Política

Tradutor de presidente sofre, mas se diverte

Tradutor de presidente sofre, mas se diverte

O trabalho dos tradutores dos presidentes não se limita a verter palavras para outras línguas — eles, muitas vezes, melhoram o script

DENISE CHRISPIM MARIN
01/05/2018 - 10h01 - Atualizado 01/05/2018 10h01
O intérprete Sérgio Ferreira cochicha ao ouvido do ex-presidente Lula, enquanto traduz o ex-presidente Barack Obama, em 2009, na Casa Branca. Ferreira dominava o “lulês” (Foto: JONATHAN ERNST/REUTERS)

Em um momento do encontro em Roma em 2008 com Silvio Berlusconi, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva segurou a gravata do italiano e ficou esfregando os dedos polegar e indicador como se avaliasse a qualidade da seda. Olhando para o rosto do primeiro-ministro, disparou: “Esse aqui tem a cara do Collor e do Maluf juntos!”. Berlusconi não entendeu nada. “Che cosa ha detto?”, indagou. O carioca Sérgio Xavier Ferreira, que estava ao lado do ex-presidente, atuando como intérprete, imediatamente atalhou. “O presidente elogiou muito sua gravata”, respondeu. No dia seguinte, Il Cavaliere mandou uma caixa com 50 gravatas daquelas como presente para Lula.

A história ilustra o papel essencial — e nem sempre discreto — assumido pelos tradutores à medida que a diplomacia presidencial se tornou mais ativa nas ações de política externa. Entre os intérpretes, Sérgio Ferreira, que traduzia para Lula desde 1992 e era petista, tornou-se uma lenda porque fazia um trabalho muito além de traduzir e interpretar o que Lula falava. Ferreira polia frases, sofisticava o vocabulário, tornava compreensíveis as metáforas de futebol e casamento frequentes em seus discursos, assim como dava graça, em outras línguas, às piadas de Lula, quando não as omitia, como no caso da gravata de Berlusconi.

Segundo testemunhas, Ferreira preferia fazer a interpretação simultânea, ao pé do ouvido de Lula, e, depois, chegava-se ao interlocutor para fazer o caminho contrário. Com essa técnica, economizava tempo e tornava a conversa entre os líderes mais dinâmica. Como ele conhecia as expressões mais comuns e até frases inteiras de Lula, por causa do longo convívio, ia traduzindo algumas vezes sem o esperar. “O Sérgio poderia psicografar o Lula”, disse um diplomata que acompanhou seu trabalho em muitas ocasiões. “O Sérgio traduzia o ‘lulês’ como ninguém”, afirmou um colaborador de Lula no Palácio do Planalto. “Os tradutores deram uma contribuição enorme, inestimável, ao discurso de política externa do presidente.”

Não foi sempre assim. “Não confio muito em tradutores oficiais, dizia o desconfiado Getulio”, escreveu o biógrafo Lira Neto em seu livro Getulio: do Governo Provisório à ditadura do Estado Novo (1930-1945). No dia a dia, no Rio de Janeiro, Getulio Vargas recorria asua filha Alzira, fluente em inglês, para a tradução de reportagens e livros, assim como de suas conversas com embaixadores anglófonos. Em 28 de janeiro de 1943, quando recebeu em Natal, Rio Grande do Norte, o então presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, e barganhou a instalação de uma base militar naquela ponta avançada do Nordeste brasileiro em troca da transferência de tecnologia para a implantação da indústria siderúrgica no país, como condição para o apoio do Brasil aos Aliados na Segunda Guerra Mundial, Vargas conversou com Roosevelt em francês, língua que ambos dominavam. Apenas uma parte do diálogo se deu em inglês, com a ajuda de um intérprete.

Corre no Itamaraty a lenda de que um jovem diplomata foi escolhido para servir como intérprete da rainha Elizabeth II, do Reino Unido, durante sua visita a Brasília, em 1968, quando se celebrava o início da construção da Ponte Rio-Niterói com financiamento britânico. Ao conduzi-la ao Hotel Nacional, no Rolls-Royce da Presidência, o presidente Costa e Silva apontou o Teatro Nacional, obra de Oscar Niemeyer aparentemente inspirada em pirâmides pré-colombianas, e disse ter sido o prédio construído ao estilo grego. O tradutor, alarmado, omitiu a avaliação arquitetônica do general. Costa e Silva percebeu e insistiu: “Greek style”.

O fim do regime militar e os primeiros anos de redemocratização não deixaram mais espaços para o amadorismo. Com o fim da Guerra Fria, o andamento veloz da globalização e a criação de uma infinidade de agrupamentos de nações, a profissionalização da tradução tornou-se regra para países que, como o Brasil, tinham ambições na cena internacional. Os anos 1990 marcaram uma mudança substancial na maneira como o Brasil se colocava no plano internacional, e, de lá para cá, tradutores se tornaram tão presentes no gabinete e nas comitivas do presidente quanto os chanceleres.

Desde 1995, com a posse de Fernando Henrique Cardoso no Palácio do Planalto, até abril passado, os quatro presidentes brasileiros comandaram 449 visitas internacionais e receberam, no Brasil, centenas de chefes de Estado e governo. Michel Temer deverá completar a 450ª visita ao desembarcar em Singapura, no próximo dia 7 de maio. Só não houve mais visitas internacionais porque Temer, entre tantos incêndios para apagar em Brasília, pouco tempo teve para despender no exterior. E sua antecessora, Dilma Rousseff, tinha pouca disposição para se dedicar à política externa. Esses encontros entre chefes de Estado e governo — com olho no olho, leitura de expressões faciais, apertos de mãos, cochichos com assessores, sinais, mensagens em voz natural — ainda não foram superados pelos engenhos do mundo virtual.

Foi nos anos 1990, com Fernando Henrique Cardoso, que o Brasil deu um primeiro salto em sua exposição mundo afora, com uma política externa ativa e o início de várias negociações comerciais. FHC fez, ao longo de seus dois mandatos, 112 visitas internacionais, o que lhe valeu o apelido de “Viajando Henrique Cardoso” dado pelo programa humorístico de TV Casseta e Planeta . FHC engrossou o emaranhado de compromissos externos na medida em que foram criadas novas alianças regionais, como o Mercosul, e pelo menos oito reuniões por diferentes afinidades — da Cúpula das Américas à da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Tantos eram esses encontros, que os diplomatas ironizavam faltar apenas a criação da cúpula dos países cujos nomes começavam com a letra “b”. E citavam: “Brasil, Bélgica, Burkina Faso, Benim, Bulgária...”.

Fernando Henrique Cardoso incorria no risco de dispensar intérpretes para francês, espanhol e inglês — línguas que ele dominava, mesmo com forte sotaque. Ele ainda arranhava algumas frases em italiano e alemão. Seus diálogos com o americano Bill Clinton, o britânico Tony Blair, o francês Jacques Chirac e o argentino Carlos Menem costumavam ser fluidos, sem a presença de intérpretes. Na maioria das vezes, FHC seguia o discurso cuidadosamente preparado por sua assessoria internacional, ao contrário de Lula, que adorava improvisar.

FHC falava com a bagagem de acadêmico que se debruçara por décadas nos estudos de ciências sociais. Mas isso não lhe evitava problemas. Em seu primeiro encontro com George W. Bush no Salão Oval da Casa Branca, em março de 2001, chegou a tirar os óculos para cumprir sua promessa à imprensa brasileira de “falar olhando nos olhos” com o líder americano. A atitude — e a posterior conversa, sem tradutor — não ajudou a melhorar as relações bilaterais e deixou no ar uma antipatia mútua. A prometida entrevista à imprensa no Jardim das Rosas, como ocorrera anos antes em sua visita a Clinton, foi cancelada na última hora.

Lula acentuou o ativismo brasileiro no campo político externo. À maioria dos compromissos que sobreviveu do período FHC, somaram-se pelo menos mais 11 — dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) à Diáspora Africana. No caso de Lula, incluindo suas frequentes visitas bilaterais, registrou-se um total de 246 viagens internacionais ao longo de seus oito anos de governo — mais do que o dobro de FHC.

Sérgio Ferreira atuou em boa parte dessas viagens de Lula e o atendeu em inúmeras visitas de chefes de Estado em Brasília e conversas telefônicas. Sempre colado no ex-presidente, era inevitável vê-lo nas fotos de capa dos jornais e imagens de televisão. Porque usava barba rala, como a do chanceler Celso Amorim, algumas vezes foi confundido com o chefe do Itamaraty em eventos internacionais.

Apesar da familiaridade com Lula, certa vez engasgou quando o presidente se referiu às comunidades de mulheres quebradeiras de coco de babaçu para uma plateia de empresários estrangeiros. Rapidamente, encontrou uma versão adequada em inglês: “coconut cracking women”. Lula percebia seu esforço. Em um jantar oficial, enquanto falava com um chefe de Estado, picou o pão em pedacinhos, passou manteiga em cada porção e as deu a Ferreira, uma a uma, como se fosse seu canário do reino.

Ferreira chegou ao Palácio do Planalto de “salto alto”, lembram funcionários do gabinete presidencial daquela época. Assinara um contrato como assessor especial do gabinete da Presidência, cargo de confiança para o qual estava prevista a remuneração como DAS-5, o segundo patamar mais alto. Estava orgulhoso disso. Tanto que passou a corrigir os demais servidores quando era chamado de “tradutor”. Sarcásticos por natureza, os diplomatas passaram a referir-se a ele, as suas costas, como “DAS-5”.

Na primeira participação de Lula na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, que o Planalto demorara a confirmar, Ferreira brigou com o chefe do cerimonial da Presidência, o embaixador Paulo César Oliveira, no lobby do Waldorf Astoria, porque fora hospedado em um hotel vizinho. Com o passar dos tempos, Ferreira percebeu que sua condição de “assessor especial da Presidência” o impedia de fazer outros trabalhos de tradução e diminuia sua renda.

Depois de dois anos, passou a assinar contratos de prestação de serviço com o Itamaraty para cada trabalho com Lula, por meio de sua empresa Global Multilingue, o que também facilitou a contratação de tradutores de idiomas que não dominava. Para as viagens de Lula à Rússia e países da ex-URSS, a firma contratava Luiz Carlos Prestes Filho, filho do “Cavaleiro da Esperança”.

Temer usa um fone de ouvido para tradução da conversa com o presidente da China, Xi Jinping, em encontro em Pequim. No ano passado, ele foi o único de quatro presidentes latino-americanos a usar fone em conversa com Donald Trump, em Nova York (Foto: NO OLINTAO ZHANG/POOL PHOTO VIA AP)

Ferreira tentou salvar Lula de várias gafes. Algumas vezes, não conseguiu. Em novembro de 2003, em visita oficial à Namíbia, o então presidente afirmou em discurso que estava surpreso “porque quem chega a Windhoek não parece estar num país africano. Poucas cidades do mundo são limpas e bonitas (como esta)”. Ferreira interrompeu o raciocínio do presidente, dando-lhe uma chance de refazer a frase controversa, e disse que não o estava entendendo. Lula retomou: “A visão que se tem da África é de que são todos pobres”. O tradutor omitiu o que Lula dissera sobre Windhoek ser uma capital limpa, apesar de africana e pobre. Somente os brasileiros entenderam o deslize. Lula costumava chamar Ferreira de “meu dublê” e o salvava com frequência dos seguranças estrangeiros que, quase sempre, barravam a passagem do tradutor.

Às vezes, a carga de humor de Lula também se perdia na tradução. Em 2007, durante uma coletiva de imprensa ao lado de George W. Bush, em São Paulo, Lula descontraiu-se suficientemente para dizer que o chanceler Celso Amorim e a secretária de Estado Condoleezza Rice deveriam ser trancados em uma sala até atingirem o “ponto G” da negociação da Área de Livre-Comércio das Américas (Alca). O tradutor verteu a expressão para “dot G”, que nada tinha a ver com a conotação erótica dada por Lula que, em inglês, seria “G spot”. Enquanto os jornalistas brasileiros e o próprio Lula riam, Bush e a delegação americana só entenderam a piada mais tarde, quando propriamente traduzida.

Por mais que o PT disparasse discursos contra os Estados Unidos, Lula se deu muito bem com Bush desde o primeiro encontro como presidente eleito, no fim de 2002. Sérgio Ferreira teve sua cota de participação nesse sucesso, a ponto de Bush elogiá-lo publicamente. Percebendo que o tradutor da Casa Branca estava enferrujado, depois de oito anos de conversa direta entre Clinton e FHC, Ferreira dominou a interpretação dos dois lados. “Lula estava nervosíssimo antes do encontro com Bush. Mas essa comunicação mais ágil ajudou a quebrar o gelo”, afirmou uma testemunha da conversa no Salão Oval. Depois disso, sempre que se encontravam, Bush e Lula pareciam velhos amigos.

Dilma Rousseff manteve as linhas gerais da política externa de Lula, mas foi muito menos ativa e engajada na diplomacia presidencial. Ela nutria uma antipatia atávica pelo Itamaraty e seus temas e, em várias ocasiões, queixou-se da presença rara de técnicos entre os diplomatas. Em público, parecia rosnar para seus chanceleres — todos os três, diplomatas de carreira. Dilma limitou-se a levar adiante, em câmbio automático, a política externa.

Nos bastidores das reuniões de cúpula, ela quase desaparecia em um canto, evitando misturar-se às rodas de conversas dos chefes de Estado e ministros. Cada agenda externa, como um encontro de cúpula ou a posse de um presidente latino-americano, tornava-se razão de estresse para seus assessores e de aborrecimento para ela.

Ela herdou também uma parte dos tradutores de Lula, ao tomar posse em 2011. Desentendeu-se com a maioria deles e acabou formando seu próprio time de profissionais. Entre eles, contratou a mexicana Cynthia García, para o espanhol e o italiano, e Paulo Liégio, para o inglês. A presidente entendia razoavelmente as conversas em inglês e espanhol e, segundo seus colaboradores, falava bem o francês.

Quando auxiliada por um intérprete, porém, gostava de mostrar seus dotes linguísticos para o interlocutor ao corrigir algumas palavras traduzidas. Foi o que aconteceu no Salão Oval em 2011, quando Dilma decidiu dar uma longa bronca em Obama por causa da política monetária americana — conduzida pelo Federal Reserve, um dos raros bancos centrais independentes no mundo, e não pela Casa Branca. A cada passo da tradução consecutiva, Dilma consertava o texto. “O tradutor era sempre vigiado por ela. Mas, às vezes, ela pedia a tradução de perguntas para ganhar tempo e pensar nas respostas”, disse um ex-colaborador direto da presidente.

Dilma virava-se também por sua conta e risco em algumas situações. Quando Evo Morales, presidente da Bolívia, deixou um encontro com Dilma Rousseff no Palácio do Planalto, em fevereiro de 2016, não conseguia esconder o fato de que não entendera uma palavra do que ela dissera. Para aquela reunião ampliada, com ministros de lado a lado, a então presidente do Brasil cometera um erro fatal na diplomacia: dispensara os intérpretes. Morales, cuja língua materna é o aimará e não o espanhol, olhava para seu chanceler com ares de desespero, segundo assessores presentes, enquanto Dilma falava em “portunhol”.

Em setembro do ano passado, em Nova York, apenas um dos quatro líderes latino-americanos convidados para um jantar oferecido por Donald Trump não se constrangeu em colocar o fone de ouvido para acompanhar a conversa à mesa: o presidente Michel Temer. Na outra ponta do aparelho estava seu intérprete para o inglês. Minutos antes, Temer, ainda sem o fone, apenas trocou sorrisos com Trump ao apertar sua mão e esquivou de emitir palavra audível. Ambos imediatamente preferiram posar para as câmeras.

Dilma em uma sessão da ONU em 2016. Ela fala portunhol fluente (Foto: SPENCER PLATT/GETTY IMAGES)

Fluentes ou não no idioma da casa, os presidentes da Colômbia, Juan Manuel Santos, do Panamá, Juan Carlos Varela, e do Peru, Pedro Pablo Kuczinski, que renunciou em março passado, dispensaram o artifício. Os cinco líderes estavam em Nova York para a abertura dos trabalhos da Assembleia Geral das Nações Unidas, e Trump aproveitou a ocasião para expressar diretamente suas críticas ao regime de Nicolás Maduro, da Venezuela, durante o jantar. O americano, que nada fala além de um inglês repleto de adjetivos, pronunciou “Madero” em vez de “Maduro”. Todos fizeram de conta que não notaram. Temer, cuja assessoria diz que ele entende inglês, não se atreve a um diálogo em outro idioma sem ajuda profissional. E, ao contrário de Lula, jamais sai do texto previamente redigido por sua assessoria.

A antiga expressão italiana “traduttore, traditore” não se aplica aos intérpretes. Testemunhas de conversas reservadas, como as que se dão entre chefes de Estado, eles estão sujeitos a cláusulas contratuais de confidencialidade ou a compromissos de fidelidade que vão além da prestação de serviços.

Procurado por ÉPOCA, Sérgio Ferreira não quis dar entrevista. “No nosso meio profissional, temos um código de ética rigoroso que, entre tantas regras, inclui o sigilo sobre o que é dito em reuniões, conversas, conferências etc. em que participamos”, respondeu o tradutor, por e-mail. “O mesmo se aplica a quem trabalha com segurança, com psiquiatria, ou até mesmo os padres, que guardam segredo sobre as confissões que ouvem”, completou. Também consultado, Paulo Liégio, que atuou como intérprete para francês e espanhol para Lula e Dilma Rousseff e ainda trabalha para Michel Temer, preferiu igualmente o silêncio. “Eu ouço, traduzo, me calo e esqueço”, escusou-se, pouco antes de embarcar para Lima na condição de intérprete de Temer na Cúpula das Américas, em abril passado.








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