílias teriam que deixar as
suas casas. Para todas estas famílias foram oferecidas as opções de
apartamentos do Condomínio Parque Carioca ou indenização, opções estas
escolhidas por 268 delas. Na grande maioria dos casos, os moradores
saíram de construções irregulares, em condições insalubres, para os
apartamentos do Parque Carioca.
As outras 549 famílias não
precisariam sair da comunidade. Mas dada a mudança no padrão de vida de
moradores que já haviam se mudado para o Parque Carioca, e aproveitando a
oportunidade de negociação aberta na comunidade, 531 solicitaram à
Prefeitura o reassentamento ou indenizações. Os moradores fizeram
inclusive abaixo-assinados pedindo a inclusão no cadastro municipal. Já
na reta final das negociações, outras cinco famílias que não
precisariam sair da comunidade optaram por indenizações.
As
20 famílias remanescentes da Vila Autódromo serão beneficiadas com a
urbanização da comunidade, um projeto que inclui a construção de casas
de dois quartos com quintal, redes de drenagem, esgoto, iluminação e
pavimentação na Rua Nelson Piquet; e o paisagismo da área. A urbanização
será entregue até o fim deste mês de julho. A Prefeitura vai construir
ainda duas escolas e área de lazer na região. As escolas serão erguidas
com a estrutura da Arena do Futuro, que durante os Jogos receberá os
Jogos de Handebol. Após os Jogos, a arena será desmontada e
reaproveitada.
Todo o processo de construção das casas foi
resultado de um Termo de Acordo Administrativo, assinado entre a
Prefeitura do Rio e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
Sobre
o atraso do pagamento, a Secretaria Municipal de Habitação e Cidadania
informa que a questão é pontual e que os técnicos estão solucionando a
situação junto à Caixa Econômica para que não haja prejuízo aos
moradores."